terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A Noite Vermelha e Branca


O recorte da janela se desenha sutilmente enquanto a chuva se espamarra fina e delicada. Meu pensamento mudo, como uma névoa espessa e esfumaçada a misturar-se com a água que escorre estilhaçada pelo tempo e desaparece no fundo do ralo de um mundo difícil, povoado por uma tristeza quase contente. Quando fecho os olhos, já não escuto a chuva. Meu corpo parece alçado pelo vento em ruas de outrora.
Nos rios me afogo, apenas belisco a sombra do meu corpo projetada na branca sombra pálida da parede do meu quarto úmido e quente. Para onde olho, fico a imaginar meus dramas, a natureza obscura de meus fantasmas. Enquanto aqui estou deitada, a vida simplesmente passa e confesso que o que quero é que o tempo passe. Os fatos de ontem e hoje são ocos, assim como creio que serão os de amanhã. Todos são apenas fatos. Sem forma. Sem o preencher dos sentimentos. E tudo ainda me diz mentirosa. Pergunto apenas quais seriam as mentiras menos mentirosas.
Agora penso no amor, absurdo e maravilhoso, a atingir tantas e diferentes pessoas. Poucas delas também absurdas e maravilhosas. Aos poucos, deixamos de ser maravilhosos e absurdos quando aceitamos as coisas estúpidas e banais. Aos poucos nos tornamos mesquinhos, tristes, melancólicos, vazios. Cheios de praticidades fúteis e vulgares, manias eternas, sonhos poucos, aflições menos sinceras. Quando percebemos, o amor já é morto antigo e nós, apenas errantes perdidos. Eles, apenas bondade sem coragem, a mornidão do espírito que nem chega a dar pena e sim raiva. Pessoas valendo mais que sentimentos. Um tédio sem volta. Versos secos e palpáveis.
Acendo, quando cai a noite, meu derradeiro feixe de memórias, sobre ele é como se camadas de poeira fossem se acumulando, uma sobre a outra, e me embriago com loucuras. Não me atrai a lucidez. À noite sou cega. Vejo apenas a essência sutil de mim mesma, aquilo que chamam de alma. Sinto apenas a pior das dores. Aquela que não ouso descrever. Aquela para a qual as palavras ou sons são ausentes, a derradeira e inútil desintegração de uma saudade. Quando já não moro mais em mim mesma.
E em um impulso terrível, mordo a noite. Caio da cama, congelo meu corpo na água fria da chuva, vejo você entrando nu com o corpo suado e terrivelmente belo. Então, apenas fica em silêncio, arranha minha pele. Faz com que o amor maravilhoso e absurdo exista em nós. Esse amor que vive fora de nós, fora das armadilhas do tédio, porque aqui o sentimento é maior que as pessoas, que a idade, que o próprio tempo. O sentimento não se entendia, é alheio a todo resto.
E acontece mais uma vez.
Quando já sabemos que vai voltar a acontecer, porque em outros tempos esse encontro sempre aconteceu. Neste instante não mordo mais a noite, apenas a tua boca vermelha.
Quando abro os olhos, diante de mim, apenas a parede, vertiginosamente pálida. Sobre meu corpo suado rosas se espalham. Vermelhas e brancas. Buscam meu coração verde, desassossegado. Estarrecida, um tanto quanto taciturna, volto a fechar os olhos. Busco habitar as minhas profundas cavidades, expulso de mim mesma as aflições e vaidades.
Solto um suspiro que se esvai como um fio tênue, o silêncio se expande, escavo-me em busca de palavras. Elas não vêm. Sou mais do que vazia, até os pesadelos agora fogem de mim. Enfim, adormeço pensativa e absurda, sem esperar que seu corpo nu entre novamente pela porta de minha alma. Sem esperar que o barulho intermitente da fina chuva cesse de repente.
Esse barulho da chuva embala meu sono. Sono sem sonho, no qual eu apenas aliso as costas do tempo.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Abraço


