domingo, 30 de agosto de 2009

Ler ou não ler..."A Paixão segundo G.H"

Clarice Lispector


Não vou aqui fazer uma análise crítica, resenha ou qualquer outra coisa parecida para falar de um livro que me rouba todas as possíveis palavras. Se as usasse, não teria garantia nenhuma de que elas não mentiriam por mim. Do livro A Paixão segundo G.H de Clarice Lispector, limito-me a dizer que, como diz a autora, apenas para quem tem a alma já formada, é uma leitura obrigatória e fascinante. Uma viagem às entranhas da alma, às suas regiões mais gélidas e selvagens. Um re-encontro consigo mesmo, uma náusea, uma angústia, um sentimento que se volta para o que não é humano, para o que existe além dele. O livro não chega até a alma, tampouco até nossas raízes mais profundas, pois, segundo as próprias palavras de Clarice, não se chega até as raízes profundas que desenham a identidade do ser humano e sua alma. Elas existem, mas são inalcançáveis.
O livro é uma entrega completa e verdadeira rumo ao desconhecido, uma leitura onde quem lê vai além das letras, das entrelinhas, além da própria sensibilidade. Uma tradução da paixão - arrebatadora, fascinante, vertiginosa, a aceitação e descoberta de si mesmo, a experimentação da vida e da morte.
“A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro”, repetia Clarice loucamente em sua busca pela essência humana.


sábado, 29 de agosto de 2009

A fita lilás


De longe, vindo, ele já parecia lotado, apesar de eu não distinguir muito bem o que era ferro do que poderia ser uma pessoa, parecia tudo meio embaralhado, minha visão produzia cenas turvas, levemente embaçadas, esfumaçadas, eu já parecia antever a atmosfera na qual entraria logo em seguida.
Subi os degraus rapidamente, como quem se nutre de um impulso. Dei alguns passos firmes enquanto ele ainda não entrava em movimento, depois era certo que meus passos seriam desequilibrados e incoerentes, quase como meu estado de alma, ansioso e inconstante. Girei a catraca depois de dar o dinheiro. Girei a catraca depois de dar o dinheiro, pulei um muro depois de dar um adeus, sequei uma lágrima depois de ter deixado escorrer meu coração, venci o medo depois de ter conversado comigo mesma, girei o mundo depois de comprar passagem sem, no entanto, nunca voar pra lá.
Passeei os olhos pelo lugar e encontrei um banco no canto do meu espanto, ele ficava bem separado do restante, isolado, parecia um bom lugar para sentar e olhar a vida passar, a vida sempre a passar. Assim o fiz ou o fizeram de mim, mas sentei, encostei a cabeça e saí de dentro de meus limites físicos para entrar na imensidão e na loucura dos meus sonhos insanos. Olhei pela janela as pessoas e a sua pressa, as pessoas e seus medos, as pessoas e suas faces inexpressivas, confusas, avulsas. Olhei as casas, as cores do mundo, do chão, do portão. Contemplei o chegar da noite e a despedida do dia, este saía manso, como quem tem medo ou prudência para não ofuscar a beleza da noite que se faz majestosa e misteriosa, primitiva e selvagem, inspiradora e desafiadora.
Distraída da janela meus olhos encontraram o interior do lugar que estava lotado, enchera de pessoas quase tão rapidamente quanto um copo quando o enchemos com água. A janela e o mundo visto por ela até então me arrastavam tanto para suas entranhas que não notara o barulho de vozes já tão alto e desencontrado. Muitas pessoas falavam dos mais variados assuntos, ao mesmo tempo, muitas se olhavam com desconfiança ou curiosidade, quase todas se espremiam umas contra as outras em busca de espaço, de lugar. O ar já era denso, ensopado, aflito. Minha alma começava a fervilhar e multiplicava a multidão. Eu já via milhares de pessoas famintas, cegas, desprotegidas. Via ladrões, fantasmas e maldades brotando feito erva daninha. Os rostos eram curiosos, mas eles não passavam de rostos. Os contornos destes é que se faziam a meus olhos interessantes e enigmáticos. Contornos que denunciavam cansaço, sofreguidão, frustração ou felicidade. Traços que desenhavam um dia, uma vida, uma luta.
No conjunto de pessoas existia, antes de tudo, um conjunto de histórias, que eu tentava decifrar sem ouvi-las, apenas sentindo e percebendo como elas poderiam ser ou eram de fato. Foi quando pararam estes meus olhos em uma fita lilás que se enrolava delicadamente nos cabelos de uma moça. Como a fita lhe caía bem, e como ela de repente iluminara aquela atmosfera andante e errante, seca e sufocante. Ela era como água para quem tem sede, incendiou meus olhos, alojou-se na minha lembrança. Já era hora de descer. Os poucos que estavam sentados se levantavam. Os muitos que já estavam em pé espremeram-se contra a saída como quem tem pressa para alguma coisa que eu não sei bem o que é, coisa que se faz diferente para cada um, que talvez nem cada um saiba o que é. Na minha vez de descer parei e fiquei olhando a multidão a caminhar a passos que se preocupavam em parecer seguros e certos.
Como o mundo fabrica cenas que espantam! Cenas que se fazem selvagens, loucas e primitivas, de repente divinas. De longe via a todos, mas reparava apenas naquela fita lilás que enfeitava o cabelo de alguém de quem eu nem sabia o nome, uma fita que se destacava na multidão, como uma flor que desabrocha na diversidade e se faz a mais corajosa e bela de todas, como uma multidão que se re-cria em busca de um eterno e cíclico re-encontro, mesclado de paixão e drama.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Paixão



