sábado, 27 de junho de 2009

Palavras de sete faces

Chove um pouco lá fora. Fina, nítida, delicada é a chuva.
Dentro de mim a saudade.
Restos de solidão.
Uma tristeza que, assim como a chuva, faz-se fina, nítida, delicada.
Sei que às vezes sou confusão.
Olhares perdidos, mente incendiada por lembranças.
Em tempos diferentes sou indefinida.
Incerta como um crepúsculo, onde não há linha alguma entre noite e dia.
Pego um vestido da infância.
Sinto o cheiro da inocência, do mundo que poderia ser e não é.
Percebo o desespero deste mundo.
Pessoas têm medo e não sabem.
Ilusões nas marcas da esperança, tão transparente e trivial.
Na trivialidade onde se traduz o complexo, o grito da alma, os dramas da loucura.
Encontro-me na sombra dos pesadelos com a violência que insiste maior que o diálogo.
Repito incansável que sou forte,
mas as letras, o silêncio, tudo me lembra a minha fragilidade.
Sou uma menina com leves rascunhos de mulher.
Construí-me na solidão que se conhece no meio de tantos outros quando se grita para ninguém ouvir.
Não sei da beleza e sim da matéria viva, lancinante.
Da realidade árdua, dolorida, aliciante.
Gritava tantas e tantas noites.
Sofrimentos que saíam de mim e eram alheios a mim mesma.
Inverso do real tenho um rosto com marcas que não se veem.
Luto com o mundo mas estive por tantas vezes cansada dele.
Hoje, olhando vestidos de outrora,
desenhando um sonhar que demora,
converso com o silêncio assustado
e me vejo de perfil no espelho esfumaçado.

M.V

Fragmento

- Acho que sim. Quando noviça, eu pensava muito na minha gente. Sabia que não ia voltar mas continuava pensando com tanta força. Como quando se tira um vestido velho do baú, um vestido que não é para usar, só para olhar. Só para ver como ele era. Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar. Acho que saudade é isso.

Lygia Fagundes Telles em As Meninas

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Fragmento

Quero te dizer também que nós, as criaturas humanas, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequencias, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões. Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte. Nossa plenitude, eis o que importa. Elaboremos em nós as forças que nos farão plenos e verdadeiros.

Lygia Fagundes Telles em As Meninas

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Os Esquecidos

Esquecidos pela lógica incoerente da vida que se faz conhecer, esquecidos pelos homens bons e dignos que parecem olhar o próximo disfarçadamente. Esquecidos pelas máscaras das pessoas que se escondem e se embriagam de duplicidade.
Esquecidos pelos doutores que dizem dos males curar. Esquecidos pelo calor que abre lugar para um frio constante e cortante. Uma alma congelada, feito pedra de rua.

Esquecidos pela lua e seus feitiços, renegados aos cantos, aos subúrbios, ao escuro do mundo. Esquecidos pela família, mãe, pai, irmão, ou seja lá o que mais se quiser chamar por família. Esquecidos pelos amores que a eles só fazem doer e gritar sem que nada nem ninguém os ouça e veia por eles orar.
Esquecidos por Deus, pela promessa divina, pela espiritualidade que existe em todos menos nestes seres sombreados pela morte, condicionados pela vida. Estes estão esquecidos pela própria fé, não creem em mais nada, não encontram forçar para crer, apesar de saberem que a alma se salva, nesta vida ou na outra, mas ela se salva. Esquecidos pela coerência, pela clareza das palavras e dos atos.
Esquecidos pela lucidez e pelo discernimento do que se faz e como se faz.
Esquecidos pelo tempo que neles insiste em se arrastar, arrastando tudo como uma ressaca de um mar moral e desigual. Esquecidos pela justiça e também pela injustiça dos homens. Esquecidos pela dignidade de olhar para si e enxergar qualquer resto de conforto, corpo morto.

Esquecidos pela própria morte. São condenados ao direito de vagar sem rumo, inertes, sem dor, sem luz, cegos e atormentados pela ambição, pela competição humilhante.
Esquecidos pelas ruas vagam pelos céus, esquecidos pelo dia vagam pela noite, esquecidos pelo sol aparecem somente sob a luz da lua, esquecidos pelo tempo assombram os que se dizem lembrados no instante da eternidade.