Um dia para remexer nos guardados, tirar daqui, colocar ali, desfazer nós, encontrar saudades, resgatar lembranças, esvaziar os espaços, ir, aos poucos, preenchendo a alma.
Assim o fiz hoje e acumulei mais sacolas do que esperava. Separei tudo com carinho e cuidado pensando nas meninas que usariam algumas roupas que foram minhas outrora e comigo passaram alguns momentos a olhar certas cenas com uma sofreguidão às vezes nem sempre aparente ou com uma desconfiança nem sempre prudente, uma advertência, um aviso, uma bela surpresa ou uma íntima emoção. Agora, ganhariam elas as formas de outro corpo, os destinos de outra alma, os mistérios de outro olhar, o cheiro de outro suor. Mesmo sem saber que forma elas teriam e quem exatamente as usaria, uma certeza ao menos eu tinha: a de que elas estariam muito “bem servidas”.
Andei, olhei de relance todo quarto e me detive nas gavetas que se achavam mais vazias, como quando decidimos enfrentar nossos medos e angústias mais escondidas, lavar o fundo de nossa alma, tirar a poeira do canto de nossos dramas e inseguranças, um movimento que dói, mas o único capaz de realmente fazer brilhar os cantos, respirar aliviada a alma, encontrar espaço a alegria, mesmo que em ponta, resto ou diagonal da emoção. Em poucas palavras, tudo se arrastou um tanto dolorosamente para fora do tapete nostálgico que disfarça os buracos e manchas espalhadas pelo chão da minha vida selvagem e primitiva, como coisa que desvenda por dentro.
Ao olhar, deparei-me com um urso grande, daqueles bem gostosos e macios, um urso que ganhara ainda quando a infância a habitar totalmente em mim pedia braços deliciosos que a envolvessem e a protegessem de um mundo novo a abrir-se, mundo do qual eu jamais sentia medo nos braços de um lindo e macio urso a abraçar-me. E quanto nele eu me deitara, tão leve, tão pequena, tão cheia de sonhos e graças amadas...!
Decidi que meu tempo com o urso já passara, olhando para mim percebo que os seus braços já não me abraçam por serem curtos demais para o meu corpo que ainda continua frágil, mas já demasiado grande para ser completamente abraçado. É um abraço que já não me abraça, como aqueles abraços dados quando o amor acaba, abraços vazios, menos apertados, mais apressados, tão evasivos, tão pouco intensos e emocionados, mas, neste caso, o corpo não se torna grande como acontece comigo em relação ao urso, o amor é que se torna tão pequeno a ponto de não poder sequer ser alcançado por um abraço. Pensei um tanto excessivamente reflexiva e com uma leve ponta de angústia que o amor, em alguns casos, de fato tem o tamanho e a dinâmica do abraço.
Tomei o urso em meus braços e não tentei um último abraço, já caíra no mundo, ele me trouxera outros abraços, tirou-me alguns, deu-me outros, o mundo me abraçou, soltou-me e agora me ensina como abraçar a mim mesma com coragem e firmeza em um eterno desencontro de braços e múltiplas estranhezas.
Com sacolas e aquele urso grande e gostoso, atravessei a rua. Entrei em uma casa que há tempos não via, um lugar que estava ficando mais bonito, as paredes estavam sendo pintadas novamente, uma única camada de tinta se via nelas de modo que a outra logo viria dar o acabamento final da reforma. Nos muros exteriores já repintados algumas palavras marcavam o concreto e atraíam os olhos de quem por elas passasse. As frases escritas eram curtas e soavam como uma poesia doce e suave, diáfana e tão leve que parecia voar e passar para o outro lado do muro, insinuando-se provocante pela rua. Um pequeno jardim enfeitava a entrada do prédio e a pequenez de seu tamanho era necessária à simplicidade e beleza natural de suas formas, canteiros e flores. Era como se a simplicidade do jardim o fizesse enorme, acolhedor, aconchegante, nem um pouco suntuoso, domesticado, artificial ou algo que possa parecer frio e arrogante. Em uma vertigem, de repente vi ali no jardim, brincando entre as flores, todas as 130 crianças que eu sabia que ali naquela casa viviam. Elas brincavam felizes, os olinhos brilhavam, os cabelos das meninas refletiam a luz do sol e dançavam no ritmo do vento, sua conexão com a natureza era tanta que pareciam sair de cada flor e transformar-se novamente na mesma flor e aí se faziam plenas, donas de um mundo no qual a realidade era apenas um pouco diferente, como na maioria das vezes acontece.
A realidade era que aquelas lindas meninas não voltavam para as flores de onde tinham saído, como acontecia com o meu devaneio, essas flores as deixavam sem sequer um toque suave de suas pétalas ou o aroma delicado de seu perfume e se perdiam pela vastidão dos anos e do mundo, aparentemente, alheio a tudo.
Perdidas de suas flores, as crianças esperavam que outra flor as aceitasse, jamais as outras seriam como a flor primeira, mas das crianças essas outras flores cuidariam, mesmo não podendo substituir por completo o brilho nos olhos e a sensação de sentidos capazes de serem trazidos apenas pela flor primeira.
Uma voz atendeu-me interrompendo meu devaneio e trazendo-me de volta à minha realidade naquele instante. A voz era de uma mulher que me pareceu extremamente bondosa e doce, portadora de uma atenção e de um cuidado que eu julgava serem, com certeza, maiores que os meus. Sem jeito lhe falei que trouxera algumas roupas que pra mim já estavam pequenas, mas que se achavam novas e poderiam ser usadas, apesar de precisarem de uma boa lavada. A mulher ia agradecendo-me com um sorriso lindo, um contentamento sincero, um olhar que quase me ofuscou tamanho era seu brilho e bondade gerados a partir de um gesto de outra pessoa quando duas meninas e um menino que ali moravam quase a atropelaram a correrem alegres e profundamente ansiosos diante de uma possível novidade que trazia cheiros de alegria e brincadeira no ar. Uma menina ainda pequena, de uns seis anos, adiantou-se na frente dos demais. De pele clara, cabelos loiros que desenhavam leves cachos nas pontas, olhos verdes, um tanto perdidos e solitários, ela agarrou o urso que eu trouxera, o abraçou forte e mostrou um sorriso aberto, realmente completo, um sorriso da infância, carregado de toda felicidade e inocência essencialmente gratuitas nessa fase da vida. Ai como é lindo, que gostoso, como é fofinho! Ai ele já é meu, esse é meu! , ela dizia com uma voz fina, delicada e ansiosamente extasiada. Quanto ao sorriso, mais que um sorriso de infância, aquele era um sorriso de uma menina que talvez nunca tenha tido um urso tão gostoso como aquele, que ela pudesse abraçar e se proteger. Era o sorriso de uma menina que na fragilidade e beleza de seus seis anos já conhecera uma das piores ausências que alguém pode um dia sentir: a ausência constante, arrastada, inexplicável e incompreendida em si mesma de um pai ou de uma mãe. Talvez, ao abraçar aquele meu urso, que se achava até um pouco sujo e empoeirado, a menina tenha sentido um pouco do perfume da flor que pelo caminho da vida ela perdera e tenha sido acolhida por braços de pelúcia que foram sentidos por ela quase que como pétalas e assim ela pode adorar aquele urso, esboçar um sorriso, deixar ver uma expressão de felicidade e proteção no seu olhar, ela pode se aproximar da flor.
Fui colocando as sacolas no corredor de pedra da entrada que conduzia ao interior do lugar, a outra menina e o outro menino já pegavam algumas delas e ajudavam a levá-las para dentro. Notei um olhar de tristeza e um leve desapontamento no menino quando disse que as roupas eram de meninas, mas, no fundo, vi que ele ficou contente pelas muitas moçinhas que ficariam felizes com as roupas novas e com o grande urso branco de pelúcia. Ele parecia já cultivar em seu jovem coração a chama da esperança que faria incendiar os seus olhos a cada nova vez que a campainha tocasse e que sombras de sacolas pudessem ser vistas a se desenhar pelo vidro da porta principal.
Quando a bondosa moça que abriu a porta se despediu gentilmente e a fechou atrás de mim, ainda pude ver através do vidro a menininha linda correndo saltitante e alegre pelo longo corredor de pedra agarrada ao urso, o abraçava de uma maneira tão forte que parecia que não iria soltá-lo jamais e que, provavelmente, hesitaria um pouco em dividi-lo com as outras meninas que, de certo também o adorariam, deitariam sobre ele, se confortariam e se protegeriam em seu abraço, como a menina de cabelos loiros cacheados nas pontas agora fazia. No entanto, tenho certeza que ela o dividira, o urso ainda tinha abraços para todas e, em meu pensamento, por muito tempo, o seu colo seria o lugar onde elas mais gostariam de estar, por ter o conforto e a maciez tão próxima das pétalas de cada uma das flores já perdidas de cada uma daquelas meninas.
Virando o corredor, a linda menina provavelmente o urso ainda segurava. Mesmo não podendo vê-la a imaginava e a imagino agora a envolver e abraçar aquele urso tão grande e tão macio. A lembrança do momento em que ela chegava e abraçava o urso, jogando-se sobre ele, tão contente, tão pura, tão completa, não me deixa, assim como não me deixam as lágrimas que insistem em rolar pelos meus olhos, incontidas, profundamente tristes e melancólicas, lágrimas a expulsar de minha alma a dor e a indignação profunda que sinto diante de um abandono tão cruel e miserável e que se choca com a beleza de uma cena tão linda, de um abraçar tão cheio de carinho e felicidade, tão repleto de inocência e gratuidade!
Como recordação, me salvará ou me acordará eternamente, o instante em que fechei o portão de ferro do orfanato e lágrimas nasceram da boca da minha alma indo deitar-se no contorno dos meus olhos. Estes, prontamente tentaram escondê-las, sufocá-las, porque aquelas lágrimas estavam doendo demais e queimariam feito brasa quando sobre minha pele fossem elas derramadas. E, em um sutil movimento de mãos, assim como a menina abraçou o urso, abracei eu as minhas lágrimas...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A boneca do silêncio