Sou existencialista

Exagerada

Adepta da profundidade

Prefiro a noite ao dia

Sou dependente

Ao mesmo tempo em que me faço moderna

Silenciosa

Tímida

Muito inconstante

Imagino situações angustiantes

E nelas conheço todo o neutro drama

Passo noites em claro

Em sonhos selvagens me deixo esquecer

Em fotos sou apenas uma inexpressividade latente

Quero-te

Pra ser bom tem que doer corpo e mente

Embriago-me neste inferno quente


M.V


terça-feira, 25 de agosto de 2009

De quem a saudade

Saudade
Sentimento
de quem já tem formada a alma
de quem é visitada pelo seco vazio
de quem tece a sua teia na neutralidade do nada
de quem pode nas suas ilusões até estar errada
de quem elege um outro ser o verso de sua poesia
de quem sonha com uma verdade que talvez nem exista
de quem experimenta da vida a matéria primitiva
de quem habita uma sala vazia

M.V

Neblina


Acordei um tanto quanto confusa, como quase todos os dias, fiz minhas coisas rapidamente e bastante sonolenta. Estava até desanimada em relação ao dia que começava, esperava dele o nada, o mesmo que esperava dos outros. Eis, no entanto, que a surpresa surge, as coisas do mundo se entendem e, sorrateiramente, nos seduzem. De repente, elas vão tecendo as teias de nosso destino e remexendo as raízes mais profundas de nossa identidade.
Estava neste estado de alma quando girei a chave no portão e na rua deixei meu corpo entrar. Uma vez nela, meus olhos queimaram com a chama do novo, do inusitado, daquilo que sai do prosaico do cotidiano e decide cutucar a percepção e sensibilidade dos que ainda as tem. Creio que as minhas estão comigo já que me senti tocada profundamente pela paisagem matinal que a atmosfera derramava.
A neblina era o elemento básico desta manhã de segunda-feira. Ela tornava o mundo branco, escondia sua aparência banal e, por isso, parecia revelar sua essência pré-humana, divina. A neblina era úmida e à medida que nela eu entrava sentia-me atingida por essa umidade, como se todo meu corpo fosse se molhando e se distanciando da secura que até então eu em mim sentia. Ela me purificava. A neblina fascinou-me pela carga de mistério, pela novidade que ela trazia para o desenho daquela manhã. Manhã branca, úmida, sedutora, um tanto quanto neutra.
O fato é que eu existia naquela neblina e ela existia em mim. Eu caminhava dentro dela e já era toda sua umidade, brancura e neutralidade. Em meu pensamento que acordava considerei aquela manhã interessante, reflexiva, era como se ela combinasse o amor e o mistério produzindo a fórmula intraduzível da paixão. A neblina era uma espécie de modo negativo de ser, o ser e o não ser, era como uma verdade que me atraía e que, como todas as outras verdades de minha vida, me difamava, fazendo-me trafegar à beira do nada, remexendo meus contornos, alimentando meus medos, despertando a minha curiosidade. Esbocei vários sorrisos disfarçados enquanto minha alma experimentava aquela alegria típica do contato com o novo. A fumaça me trazia um pouco da loucura e eu não tinha medo dela. Estava sentindo, sentir já dizem é uma das formas de ser, portanto, eu sentia e era um rascunho de vida cada vez mais apaixonada pelo mundo, com todas as minhas saudades, com toda a minha liberdade - branca, úmida, fascinante.

domingo, 23 de agosto de 2009

Fragmento de Clarice

Era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade. [...] Eu tinha que cair na danação de minha alma, a curiosidade me consumia. [...] Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade - meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram.

Clarice Lispector em A Paixão segundo G.H

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

CONTO - Grito

O Grito, quadro expressionista do norueguês Edvard Munch



Ele acordou sozinho no meio da noite. Uma noite clara, de uma atmosfera ensopada, de um aspecto frio e seco. Não sabia onde estava, quem era, qual era o seu nome, sua forma física, não disciplinava seus pensamentos. Tentou se levantar, ir até o espelho, mas suas pernas se recusavam a andar. Era como se durante a noite ele tivesse desaprendido a ser humano. No entanto, apesar de tudo, as lembranças ainda lhe restavam.
O corpo se entregou à imobilidade que o condenava à inconsciência de si mesmo, mas a mente permaneceu lúcida e, longe de ser um alívio, parecia ser justamente isso que o angustiava. Antes não tivesse lembranças e fosse só movimento e racionalidade. Naquela madrugada, no entanto, ele era só devaneio e inconsciência, sem percepção alguma de matéria. Entregou-se às lembranças por inteiro, belo e majestoso como um rio quando se perde e confunde suas águas com as águas do mar.
Encontrou seu passado, pois parecia destinado a ele, como cada vida está destinada à morte. Lembrou-se de um passeio de trem pelo centro da pequena cidade onde nasceu. Era como se o barulho da buzina, das rodas, das pessoas e do vento batendo em seu rosto estivesse novamente ao seu lado, revisitando-o em delírios de uma nostalgia solitária.
Lembrou-se de como as pessoas olhavam para o trem, de como elas paravam o que estivessem fazendo para voltarem também ao seu passado, como ele agora o fazia. Lembrou-se de como o trem dera uma volta imensa pela cidade, de como ela de repente se tornara grande, de como tudo por um instante se tornara claro, alegre, inocente. Naquele dia, no banco macio de um trem, ele fora feliz ou algo próximo disso.
Lembrou-se de sua mãe e de seu pai, agora longes de onde ele estava. Veio-lhe o cheiro do jantar, o som das vozes, o abrigo de um colo onde antes ele se deitava pra chorar, pensar e sonhar. Lembrou-se dos dias de Natal com a casa cheia e da tristeza enorme por ele sentida nestes dias de festa. Quando todos estavam felizes e juntos, ele se sentia triste e sozinho. Lembrou-se de algumas quedas em um jogo de futebol, de como ele tinha medo de mostrar algum talento, preferia saber somente para si mesmo do que ele era capaz.
Lembrou-se de um professor que lhe ensinou um pouco da poesia da vida, da filosofia dos homens, da força transformadora do conhecimento. Um professor que despertou nele o prazer de ouvir, apenas ouvir e sonhar.
Lembrou-se de um amor antigo. Ela havia passado pela sua vida como uma ressaca do mar, arrastando tudo que era dele. Deu a ele seus sonhos, seu corpo, imaginou a sua história na dele. Ele a perdera por egoísmo ou covardia, por medo ou vergonha, não conseguia esquecê-la, não iria fazê-lo nunca.