A cidade era quase como uma vila perdida, arrasada pela mais cruel de todas as tempestades que havia caído nos últimos anos. As ruas estavam desoladas, árvores entregues ao chão, restos de casas sendo levados pelo vento, mulheres, homens e crianças arrastando-se contra o tempo e não levando nada além do próprio sofrimento. A atmosfera era fantasmagórica e enquanto os homens vertiam lágrimas, os bichos faziam a festa. Para onde se olhava as formigas irrompiam grandes, fortes, orgulhosas, soberbamente impetuosas, os gatos saltavam dos esgotos com os olhos cada vez mais cínicos e desafiadores. Os ratos fugiam dos gatos e subiam pelo corpo dos homens, os sapos se multiplicavam, as baratas faziam arruaça e riam de modo quase que frenético e louco quando provocavam nas mulheres gritos que eram menos sinceros e mais afetados.
A Vila do Silêncio de fato nunca fora tão silenciosa e triste assim. Homens velhos, que nos dias de sol e prosperidade de outrora, sentavam nas calçadas e repousavam em baixo das pontes quentes e fortes conservando ainda um leve e constante sorriso a desenhar-se no rosto sujo, agora continuavam sentados, mas não mais em baixo das pontes ou na beira das calçadas, e sim em meio a destroços de um nada que levava a outro nada. No rosto de todos esses velhos homens, sequer notava-se qualquer vestígio de um sorriso, por mais disfarçado que fosse, era só olhar longe, só ausência, só falta e uma tão grande insegurança quase a engolir a própria tempestade , tempestade essa que insistira em levar todo o resto, menos esses homens de barba quase sempre longa, por fazer, e roupa rasgada, que se lançaram à tempestade, mas foram por ela negados. Era como se o movimento dos ventos e o cair das águas do céu lhes dissessem que eles eram da rua e não do céu, dessa forma, apenas os males que viessem da terra poderiam levar-lhes, jamais aqueles que brotassem do alto.
Assim quis o tempo, assim se deu o certo. Os homens velhos continuaram na mesma rua a olhar os outros homens que antes tinham uma casa e, agora, vagavam pela cidade sem quase nada. De fato, para os velhos que olhavam, nada naqueles outros homens de fato restava. Nunca foram muito afeitos a sentimentos de solidariedade. Nos tempos bons, tinham sua casa, sua comida e sua indiferença para com aqueles homens que moravam nas ruas. E, no entanto, ainda conservavam a mesma indiferença, o mesmo vazio de sentido, o mesmo medo em relação aos homens barbudos e com roupa rasgada que agora os perseguiam com o mesmo olhar faminto, com as mesmas mãos que pedem, com a mesma alma que chora.
A estas horas, a tempestade já cessara por aquelas terras, mas o céu ainda derramava uma água fina, leve e que parecia ser eterna. Ela caía, deitava e já não molhava o chão por demais encharcado. Era como se este últimao expulsasse a água, como uma mulher quando expulsa um homem de sua casa por estar cansada de se sentir tão triste, tão pouco amada, cansada de ter poucas alegrias e um coração já tão saturado de mágoas. A terra de Vila do Silêncio estava exatamente como o coração de tantas mulheres que pelas ruas vagavam. Olhando a todas como que instintivamente, um dos velhos da rua que se achava sentado em um pedaço de pedra, possivelmente saído de algumas das tantas já não existentes casas, deteve seu olhar perdido em uma mulher profundamente triste. Admirou-se porque neste momento todos da Vila estavam razoavelmente tristes, haviam perdido tudo, inclusive pessoas haviam morrido, havia uma ressaca generalizada que comprimia os corações como contra uma fogueira que os queimava e os deixava ardendo em brasas, brasas que nem mesmo a água fina e constante caída do céu apagava. Mas essa mulher tinha uma tristeza ainda mais profunda, mais triste, recortada por algo sutilmente mudo e, ao mesmo tempo, ensurdecedor. Seu corpo, mesmo olhando de longe, parecia doer. Aos olhos do velho sentado era como se ela tivesse o corpo todo dolorido, a cabeça pesada, os olhos queimando, a respiração entupida e entrecortada e a alma terrivelmente vazia e desolada.
Andava a trajes mínimos, tremia, mas não parecia ser de frio, apesar de o tempo estar cinza e congelado depois do ar ter sido varrido por ventos e chuvas tão fortes quanto frias e distantes. Seu tremor era de desespero, arrepio moral, dor encravada no fundo da sua solidão e, aparentemente, ainda latente. A mulher era múltipla e o velho, em um momento de alucinação e loucura, chegou a vê-la como aquelas lindas bonecas russas, que saem uma de dentro da outra, e a mulher parecia multiplicar-se, ser muitas para depois desintegrar-se em um nada, vertendo apenas sangue, um sangue a irromper vermelho sobre a neve branca.
A mulher era como um mistério e sua beleza se tornava um enigma cada vez mais escondido e enrugado na fina chuva que se derramava depois da tempestade. Tal como a boneca russa, de fato, era ela como uma mulher que sai de dentro da outra e o velho a essa altura já queria saber quem eram todas as mulheres que existiam dentro daquela mulher tão melancólica quanto bela. Mesmo assim, diante de toda sua angustiosa curiosidade, ele sabia, depois de tantos dias a olhar o homem que nascia, crescia e antes de morrer escolhia, como era difícil julgar a alma humana, seja daquela mulher ou de qualquer outra pessoa. A alma humana de fato é o mais recôndito dos abismos, envolto por uma névoa espessa ele se faz tão gélido quanto fantasmagórico, tão fascinante quanto vulgar, mesquinho e banal. Por isso, sempre dizia aos outros velhos que por ventura lhe escutassem ou a si mesmo em um monólogo inconstante e demasiado benevolente que ao julgar a alma de um homem parcialmente a gente sempre, em lugar de só querer ver a verdade exata com o intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças por falta de ternura e caridade.
No eco de todos esses pensamentos, o caos tomou conta da Vila do Silêncio. Muitos corriam de um lado para o outro, outros tantos lutavam entre si por um pedaço de pão velho e amassado, homens loucos e sem rumo abusavam sexualmente das mulheres de outros, mulheres inertes e ausentes se entregavam como máquinas a prazeres que nelas eram como gotas de veneno, lentamente as matavam, lentamente as deixavam. Crianças gritavam assustadas, nada continha a guerra sem rumo de quem já não tinha rumo nem mais nada, apenas um corpo que muitas vezes se arrasta por toda a vida, vida que simplesmente passa.
Os velhos da rua continuavam sentados assistindo ao caos generalizado, eram os únicos que não se atormentavam, tinham o olhar sereno, a alma amadurecida pelo frio do chão, pela faca cortante do vento. Talvez isso tenha se dado, pois, ao contrário de todos os habitantes da Vila do Silêncio, os velhos da rua eram os únicos que falavam entre si, trocavam uma impressão ou outra despreocupadamente para contar uma lembrança, para falar do frio ou para dizer de uma dor da alma. E assim, eles eram os únicos lá que realmente viviam porque sentiam frio, fome, porque tinham memórias e contavam as suas histórias. Os outros habitantes da Vila do Silêncio sempre foram só silêncio, dentro de qualquer uma das casas som nenhum se escutava, os anos podiam passar que isso não mudava, as pessoas eram frias, mecânicas, executavam, tarefas, não guardavam lembranças, não sentiam saudade, não contavam histórias, simplesmente iam e vinham a esmo, sem emoção em um completo, ausente e perdido nada.
O lugar era assim tão ausente de memórias, histórias e pessoas a sentir a vida e possuir além de um corpo também uma alma, que uma cruel tempestade resolveu por estas terras desabar, causando um caos e vazio tão grande que fizesse com que aquelas pessoas banais, enfim, tivessem que olhar umas para as outras e falar, brigar, fazer qualquer coisa, mas ter qualquer mísera história pra contar. E foi assim que caiu a tempestade, e foi assim que ela fez a todos sofrer, menos àqueles que já sentiam, já sofriam, já falavam, já existiam de fato. Menos aos que já eram da rua, da rua viviam a vida terrena demais, sofrida demais para merecer do céu castigos que atingem apenas os que voltam por demais seu olhar para as alturas, desviando-o da terra, dos homens de barba a esperar, contar e reparar.
Mas a pergunta que ainda resta de toda essa história de uma vila na qual as pessoas insistiam em não falar, não viver e não amar é: Se tais pessoas eram tão secas e incapazes de sentir uma real tristeza, o que dizer daquela mulher que um velho barbudo avistou brotando do meio da multidão e parecendo tão triste, tão repleta de sentimentos, tão a procura de algo, perdida e prolixa, tal como um jovem ainda inseguro de si mesmo e com tantos sonhos e medos em relação ao futuro? Aquela boneca russa que parecia gritar muda, sozinha, forte e impiedosamente acuada, como uma poesia que pode dizer tudo em uma rima e nada em mil linhas?
Quando o caos instalou-se na Vila do Silêncio de modo que esta rompesse o silêncio mórbido e infértil de tantos anos e anos, o homem que observava com os seus olhos e a sua barba, perdeu a bela e triste moça de sua vista já cansada. Agitou-se naquele momento, gritando inutilmente, de forma insistente e quase que tomada da mais absoluta certeza, o nome dela que ele nunca chegaria a saber ao certo qual era. Naquele momento, a chamava por Boneca, evocando novamente a imagem da boneca russa que nela ele vira há cerca de poucos minutos atrás. Neste instante, o velho que gritava Boneca era o único entre os velhos que gritava, partilhando um pouco do drama dos que passaram a vida toda calados. Os outros velhos da rua estavam todos sentados, alguns já dormiam, e outros estavam amontoados em círculo contando as histórias que há anos contavam todos os dias, enquanto no silêncio o restante da cidade vivia.