Naquele momento de lembranças esta última era a que lhe chegava com mais força. Era a que doía mais. Ele sentia a sua falta mais do que qualquer outra falta, mas sabia que ela não iria voltar, já estava com outro, já juntara os pedaços do seu coração enquanto os dele unidos não estariam nunca mais. Estavam separados pela culpa que vem da consciência, pela dor do arrependimento, pela amargura de um coração que descartou a oferta gratuita de felicidade.
O devaneio era absurdo quando lágrimas irromperam incessantes, barrando o fluxo de lembranças que escorria e jorrava sem parar. Ele chorava e gritava, se debatia na cama, contra muros invisíveis ao seu redor, dava socos contra o vento, era violentado pelo tempo, se coçava sem parar. Era como se ele quisesse arrancar de seu corpo formigas que o incomodavam, bichos que o picavam.
Quando o dia já nascia as lágrimas secaram, estava cansado de chorar. A coceira havia passado e deixado na pele marcas de dedos agressivos que outrora tentaram, inutilmente, arrancar uma praga mortal. De súbito se levantou e conseguiu andar. Seu corpo, seus limites físicos e sua racionalidade superficiais estavam de volta.
Olhou-se no espelho e viu o reflexo da loucura, a imagem do abandono, da mais profunda solidão. Voltou a chorar e permaneceu observando o cair das lágrimas, o contrair das faces, o desenho que a dor esculpia em seu rosto. Afundou-se em um narcisismo primitivo e depois dessa madrugada nunca mais se lembrou de nada, não sabia sequer quem ele era. Restou-lhe apenas um corpo obtuso e uma sensação de indiferença total em relação à vida. A tudo que lhe era perguntado ele apenas respondia: “Tanto faz, já não me importo”.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

III Semana Hércules Florence e III Seminário Imagem e Atualidade da PUC-Campinas

A mesa-redonda Natureza em Foco aconteceu nesta terça-feira, 18 de agosto, no Auditório Monsenhor Salim - Campus II da PUC-Campinas e contou com a participação dos fotógrafos Haroldo Palo Júnior e Adriano Gambarini, tendo como provocador o biólogo Rubens Rosa da Revista Terra da Gente.
A mesa é uma das atrações que compõem a programação do III Seminário Imagem a Atualidade organizado pela PUC-Campinas em parceria com a Câmara Municipal da cidade. Para quem não teve a oportunidade de assistir à mesa, na reportagem abaixo seguem algumas informações sobre a III Semana Hércules Florence, organizada pela Prefeitura Municipal de Campinas e também sobre o III Seminário Imagem e Atualidade da PUC-Campinas, especialmente sobre a mesa-redonda Natureza em Foco.
Vale a pena conferir a programação do Seminário, bem como as exposições de fotografia que estarão pelos campi da universidade até o dia 31 de agosto e, com isso, aprender a olhar a fotografia, seja ela qual for, de uma maneira mais crítica e reflexiva.



sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Náusea


Exponho-me nua aos vossos olhos de certeza.
Tento inutilmente governar os meus desejos,

por tradição pertencentes à esfera do singular e do ingovernável.

É como trafegar à beira de um abismo.
Encenar uma vida reclusa.

Protagonizar o retrato de uma beleza efêmera,

absurda.