Como um facho de luz ardente a irromper por entre aquela atmosfera cinza e fria, a mulher apareceu de súbito ao lado do velho que por ela ainda chamava. De perto, o homem a achou ainda mais linda e, como surpresa, a percebeu menos triste, tomada de mais emoção e serenidade, como se tivesse encontrado algo que há muito procurava, como se tivesse ouvido a voz do homem que amava ou lembrado de um sonho bom que em algum outro tempo já sonhara. Agora, ela já não era mais múltipla e sim limpa, definida, uma só mulher, inteira, misteriosa, de posse da mágica do encontro consigo mesma. Foi assim que ela apontou a pedra sobre a qual o homem da rua estivera durante longo tempo sentado enquanto contemplava a sua tristeza de mulher que agora já se fazia mais sutil e apagada.
Disse ela de forma suave e doce:
- O senhor poderia devolver-me esta pedra sobre a qual estás sentado? Ela é o último pedaço que sobrou de um muro que existia em frente à janela do meu quarto que foi, como quase tudo por aqui, despedaçado pela tempestade, mas ainda o encontro vivo neste pedaço. Ah! Como estou feliz por tê-lo encontrado e o reconhecido em meio a tantos pedaços de um concreto tão amargurado. O silêncio deste lugar sempre me desesperou, nunca suportei o barulho do relógio a soar as horas que passavam arrastadas enquanto todos comiam calados, nunca suportei o barulho da poeira que caía de leve nos móveis da minha sala, nunca encontrei-me no som dos passos, do bater de portas, do abrir e fechar das janelas, da minha própria respiração, da noite descendo e do dia se indo.
O silêncio me doía os ouvidos, jogava-me em um estado angustiosamente mortal e desesperadamente enlouquecedor, faltavam as palavras, as lembranças, qualquer coisa de humano que pudesse dizer sim ou não, chorar, cantar ou tocar, proferir espasmos histéricos, mas que ao menos fossem carregados de sentimentos e autênticos, porque o silêncio no qual cresci sempre fora seco, não era um silêncio de dor, de respeito, uma pausa necessária que se estendia por alguns minutos ou horas para atenuar um coração, dar voz a uma melancolia, o silêncio deste lugar sempre fora oco, idiota, amuado. Sempre olhei admirada vós a conversades animadamente e depois de ver como vossos olhos brilhavam, encarava os meus no espelho, e os via tão esfumaçados quanto opacos.
Foi então que depois de muito olhar pela janela de meu quarto, encorajei-me a proferir minhas primeiras palavras a um muro vermelho que separava a minha da outra casa. Pra ele eu contava tudo, era com ele que sentia, que chorava, era nele que eu vivia e existia, naquele pedaço vermelho de muro, que me escutava e a mim respondia, desde que eu tivesse sensibilidade e coragem para entender e ouvir a sua resposta, quase sempre tímida. Sei que isso é loucura, falar com um muro, imagina! Mas o muro curou minhas dores todos esses anos, me fez ouvir ao menos o som da minha própria voz. Meus pais nunca deixaram que eu saísse de casa para falar com vocês, mesmo depois que já era mulher feita, se saísse, ao certo, seria terrivelmente repreendida com aquele mesmo olhar oblíquo e vazio de todos os dias.
Mas o muro me entendia, e aí veio a tempestade, o destroçou e foi então que fiquei tão triste a ponto de não me aguentar na minha própria tristeza. Saí à sua procura e eis que o encontro com um dos homens que sempre admirei. Bem que pensava eu, um dia estes homens barbudos salvarão o mundo e extinguirão este silêncio com a sua maneira de viver, com as suas memórias, histórias e lembranças, todas hão de brotar das suas belas e longas barbas pensava eu quando criança. Ao menos, saibam que devolveram a mim um pedaço do meu sentido, e se agora posso eu aqui falar com você é porque um dia escutei algumas palavras muito leves e doces, que atravessavam o ar com a delicadeza e a beleza de uma pétala de rosa e que eram proferidas por um muro vermelho, meu eterno e derradeiro amigo e conselheiro.
Um dia me disse ele que a Vila do Silêncio nunca aprenderia a falar de verdade porque as pessoas daqui são secas demais, e que uma tempestade seria mandada para estas terras de cá, para que ela pudesse molhar um pouco os homens secos que aqui sempre seguiram sem falar, e que depois da tempestade eles começariam a gritar, mas que nunca apreenderiam a essência do falar, já que falar, para o muro, muitas vezes não é simplesmente proferir som, falar é saber exatamente quais palavras de fato merecem existir por valerem mais do que o próprio silêncio. Quando isso ele me disse, entendi que por aqui, o silêncio valia mais do que qualquer palavra que chegasse a ser dita, porque os homens que poderiam vir a dizê-las não saberiam usá-las, sequer saberiam dizê-las, sempre foram tão inexpressivos na falta quanto serão na presença delas e, neste caso, para homens assim, é preferível o silêncio. O muro terminou dizendo-me que, nesta terra do silêncio, a palavra só continuará brotando da boca de quem realmente a merece, por saber usá-la tão bem quanto sabe desfrutar da plenitude de um olhar a arder no seio do tempo.
Depois de lindamente ao velho falar, a mulher tomou delicadamente nas mãos o pedaço vermelho do muro que com ela trocara tantas palavras nos últimos anos e, com um leve sorriso, virou-se e começou a andar com passos firmes e sem olhar para trás. O barbudo ficou pensando para onde ela se dirigia assim tão segura de si já que provavelmente da sua casa nada restara depois do cair da tempestade sobre essa Vila do Silêncio de cá. Mas, no seu íntimo, algo lhe dizia que ela sabia para onde ir, assim como sempre soube o que queria, assim como sempre repudiara o silêncio dos que com ela viviam, assim como sempre soube ser ela mesma, original a ponto de impregnar-se em um pedaço de concreto e fazer dele parte da sua solidão. Pensava o velho em como a adversidade amadurece um espírito, faz gerar tipos especiais que em nada se parecem “com todo mundo”, que se distanciam dos tipos comuns do cotidiano e se fazem verdadeiramente originais porque além da boa aparência conservam certo talento natural, uma personalidade marcada, ideias próprias e originalidades de espírito. Afinal, de que adianta o bom coração sem a grandeza de alma, de que vale a inteligência sem a capacidade de ter um pensamento legítimo que realmente seja seu, de que vale a beleza se a personalidade e sagacidade de quem a porta não for suficiente para fazer dessa beleza um enigma, um mistério capaz de revirar o mundo, de deitá-lo a seus pés, capaz de calar o silêncio ouvindo o mudo som de um muro vermelho a responder docemente aos anseios e alucinações provenientes da boca da alma humana, do desespero da solidão, do íntimo dirigido por vaidades menos ensurdecedoras e mais silenciosas?
Ao que o velho prontamente respondeu a si mesmo:
- Que o silêncio das madrugadas nos traga as respostas ou semeie mais dúvidas, não vale a pena pensar nisso agora. Só sei que as bonecas saem uma de dentro da outra e, no meu sonho, formigas as devoram.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Eu na noite escura




Sentada estou eu aqui agora
Mas ando na tua direção
Lembrando de ti
Com menos nostalgia
Mais emoção

Pensando estava eu outrora
Mas logo me desfiei em suposições
Desfazendo-se de mim
Com menos realidade
Mais alucinação

Escolhendo me surpreendi sem demora
Mas logo achei injusta a escolha
E a ti me entreguei
Com menos medo
Mais livre feito folha

Amando-te estava eu à noite
Mas logo me descobri escura
E por ti procurei cega e nua
Com menos razão
Mais loucura



Quero ir embora
Pois então digo que vás
Sem demora
Me deixe logo
Eu e a solidão
Presente na ausência
De tantas horas e horas
Mas é pra ir agora



Lê pra mim algumas linhas
Neste livro tão lindo
Cheirando a poesia
Me arrepio nas tuas idas e vindas


Me encontro em um desencontro
Cada vez mais complicado
Me teço em uma teia
Cada vez mais solitária
Me olho em um espelho
Cada vez mais distorcido e pálido
Me fabrico em um desespero
Cada vez mais inútil e ácido
Me abstraio deste cenário
Cada vez mais banal e asfixiado
Me penso demasiado
Cada vez mais louca e fantasiada
Me faço dupla
Cada vez mais conflitiva e entrecortada
Me aproximo do nada
Cada vez mais tudo e fascinada
Me busco em você
Cada vez mais lívida e apaixonada
Me rabisco nos meus mistérios
Cada vez mais teus

Eternamente em busca de morada....


vira vira vira
agora me lembrei contente
em um instante efêmero
mas carregando algo de presente
do homem virando lobisomem
que outrora eu dançei
em um estado de ânimo
próximo do que chamam de contente
vira vira vira
vira de repente



Resposta
que demora
assim me colocas nervosa
onde andas por estas horas?
sei que às vezes te escrevo demais
não te deixo em paz sequer por uma hora
mas hoje minha inspiração aflora
te pergunta em forma de poesia
pra não te encher demais com a prosa
se à noite não me encontrar
é que saí por aí afora...

M.V



terça-feira, 15 de dezembro de 2009

De computadores e mesas


Este tempo que não passa tem me sufocado. Olhos ardem, queimam, descem e se fecham cansados. Os braços já me doem, os dedos são lentos em clicar, recortar, escrever. O tempo se estende, longínquo, sombreado e ele se faz inútil, tão inútil quanto desencontrado. O mundo corporativo é todo muito engraçado, ao certo não nasci pra ele, encontro cada vez mais dificuldade em nele me adequar. Reconheço-me inevitavelmente como aquela roupa antiga que adoro, ainda a conservo no fundo do guarda-roupa, mas é por pura saudade e alimento da lembrança. Em mim ela não quer mais entrar, não passa pelo meu corpo que, mesmo sem que eu tenha percebido, cresceu um pouco nas laterais. Assim como essa roupa não me cabe, tal mundo de mesas, computadores, e pessoas sentadas em frente a eles, dialogando mudas e estáticas com ele, absortas e tomadas pelo sono, apatia e acomodamento não me faz nem um pouco feliz.