O verdadeiro amor não conhece estéticas e modelos.

Tampouco conhece tempo.

Ele pode nascer das singularidades e desvios de um instante,

e permanecer adormecido na vastidão cotidiana dos anos.

O verdadeiro amor é menos sério,

mais amante.


Seca e fria.

Às vezes penso que a única lei vigente na natureza é a morte.

As pessoas são obtusas, disformes.

O mundo é uma náusea,

alimentada pela solidão,
anestesiada pela esperança.


M.V

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Bonecas da Primavera




O Grupo Primavera foi fundado por voluntárias em 1981 e desenvolve programas de educação complementar junto a meninas de 8 a 17 anos, moradoras do Jardim São Marcos, na periferia de Campinas. Atualmente, os projetos da entidade atingem mais de 400 adolescentes, suas famílias e a comunidade local.
O Grupo Primavera existe em um espaço que de longe pode parecer pequeno, mas, à medida que se entra pelos seus corredores e portas escondidas, salas vão se abrindo. São espaços livres onde acontecem aulas de dança, salas com computadores de última geração onde as meninas aprendem a utilizar as infinitas possibilidades da rede e são inseridas no mundo da tecnologia e salas sem computadores, mas com lousas e carteiras para que as meninas possam se construir por meio do conhecimento básico e essencial.
A grande marca do Grupo Primavera são as bonecas. Estas que são a companheira de infância de todas as mulheres, o rascunho de seus filhos do futuro, a promessa de um talento de ser mãe. O grupo primavera tem um espaço onde funciona uma oficina de confecção de bonecas de pano. Na oficina, um colorido que mistura alegria e esperança invade os olhos emocionados de quem entra. São retalhos espalhados pelo chão, linhas coloridas pelas paredes, mesas cheias de bonecas ainda não acabadas, pois nestas mesas estão sentadas mulheres e meninas com a missão de, justamente, terminá-las. Além da confecção de bonecas é possível notar que algumas peças de artesanato também saem de mãos tão habilidosas, sensíveis e lutadoras. Tudo é feito com muito cuidado, a boneca é delicada e autêntica em cada detalhe, parecendo sofisticada e simples, infantil e madura, às vezes menos brinquedo e mais menina, mais uma das meninas do Grupo Primavera. As bonecas depois de prontas são vendidas em uma loja do Shopping Galleria em Campinas, espaço cedido gratuitamente pelo Shopping ao grupo. Toda renda proveniente das vendas é revertida em benefícios para o Grupo Primavera. Sem dúvida alguma, a oficina de bonecas é um dos motores principais desta entidade voluntária, já que além de oferecer trabalho para as mulheres da comunidade e atividade para as meninas do grupo, gera uma renda que ajuda o Grupo a crescer e se modernizar cada vez mais, visando sempre uma melhor formação humana e educacional, com base em valores e vivência cultural.