Diferentemente da roupa da qual ainda conservo certa saudade, deste mundo no qual me encontro atualmente, não guardo saudade, se é que é possível guardar saudade daquilo que ainda se vive. Mesmo assim, já não guardo saudade, pois sei que quando neste mundo corporativo não mais viver, definitivamente, não marcarão as minhas lembranças certa nostalgia, talvez apenas uma leve e serena emoção.. Isso me assusta às vezes. Afinal, como viverei? Como me sustentarei ou poderei ter e ver crescer uma família se não consigo me adequar ao mundo no qual todos parecem se adequar? Mas o que se repete alucinadamente é que não me sinto bem neste conjunto de mesas, nestas formas frias, nesta atmosfera de ar condicionado. Tudo isso me sufoca e as horas não passam. Aqui o tempo é lento, asfixiante, torturante e denso, assustadoramente denso. Mas, lá fora, quando vejo o mar, quando cercando meu corpo não há paredes, só há mundo, brisa, cor, umidade, cheiro de água, balanço de tons, toque de ar, sombra do vento, lá fora, o tempo simplesmente se esvai. Ai como isso me é insuportável, essa fugacidade é terrível, a fugacidade das melhores coisas, dos mais belos horizontes, dos mais puros cenários. Ao mesmo tempo, o tempo aqui, insiste em essa atmosfera fazer-me engolir e aceitar.

A lógica do tempo é estranha, mas mais estranha que ela são os homens e sua lógica de vida. Engraçado, mas esse mundo corporativo e endurecido no qual vivemos quase que a maior parte do tempo sentados, olhando para uma “linda e atraente” tela de computador nos deixa terrivelmente casnados. Cansamos de tanto ficar sentados. Inversões contemporâneas caro navegante.
Engraçado, mas há alguns anos atrás, não havia tantos carros como hoje, as distâncias não haviam sido tão encurtadas, os homens andavam mais e não reclamavam tanto que estavam tão cansados, tampouco diziam que não tinham tempo pra nada. Interessante, se não fosse tão desesperador. Hoje estamos nós aqui, corporativizados, cheios de carros, aviões, trens de alta velocidade, internet e tantas outras tecnologias despejadas gentilmente no colo dos habitantes da era da revolução digital, e mesmo assim estamos cansados e sem tempo.

O fato é que nem todos se sentem assim. A maioria adora a lógica moderna, corporativa, o que não é de forma alguma algo mal, muito pelo contrário, eu diria que é o normal. O normal é que as pessoas se corporativizem, se adaptem, decorem suas inúmeras senhas, lidem todos os dias com seus infindáveis comandos, códigos, a tecnologia está aí e é sim muito boa. Ela muito faz, a internet é uma revolução sem dúvida alguma, de fato democratiza o acesso à informação, é humanizadora e também humanitária já que permite também o acesso das minorias ao conhecimento e à possibilidade de representatividade.
Mas, creio que ao menos para mim, dentro da minha complexa e por vezes insuportável individualidade, todas essas revoluções estão deixando pra trás muita coisa. Elas estão acontecendo no mesmo movimento em que excluem outras tantas coisas, estão trazendo o novo, sem resgatar ou resolver as sombras que ficaram pra trás. De que adianta uma potencialidade tão grande para o ser humano, se ele está vazio das coisas mais primitivas, selvagens, bem mais próximas do mar ou da terra e tão longes das máquinas, das paredes, mesas e corporações?

Como disse, o mundo é corporativo, as pessoas se acostumam à lógica das empresas, usam da tecnologia e buscam conhecê-la e é bom que seja assim, acho até necessário que seja assim. Mas, continuarei achando que tudo isso não é suficiente, tampouco traz a verdadeira felicidade. E não me venham com os tradicionais “momentos de felicidade” que devem substituir uma felicidade que nunca é permanente.
A felicidade é permanente sim, pois ela só existe a partir do momento em que se compreende que a realidade traz dores e alegrias, na mesma proporção. Aceitar de fato essa condição e suportar a própria existência e a realidade, já é a conquista da felicidade. Nunca será feliz aquele que vive de momentos de felicidade, confundindo-os com momentos de êxtase, ilusão ou com o hedonismo mais infantilizado possível.

Regressando à lógica do tempo, aqui, ele segue lento em passar. Os olhos seguem ardendo, o copo frio pelo ar condicionado, a mente atenta e desperta em tentar entender. Para alguns, o corporativismo não faz parte de sua felicidade, a estes só resta sair dele, buscar outras zonas de mais sentido, que podem fazer nascer aquela felicidade permanente que se nutre da aceitação da própria realidade. As escolhas são sempre individuais, mas como esperança temos o fato de o corporativismo não ter ainda tomado conta de tudo, há outras alternativas, outras portas mais coloridas. Sempre há outras saídas.
Não adianta reclamar do tempo, não adianta se nutrir de tédio apenas por um salário no fim do mês, certas coisas definitivamente não compensam. O salário é importante, mas há diversos caminhos para consegui-lo, sem ter que ver seu tempo e paciência serem esmagados, seus valores e consciência serem linchados e destruídos.

Quem sabe algum dia as escolhas e atitudes do sujeito humano façam com que o seu tempo na praia, cheirando o vento, deitando na areia, pulando ondas, fechando os olhos e sendo atingido por aquele horizonte tão eterno e gostoso do pensar, não seja maior e passe enfim mais devagar do que o tempo que ele suporta sentado atrás de uma mesa, cercado por paredes, recebendo ordens e agindo mecanicamente, sem pensar, refletir criticamente, criar. E o mesmo vale para aqueles que orientam e sustentam o seu próprio vazio existencial por meio da vida do outro. Eis uma forma de gastar o tempo, de produzir vazios e uma sucessão de nadas, de desperdiçar os olhos percorrendo as linhas escritas pela vida do outro, ao invés de escrever sua própria vida ou, ao menos, buscar ler as linhas da vida de um personagem escondido e esperando para ser descoberto dentro daquele bom livro já empoeirado no fundo da prateleira.

Aos que querem mais, aos que buscam a beleza do mundo, dos seres, aos que querem de fato ser felizes suportando os nós da nossa existência, sugiro que, mesmo precisando de um mundo corporativo (para aqueles que dele não conseguem se desvencilhar) façam escolhas menos adultas e mais autênticas, pautadas pela sabedoria infantil, mas não pela infantilização hedonista, sugiro por fim uma boa caminhada à beira da praia, sem relógios, máquinas, compromissos ou data, sem tantas senhas e marcas. Com muitos livros e mais nada e, no fim, deixemos que a vida, com todos os seus encantamentos e decepções, nos empreste a grandeza escondida na vasta dimensão cotidiana de nossos dias e dias....

Detalhes...

"Quero saber a que horas você acorda, o que come no café, que fotos estão em sua mesa de trabalho, como a sua secretária se veste. Os detalhes, os detalhes...".

Marcel Proust

domingo, 13 de dezembro de 2009

Angústia

E essa minha ausência...
E essa ausência de mim mesma, essa vontade do tempo
E essa saudade do tempo, essa angústia apertada em meio a um medo do vento
E essa angústia que sufoca, espreme, enlouquece por dentro
E essa loucura insana, essa vertigem que assombra
E essa sombra que se esparrama, esse tempo diluído que não anda
E esse tempo que não anda e essa dor que não desanda do meu peito de criança
E esse meu peito que se arranha, se despedaça, se retorce em dramas
E esses dramas que me formam, deformam, difamam
E esse dia frio que me congela, me deixa sozinha, largada em minha cama
E essa cama que me é alheia, que me é distante, que me é dor latente sem cura e esperança
E essa cura que não me alcança, que faz de mim temor e agonia, disfarçadas e incontidas
E essa incontinência de tudo, quero gritar e o grito sai mudo, anulado, cinza e bruto
E esse cinza vai me diminuindo, sou agora só falta, saudade, vontade de outra falta
E essa vontade de ter mais tempo, de imaginar que você também quisesse mais tempo
E essa vontade de te chamar e ser ouvida, mas chamar-te eu não poderia
E essa certeza de que você jamais me entenderia
E essa sofreguidão irremediável de que você não viria
E de tudo é isso o que mais me dói
Tanta efemeridade me sufoca em perdidas letras e rimas
Espero-te em vão em tantos sonhos esfolados e amontoados
Ainda...

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os olhos de gesso


Ela olhava tudo ao seu redor e tinha olhos de gesso, precisos, escancarados, insinuantes e ironicamente sensuais. O olhar lançado era reticente, via a cor do invisível, ouvia as vozes do inconsciente mais distante, sentia os odores mais fétidos e também, os perfumes mais misteriosos. Sabia distinguir os sorrisos ansiosamente falsos, os alucinadamente ambiciosos, os tremendamente infantis, os naturalmente verdadeiros, os inevitavelmente exaustos. Estática, aparentemente alheia a todo o resto, a estátua julgava o homem, enquanto este passava sem sequer perceber a estátua.

A figura esculpida no gesso era a de uma mulher, segundo diziam, de uma deusa grega que cuidava daqueles que muito falavam e pouco sabiam, que muito consideravam e pouco sentiam, que muito apontavam e pouco entendiam, pessoas incrivelmente vazias, que mostravam como o caráter humano é permeado por grandezas e mesquinharias.
Especialmente hoje, estava a estátua ansiosa para os acontecimentos das próximas horas. Na bela casa, onde ela confortavelmente se achava instalada bem no centro da sala de estar, uma festa íntima se daria, não era nada para muitas pessoas, mas a dona da casa e, consequentemente, da estátua, estava comemorando seu aniversário o que revestia a ocasião de uma atmosfera outra, um tanto quanto especial e preenchida por aquela ansiosidade e expectativa próprias de acontecimentos que reúnem a diversidade humana em um mesmo lugar durante certo espaço de tempo.
A dona da estátua era a Srta. Karenina, uma mulher que apreciava as artes, o movimento da cultura, gostava das festas, da diversidade e alegria da vida e buscava viver esta última da maneira que melhor lhe aprouvesse. Karenina era, acima de tudo, uma mulher incrivelmente bela. Tinha traços harmônicos, um rosto pequeno, fino e delicado, olhos castanhos, assim como os cabelos, longos e lisos. Sua expressão era de certa euforia melancólica, seu olhar parecia ansioso e inquieto, sua boca era tensa e envolvente, seu semblante de maneira geral tinha algo de pensativo e cansado, como se escondesse profundas dores de outrora, pequenas e grandes mágoas. Mas, de forma geral, Karenina parecia sutilmente feliz, embora essa felicidade não fosse tão aparente.
Estava comemorando seu quinquagésimo aniversário e para tal data convidara algumas personalidades da cidade para a qual mudara apenas há cerca de dois anos.
Quando batia no relógio 21h, a estátua apenas observou os convidados que chegavam. O primeiro deles foi Ernesto, homem de uns quarenta anos, um tanto quanto sisudo e debochado. Gostava de promover longos discursos pelos lugares que frequentava, tinha idéias prontas e opiniões formadas a respeito de todos da cidade, menos dele próprio, diga-se de passagem. Falava de todos, sem exceção. Gostava de julgar os outros, sentia um prazer quase que explícito quando em um círculo de amigos se dispunha quase que euforicamente a discorrer sobre tal fato, envolvendo tais pessoas. Esse era um momento de excitação para Ernesto e, no fundo, a estátua percebia que quando falava de alguém era como se ele estivesse encontrando uma forma sutil e próxima de preencher o vazio que cercava sua própria vida, de suportar o valor da sua existência em estado puro. A estátua via nos olhos de Ernesto, o vazio e a amargura típica das pessoas mal-resolvidas, entediadas com elas próprias, nas quais habita o mais fino sentimento de inveja e ausência. A estátua tinha pena de tal homem, o achava digno apenas de pena, nada mais, apesar de entender o ser humano como algo extremamente complexo, a estátua só conseguia distinguir neste homem uma crise do existir terrível, que se mistura com sua arrogância e modelos próprios e superficiais.
O segundo convidado era Mateus, um garoto de vinte e dois anos, belo, alegre, amantes das mulheres, das festas, da noite e de todas as suas honrarias. Era alto, moreno e tinha profundos olhos verdes, que escondiam certa palpitação e revelavam uma grande euforia.
A primeira mulher que passou pela estátua sem notá-la, como até então todos haviam feito, era Dona Margarida, uma estrangeira muito simpática, de porte elegante, vestimentas exageradas, maquiagem pesada e forte, voz firme, olhos pequenos e um tanto quanto equivocados. Margarida era portadora de certa bondade que se confundia com uma esperteza disfarçada de ingenuidade. Ela tecia considerações a respeito da vida alheia, em diversos casos atuava quase como uma legítima alcoviteira e sobre a aniversariante desta noite, já dissera uma série de coisas que valem não por serem verdadeiras ou mentirosas, mas apenas por serem portadoras daquele primitivo e selvagem sentimento difamatório que visa apenas destruir o outro, atitude daqueles para quem basta as observações aparentes porque elas os alimentam, os iludem e os enganam mais que as análises mais cuidadosas e menos preconceituosas. A estátua via isso muito bem, dizia que certos tipos de pessoas preferem o engano à verdade, já que nunca foram e nunca serão dignas desta última.
Por fim, chegaram três moças e três moços, eram casais de namorados, todos jovens e apaixonados, aproveitando esses anos da vida que a estátua sempre ouvira dizer serem os melhores, algo em que ela não acreditava muito, já que vira, em outras ocasiões, jovens tão confusos e marcados pela mais profunda angústia e desespero ao lado de adultos maduros e serenos, assim como já vira jovens incrivelmente maduros e tremendamente sonhadores, ao lado de adultos imaturos, ambiciosos e controlados pela mais fria e vil maldade, esta última a tendo encontrado tanto em jovens como em velhos.
Karenina recebeu a todos vestida de preto, com um penteado singelo e elegante, munida de brincos e de um belo colar de pedras esverdeadas. Depois das formalidades iniciais que a estátua achava incrivelmente falsas e levemente engraçadas, a festa ganhou seu próprio ritmo, vozes misturadas com músicas compunham a atmosfera de mais uma noite ainda escondida.
Por fim, quando a festa já ia por demais avançada, eis que mais um convidado se avista. Munido de trajes simples, aparentava ter uns trinta anos, era magro e perfeitamente belo. A estátua simpatizou-se em demasiado com o mais novo visitante da noite, sentiu nele algo de nobre, fino, gentil e educado, apurou nele uma fina inteligência e uma aguçada sensibilidade. Fitou seus olhos verdes longamente e neles viu, além da beleza genuína e natural, algo de sonhador, um desejo de viver a vida, uma latência sensual, uma esperteza ingênua, um sentimento de amor mudo e que estava prestes e explodir em seu peito umedecido pelo calor da noite que já ia alta.
Karenina foi tomada visivelmente de forte inquietação ao ver o recém-chegado. Um tanto sem jeito ia cumprimentá-lo quando Ernesto e Margarida em coro, quase como em um belíssimo ensaio iniciaram seu espetáculo locucional da noite.
A estátua moveu imóvel seus olhos para Ernesto que assim começava:
- Eis que surge o mais novo amor de Karenina, um de seus mais novos rapazes. O comentário pela cidade é que estão de caso há algumas semanas e sabemos que, neste meio tempo, a presente dama que aqui faz aniversário, foi vista várias vezes com o nosso elegante Mateus que aqui também se faz presente. Desculpe-me as acusações Srta, sei que me tem elevada estima, caso contrário, não estaria eu aqui hoje em sua belíssima casa, mas minha força e índole moral não permitem que eu deixe de alertar essa senhora, essas moças e esses rapazes para o que vem acontecendo em nossa cidade. Noto uma total perversão, inversão grave de valores, afinal, Srta, com quem estás? Com Mateus ou com este que acaba de chegar e visivelmente já a perturba tanto? Acham justo uma mulher que se faz inteligente e mostra-se como exemplo de dama da sociedade, sair por aí espalhando esse tipo de comportamento e plantando como que uma erva daninha no seio da sociedade?
A estátua já se voltava a Margarida que assim continuava:
- Tens razão Ernesto, tenho ouvido muito a respeito de Karenina, quase não vim hoje a esta recepção. Onde já se viu travar relações com este rapazote e ainda andar por aí em público de braços dados com Mateus. Eis que se avista de fato o fim dos tempos, as mulheres não mais se dão seu devido valor.
A estátua voltou-se para Mateus:
- Vocês dois são tremendamente falsos, de modo que nunca na terra imaginei dois seres tão pérfidos, a começar por você Ernesto que mantém descaradamente em casa duas mulheres e nos fins de semana, sai com Ana, exatamente essa Ana que aqui conosco se encontra na companhia se um de seus namorados, este, por sua vez, já foi visto com Dona Margarida em situações nada favoráveis. Esta, já que aqui nos dispusemos a falar da vida alheia, tem uma filha que possui um caso já bastante conhecido com este outro jovem que forma o segundo casal da festa com a jovem Lívia. Lívia, que aqui se mostra na companhia de Claúdio, aquele que dá suas escapulidas com a filha de Dona Margarida, também já foi vista com Armando, meu querido irmão se é que se lembram. Armando tem uma namorada que, algumas noites, o deixa em casa para dar suas voltinhas com Sandro, este último jovem que aqui se encontra esta noite ao lado de sua linda, mas tremendamente ingênua namorada Alice, que parece ser a única honesta de toda essa história, portanto, faço aqui meu convite para que aceite meu pedido e saia comigo uma noite dessas, para que descubras novos prazeres bem como a doçura de um verdadeiro homem. Por fim, digo-vos que a Srta. Karenina, infelizmente, jamais me deu a honra de provar de seus belíssimos atributos e inteligência já bastante conhecida, não sei o porquê, mas prefere este rapazote a minha sedutora personalidade.
Disse Ernesto quase que em fúria:
- Já chega, você é um fedelho mentiroso Mateus Manuel, de onde tirou tais considerações? Teceste uma teia de acontecimentos totalmente inverossímil, de onde tiraste estas tolices, qual é o teu propósito?
Ao que Mateus prontamente respondeu:
- Do mesmo nascedouro vergonhoso e infecundo de onde tiraste as tuas considerações a respeito da Srta. Karenina. Ela, neste momento encontra-se quieta e estarrecida, pois não esperava que fosses ter a coragem de acusá-la no dia de seu aniversário, dentro de sua própria casa. Mas eu bem que a avisei que um tipo como o teu não mediria esforços para alimentar teu vazio buscando julgar a felicidade de outros. Por isso, selecionei um a um os convidados dessa noite de modo a reunir um grupo de pessoas que a Srta conhecesse e que, ao mesmo tempo, estivesse conectado por uma série de acusações difamatórias feitas por diferentes pessoas em diferentes locais desta cidade. Tens como vês o resultado. Não penses que podes chegar aqui e acusar de coisas a Srta Karenina porque sobre ti pesam tantas outras acusações e suposições.
Karenina por fim tomou a palavra:
- De fato não esperava esse tipo de comportamento de ti Ernesto e também de ti Margarida. O fato é que não me alongarei, mesmo porque não lhes devo satisfações. Sou feliz e se minha felicidade é o que lhes incomoda, nela ei de agarrar-me ainda mais. Não interessa quem amo ou deixo de amar, sei que apenas amo, coisa que o vazio em que vivem não permite que conheçam, tampouco saibam do que falo eu neste momento.
Sem mais considerações, Karenina viu saírem de sua casa um a um seus convidados, já agora em uma terrível briga e confusão que se dava entre eles. Todos estavam eufóricos e perdidos em meio às acusações feitas por Mateus, um caos se instalara encontrando terreno fértil no coração de pessoas onde reinava a secura e a desconfiança em si próprias. No meio da confusão, Karenina, Mateus e o rapazote que de fato viria a ser o jovem namorado de Karenina, só chegaram a ver o momento em que Margarida esbarrou na estátua que desde o começo vinha olhando e reparando demoradamente e cuidadosamente os presentes na sala, derrubando-a em um só movimento. A estátua transformou-se em cacos, diversos e múltiplos, no entanto, os dois olhos de gesso permaneceram completos e intactos, ambos os olhos a olhar ainda uma última vez aqueles tantos outros olhos confusos e caóticos que a fitavam em pedaços no chão.
Foi então que a estátua de fato percebeu como eram vazios aqueles olhos, como eram atônitos, perdidos, como eram tristes! A tristeza era tal que perfurou o gesso que dava forma aos olhos em pedaços da estátua e sob estes uma pequena poça de água começou a se formar sobre o chão. Eram as lágrimas que acabaram vertidas pelos olhos de gesso que até outrora ocupavam o centro da sala. A cada segundo a poça aumentava ainda mais, sinal de que as lágrimas sugadas eram muitas, sinal de que olhos de fofoca são tão vazios e secos que sequer suportam a sinceridade de uma lágrima!
No fim da noite, quando já era quase manhã e o céu já ia se tingindo de outras cores, Karenina e seu belo namorado, cujo nome não interessa a esta breve narrativa, amaram-se apaixonadamente sobre um chão inteiramente molhado, cujas lágrimas convertiam-se e fundiam-se nos seus corpos com o suor que emanava da imensa felicidade e completude de suas almas. Os olhos da estátua seguiam a reparar a cena e, quanto mais reparavam, mais choravam, em um eterno jogo dos que habitam a secura e o vazio do existir e daqueles que se encharcam nas águas gratuitamente oferecidas pelos primeiros. E assim, não há outra saída, quanto mais secos forem os primeiros, mais molhados serão os segundos!
Conta-se por aquela cidade que, ainda depois de muitos anos, seguiam desconfiados, atentos, insinuantes e provocadores os olhos de gesso quietos no canto da sala, oblíquos e inumanos, a revelarem o homem e distorcerem as almas, tanto as mesquinhas, quanto as gloriosas!