No entanto, a oficina não é o motor principal do Grupo Primavera. Mais importante do que ela é a iniciativa, a coragem e a determinação de um grupo de mulheres que decidiu, voluntariamente, olhar para outras mulheres que precisavam exatamente deste olhar. Simone Rodrigues, uma das mulheres que fazem parte do conselho da entidade, lembra que as meninas, em sua maioria, não têm histórias muito felizes. São traços do abandono, da desigualdade de oportunidades e do desperdício de talentos. Vítimas da violência, da ausência de cultura e educação. Desconhecem essas meninas o que é esperança e sonho.
No entanto, uma vez no Grupo Primavera essas meninas conhecem outra realidade. “As meninas ficam o dia todo aqui com a gente. Elas se revezam em atividades como aula de dança, aula de informática, aulas referentes às matérias básicas do ensino infantil, fundamental e médio e de cursinho preparatório para vestibulinhos dos cursos técnicos. Para ministrar todas essas atividades, contamos com um grupo de educadores, psicólogos e temos também uma assistente social”, diz Simone.
Enquanto andava pelos corredores do Grupo Primavera e me admirava com tudo aquilo, pensava em como os brasileiros lutam para melhorar a realidade do nosso país. As mulheres do Grupo Primavera me fizeram lembrar como somos um povo corajoso, que, de repente, deixa de olhar para si mesmo e olha para o próximo, para alguém que precisa de mais, que pede mais.
O Brasil ainda está cheio de desigualdades, abismos, cenas que envergonham e chocam, ainda estamos longe de uma democracia, muito menos de uma civilidade humana e cultural, mas temos exemplos como o das mulheres que construíram e constroem diariamente o Grupo Primavera e, como elas, aposto que muitas outras também dedicam parte do seu dia e do seu tempo para ajudar o outro sem exigir nada em troca, exemplo maior de alteridade e consciência social.
É com ações como a do Grupo Primavera que se constrói um país melhor. O Grupo me encantou, pois reúne tudo o que um país e seu povo, principalmente seus jovens, precisam: educação e cultura.
Que as bonecas do Grupo Primavera espalhem sua beleza, suas cores e sua inocência por esse nosso mundo que há muito parece ter se esquecido delas.

Uma vez vi uma flor se abrindo no inverno, a despeito da neve...
Nunca me esqueci. Tomei essa visão como metáfora do que acontece na vida: nos campos queimados pela geada, há sinais de Primavera.
Assim é o Grupo Primavera, sinal de esperança para crianças e adolescentes que não têm esperança.
Ao pensar no Grupo Primavera, eu sorrio de felicidade como corri ao ver aquela flor teimosa sob a neve...
Ajudar o Grupo Primavera é ajudar a Primavera a florescer...

Rubem Alves
Educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Unicamp



Do ninho do passarinho
Ele voa rapidinho

Com olhinhos de jasmim

Ele pisca para mim!

Mariela Concino dos Santos, 10 anos


Menina quando nasce
Chora sem parar

De onde sai lágrima menina?

Sai do meu olhar!


Gracielle B. de Mello, 11 anos


Essas poesias foram produzidas por meninas do Grupo Primavera em oficinas realizadas pela poetiza Sarah de Oliveira Passarella na última semana de julho, com 28 meninas, de 10 a 11 anos.

O Grupo Primavera recebeu o prêmio Kanitz Bem-Eficiente, "Melhor da Década" (2006) e tem conquistado reconhecimento nacional e internacional, como da UNICEF e da UNESCO.