sábado, 5 de dezembro de 2009

A música

A sombra do seu corpo se desenha sutilmente na parede, sozinha e bem maior que ela própria. Lá fora uma bela música ecoa, alta, diáfana, quase que desesperada. A música vai atingindo a alma da moça dentro do seu quarto solitária. As letras e palavras ditas são belas, confundem-se com as lidas, perdem-se com as que até outrora jaziam adormecidas, ansiosas por serem descobertas.
A beleza do som se faz aparente e enigmática, tal como todo beleza insinuante que provoca tantos medos e resvala no coração selvagem e primitivo de cada um que de coragem se nutre ao dispor-se em um rompante a olhá-la. Olhar sem traduzir, olhar buscando embriagar-se da beleza que assusta o homem e insiste em desabrochar mesmo nas terras mais secas, nos horizontes mais improváveis. Eis a beleza que insiste em se desenhar sob tantas formas, olhares brilhantes, testas pensativas, bocas vermelhas e desenhadas por um leve e preciso sorriso, face marcante, doce, portadora de sofrimento ou nostalgia, sonhadora ou de todo impregnada de pura melancolia.
De dentro do quarto era como se a música de unisse às paredes, as pusesse em movimento, as entregasse a um completo êxtase. A essa altura o coração dela já era puro delírio e compartilhava do silêncio da noite pra gritar mudo todo seu alucinado desespero. A noite era escura e envolvente, sombria, portadora de sonhos e dramas, tal como a música que a seus ouvidos chegava mesmo que ela não a quisesse escutar, mesmo que ela lhe trouxesse lembranças cruéis e inevitáveis, mesmo que ela lhe fizesse percorrer uma caminho semeado pelo terror e pelo medo mais permanentes e mais imobilizadores, diante dos quais todas as certezas fogem, todo equilíbrio se esvai, toda razão torna-se terrivelmente vã e insuficiente. A música ali, naquela noite, naquele quarto, era só aflição. Era como se ela repartisse os últimos minutos de uma vida que se esgotava, se esvaía, se espremia, se desintegrava. Por fim, ela adormeceu, envolta por uma atmosfera embaçada e sonhou. No limiar do sonho era como se caminhasse rumo a uma condenação exata e irremediável. No devaneio, ela deslizava por um caminho de árvores, mas sabia que ao chegar à última seu corpo se expiraria em mil pedaços, cada um voando para outros ares.
Esse caminho por entre as árvores duraria exatos cinco minutos. Os dois primeiros seriam destinados a pensar nas outras pessoas que pela sua vida haviam passado e com elas dialogar, os dois próximos seriam reservados para reflexões subjetivas e o último para olhar por uma última vez o mundo que se avistava ao seu redor - ressabiado e lindamente costurado. E no trocar de pés, pensava em como não há tortura maior que dividir os últimos minutos que restam de uma vida, em como não há morte mais dura que a morte certeira e rápida, já que na lenta ao menos há esperança em cada golpe que passa.
Nos delírios do inconsciente quando ela por fim sumia, seu corpo de despedaçava ao som dos pássaros que cantavam a mesma melodia que ela estática e pensativa ouvira minutos antes, encerrada nas paredes verdes de seu mundo tão grande quanto a extensão de seus mais improváveis sonhos. E a sombra permanecia fiel ao seu corpo, encravada na parede, parecendo tecer um movimento de aumento, ficava maior bem delicadamente, até que de súbito também explodira. Em um só movimento a sombra se desintegrara no ápice da música, no abismo do silêncio que por trás dela habita as madrugadas.
A alma se fora para outras paragens. Deitado ali na cama jazia um corpo, mais nada!