Loja do Grupo Primavera


sábado, 8 de agosto de 2009

A minha palavra


Sinto-me tão refém de minhas palavras, como se delas dependesse meu último suspiro, minha derradeira sombra de vida, meu vestígio de loucura, meu resto de dignidade, meu abismo do desespero, minha solidão cruel e assustadora. Estou esmagada pelas minhas palavras que sempre me consumiram mudas e absurdas, que sempre de mim brotaram incontidas e violentas, simples e enigmáticas. Elas sempre foram minha segura companhia, meu amor que nunca me abandonaria, o beijo na minha alma, o toque cortante na minha pele.
Minhas palavras sempre foram a música nos meus ouvidos, os sonhos de minha vida, as ilusões do meu caminho. As letras insistem em cair no colo do meu destino, me visitam, me irritam, me seduzem. São cruéis e generosas, ásperas e macias, lindas e tenebrosas. Novamente, estamos apenas eu e minha palavra. Não sei fazer outra coisa que não seja escrever e cantar algumas de minhas letras. Disseram-me uma vez que sabia olhar pessoas, digo que aprendi a olhar o que elas escondem, aquilo que não mostram e tudo isso traduzir em palavras e impressões.
O que escrevo brota de meus traumas, de minha solidão espremida em sorrisos que me acalmam o peito e disfarçam o fogo de minha alma. Escrevo desde sempre, olho o mundo com demasiada atenção, às vezes ele embaça meus valores e aí é por meio de minhas palavras que mudo de repente de convicção. No entanto, não deixo de escrever ilusões, doces por natureza, santas e necessárias ilusões. Às vezes quando escrevo minha pele queima, minha mente ferve, meu peito pulsa e minhas mãos tremem em busca da melhor palavra, aquela que nunca me interessa ou satisfaz por completo.
A palavra certa me deixa nua, retira-me dos limites de meus medos e preconceitos, joga-me na lama do amor, nos delírios incontidos do prazer. Escrevo porque está além de meu controle não fazê-lo, as letras são meu ar, as metáforas meu endereço, a literatura meu refúgio. Na literatura não sou mais eu mesma, sou a personagem que me fascina, sou o enredo que me prende, sou o detalhe que me angustia. Escrevo e já escrevi tanto, adoro minhas letras velhas, meus rabiscos ingênuos, minha dor enferrujada.
Às vezes sou prosa, às vezes poesia, com esta última nem sempre me entendo, por vezes, sentimentos tão dolorosos e incontidos extrapolam os limites formais e necessários da poesia. Mas sempre procuro ser poeta na prosa, encaixando tantas quantas forem as figuras de linguagem e construções ricas de um texto nos traços de minha vida. Escrevo palavras sedutoras, contraditórias, afundo-me na minha infância solitária e dela retiro o que preciso pra ser autêntica e corajosa na vida. Minha palavra é brava, pungente, forte e humana.
Vivendo e construindo, intensa ela seguirá.

Princesas decaídas e reflexões sobre o amor

Branca de Neve: cheia de filhos e o príncipe no sofá


Qualquer mulher quando visita sua infância se lembra das princesas e heroínas dos contos de fadas. Mulheres lindas, sensíveis, inocentes e, ao mesmo tempo, sedutoras. Mulheres perfeitas, idealizadas, possíveis apenas no território da ficção, distantes das dificuldades e da realidade da vida. Talvez, o que sempre tenha nos fascinado nessas princesas seja justamente essa perfeição e a certeza de um final feliz, aquele onde todas as dificuldades e maldades são superadas em busca do tão repetido “e eles viveram felizes para sempre”.
As princesas são parte da infância de muitas mulheres. Elas são nossos sonhos, nossa projeção, a inocência típica desta inicial fase da vida. Difícil encontrar uma mulher que não tenha uma princesa preferida, mais difícil ainda encontrar alguma que não sonhou com um grande amor, talvez um príncipe que não viesse em um cavalo branco, mas que soubesse ao menos fazê-la feliz. O fato é que um dia acordamos para a realidade ou a realidade nos acorda, vemos que os príncipes não são tão belos assim, as princesas não tão perfeitas e as histórias nem sempre tão felizes e carregadas daquele maniqueísmo simplista.
A fotógrafa canadense Dina Goldstein vem nos ajudar nesta descoberta com sua série “Fallen Princesses” (Princesas Decaídas), onde ela traz as princesas popularizadas por Walt Disney para o mundo real, que inclui situações nem sempre tão agradáveis. As fotografias são belas, coloridas, inteligentes e reais. Além de criativas, propõem uma reflexão sobre a realidade do amor por meio da estética da arte.
É, um pouco de realidade não faz mal a ninguém, afinal, se os contos de fadas não existem o verdadeiro amor mostra-se real e belo justamente nas suas dificuldades e imperfeições, materializando-se em diferentes histórias do nosso cotidiano, muitas vezes, o que nos falta é apenas um pouco de coragem para vivê-lo já que o verdadeiro amor costuma não ser o mais fácil. Mas, como dizem, a sua chama não se apaga nunca, nem mesmo depois da morte.

domingo, 2 de agosto de 2009

Passos de lá


Por aquelas terras de lá
Vive uma dor calada
Uma seca de tamanha secura
Que fura pedra
Esmaga um coração que guarda ainda doçura

Por aquelas terras de lá
A vaidade das vaidades
Cultiva-se com esmero
A estreiteza dos sentidos
As banalidades do cotidiano insincero

Por aquelas terras de lá
Fabrica-se o alheio do alheio
Loucuras se esparramam
Filosofias se cansam
Quando vãs tropeçam mais do que dançam

Por aquelas terras de lá
As pessoas seguem os rios
Os rios correm pro mar
A tristeza preenche o olhar
Tão profunda que dá medo só de reparar

Por aquelas terras de lá
Passam poucos passos
A brisa penteia finas folhas
Histórias e lágrimas caem ligeiras
Quando passa o tempo em apressados passos

M.V

O cochicho do nada





Anton P. Tchekhov (1860 – 1904) pode ser mais claramente definido como aquele que preencheu o mínimo com o máximo. Ao contrário dos vastos panoramas de outros escritores russos como Dostoiévsky e Tolstói, ele concentrou os grandes problemas humanos nas formas breves do conto e da novela e construiu uma obra dotada de força extraordinária, sensibilidade assustadora, enredos angustiantes, detalhes minuciosos e qualidade indiscutível que a fizeram uma das principais portas de entrada para a literatura contemporânea.
Tchekhov impressiona pela leveza e, ao mesmo tempo, pela densidade e dificuldade do relato. Lê-lo não é fácil. É como penetrar nas regiões mais gélidas e profundas da alma humana, sentir-se sufocado, angustiado e, por fim, aliviado por já ter visitado o que mais pode um homem angustiar: a solidão e o reconhecimento da miséria de nossa existência.

No livro O Beijo e outras histórias, a tradução esmerada de Boris Schnaiderman nos traz contos que reúnem as peculiaridades e os traços e temas do cotidiano mais constantes em Tchekhov. No conto O Beijo, o leitor é conduzido a um mundo de imaginação, fantasia, sonho e loucura para se perder em um labirinto obscuro que conduz à dor calada e seca das existências mudas e absurdas por que solitárias e vazias. Já no conto Enfermaria nº 6, o mestre russo da narrativa curta expõe em faces nuas e cruéis os limites entre a razão e a loucura, faz com que o leitor conheça em palavras duras e frias - assim como as paredes da enfermaria - aquilo que somos no mais fundo, aquilo que apenas a cada um de nós se faz real e doloroso. Nas linhas deste conto fica clara a conversão de quem cura em quem padece e nas entrelinhas o inferno de nossa humanidade estreita e banal que um dia conhece a glória e, no outro, apenas incompreensão, abandono e indiferença, menos dos outros do que de si mesmo.
Tchekhov se embriaga do que de melhor existe na literatura: a linguagem correta, o detalhe decisivo e a forma insinuante do relato que conduz ao inacabado e permite a reflexão de quem lê. Por tudo isso, renovou a narrativa curta com emoção e inteligência, combinadas na exata proporção.




Anton P. Tchekhov


Machado de Assis


Algo interessante ao lê-lo é perceber as claras semelhanças existentes entre ele e Machado de Assis. Em suas letras nos sentimos estranhos e, ao mesmo tempo, em casa já que o fio do enredo tchekhoviano parece ser tecido com as mesmas linhas do enredo machadiano. Semelhanças se notam nos temas do cotidiano, nas sutilezas de tratamento e no universo social abordado.
Assim como Machado de Assis faz no conto O Espelho, Tchekhov em Enfermaria nº 6 constrói um personagem que dialoga com a solidão e se faz obcecado por encontrar um sentido para sua existência. Tanto o velho professor de medicina de Tchekhov, quanto o alferes Jacobina de Machado de Assis estão prontos para ver o apagar das luzes, para sentir a frieza do fim e ouvir o cochicho do nada. O primeiro pelas ilusões da loucura, o segundo pelas lâminas do espelho. Os dois pelos mistérios da alma.