Fragmento

- É isso mesmo. Vós sois inexcedivelmente bela [...] Sois tão bela que se fica com medo de olhar-vos.
- Só isso? Não diz nada sobre as qualidades dela? [...]
- É difícil julgar a beleza. Eu, pelo menos, ainda não sou capaz. A beleza é um enigma.

Dostoiévski, em O Idiota

Fragmento


Realmente era o retrato de uma mulher extraordinariamente bela; estava com um vestido de seda preta muito simples e bem cortado, com os cabelos, que deviam ser castanho-escuros, arranjados em um penteado singelo. Os olhos eram negros e profundos, a testa pensativa. Tinha uma expressão aflitiva e, por assim dizer, desdenhosa. E o rosto um pouco delgado era talvez pálido. [...] - Tem um rosto maravilhoso. E percebo que a história dela não é uma história comum. É um rosto prazenteiro. Mas não teria ele passado já por terríveis sofrimentos? Os seus olhos nos dizem isto, e as suas faces, e este trecho debaixo dos olhos! É um rosto altivo, pasmosamente orgulhoso, mas não sei se ela tem um bom coração! Se tiver, ah!...Isso a redimiria! De tudo!...

Dostoiévski, em O Idiota, em uma de suas descrições indescritíveis, tão próximas e tão distantes, de tamanha força dramática e beleza literária. Descrições tão humanas que, por vezes, quando desviamos os olhos de sua escrita densa e sedutora, acabamos por tentar nos certificar de que aquele personagem por ele descrito não saltou das páginas do livro para se acomodar delicadamente bem próximo de nossa, apenas aparente, solidão. E então, não nos encontramos mais sozinhos!

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Evangelho segundo Saramago

Adaptação teatral de O Evangelho segundo Jesus Cristo, em São Paulo, 2001

Jesus caminha pelo deserto na companhia de alguns pensamentos, outros ou os mesmos sonhos, lembranças e frustrações. Caminha entre o silêncio estático do universo, entre a força potencial da natureza, diante da infalibilidade de um destino a se cumprir.
Aos poucos vai protagonizando as cenas da história de um homem que foi dito “filho de deus” e messias, portador da boa nova, dos novos tempos, da era de paz e prosperidade, um reino que estaria aberto para os que de seus pecados se arrependessem e de deus esperassem o perdão purificador e renovador. Eis a história contada a mais de dois milênios, perfeitamente construída em seus detalhes, discursos, mensagens, pressupostos e subentendidos. A história de um homem capaz de curar os males, fazer sarar as feridas de dentro e de fora, fazer andar aquele que já não se movimenta, fazer ver aquele que já não enxerga, fazer brotarem peixes do fundo do mar e parar tempestades vindas do céu. Eis o homem que nasce e morre crucificado, para a redenção dos demais, para a glória de seu pai e para o “bem de toda humanidade”.

Os traços expostos nestas linhas tecem os fios de uma história já contada muitas vezes, por milhares de vozes, em milhares de anos, a história sobre a qual se funda o poder da igreja católica e do deus, protetor e acolhedor dos homens tão cheios de pecados. A história do “filho de deus” já é demasiado conhecida, no entanto, o que se sabe é a versão oficial, o que se conta, o que se continua e o que encontra eco em cada lugarejo deste mundo onde exista um homem em pé, falando ao demais, estes sentados ou ajoelhados, quase sempre de cabeça baixa e atenção tão estática quanto fugidia. O que se conhece e se repete é a versão dos vitoriosos, como acontece com grande parte da história da humanidade. Até que, um homem metido a brincar e embelezar as palavras, decide por meio de uma prosa tão bela quanto inteligente e poética, recontar a história que a milhares de anos nos é repetida de forma frenética e, ao mesmo tempo, ensurdecedora. Decide recontar essa história deixando pra trás a grandiosidade do simbólico, a abstração do miraculoso, a lógica do imagético, recorrendo apenas à simplicidade e essência das histórias que são essencialmente humanas, por acontecerem na terra e envolverem homens comuns, iguais a qualquer outro, com as mesmas aflições, os mesmos medos, os mesmos desejos, os mesmos sonhos, as mesmas incoerências.


José Saramago

José Saramago, escritor português, único escritor de Língua Portuguesa a conquistar um Prêmio Nobel em Literatura, autor de tantas belíssimas obras como Ensaio sobre a Cegueira, Memorial do Convento, A Caverna, A Viagem do Elefante, dentre outras, é o homem que se propõe a recontar a história do filho de deus, e o faz com tal maestria, apuro e trabalho de linguagem que torna possível que uma história tantas vezes já contada se torne tão surpreendente como se fosse a primeira vez que a escutássemos.
Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago conta aos homens a vida de outro homem e fala de história, vida, perdas, lembranças, destino e morte. Localiza a história no tempo e no espaço, descreve lindamente e de forma emocionada e sonora os lugares, a imensidão do deserto, a pequenez de uma casa, constrói as personagens de forma real e humanizada, ou seja, bem diferente da imagem revestida de santidade e simbologia que sempre se conheceu.

O Evangelho segundo Jesus Cristo se faz original desde as primeiras linhas. Maria é uma mulher comum, trabalhadora, corajosa, que ama e sucumbe a paixões como qualquer outra mulher. Dessa forma, ela não é mais aquela mulher virgem que engravida do espírito santo. Jesus e seus outros filhos são todos frutos de relações sexuais, tão ou mais lindas e puras do que a presença do espírito santo. Saramago vai desconstruindo em sua obra, um a um, todos os dogmas, preconceitos, moralismos e contradições sobre os quais se assenta a religião católica e a própria história de Jesus. Ele mostra um Jesus atormentado por pesadelos, inebriado por sonhos, cheio de dúvidas, desejos latentes da carne e do espírito. Um homem inteligente e perspicaz que, nunca se cega totalmente em relação ao poder que por deus lhe foi atribuído.




E assim, Saramago constrói o enredo de uma história que se escreve por meio de uma linguagem poética, esteticamente rica e bela, carregada de analogias, figuras de linguagem, metáforas, ironias e personificações, em meio a uma prosa densa, porém sonora, um estilo difícil porém completo, que se faz inteligente e audacioso em cada linha, que se surpreende e se interroga, ao mesmo tempo em que surpreende e interroga os olhos de quem pelas suas linhas passeia, por horas marejados e anestesiados.
Ao mesmo tempo, Saramago explora períodos de descrição que se fazem mais do que belos. Sua capacidade descritiva, imaginativa e associativa é tão grande, clara e exata que é como se nos sentíssemos caminhando pelo deserto ao lado de Jesus, como se sentíssemos a euforia de um milagre realizado, como se compartilhássemos nós também do pão e do vinho multiplicado, como se nossos punhos e pés também fossem perfurados e nosso ar fosse aos poucos faltando enquanto nosso espírito junto ao dele vai aos poucos se asfixiando, mas no nosso caso, asfixiando-se pela linguagem realmente literária e pela história tão bem dita quanto reinterpretada.

Difícil definir uma chave interpretativa para o livro de Saramago, acima de tudo, ele pode ser entendido por meio de uma chave interpretativa sociológica, histórica ou até religiosa e moral. No entanto, é fácil perceber como o autor desconstrói uma história que se consolidou ao longo do tempo não simplesmente pelo prazer de desconstruir e sim pelo desafio de construir uma verdadeira história, mais coerente, mais impregnada de humanidade, realidade e, por tudo isso, mais bela.
A narrativa começa descrevendo a cena da morte de Jesus, o final derradeiro para o qual já sabemos que ele caminha desde as primeiras páginas. O fato é que mesmo sabendo do fim, o meio deste evangelho se faz atraente porque recontado diante de uma nova perspectiva, um meio que além de novo, se sustenta e prende o leitor até as últimas linhas em razão da qualidade, refinamento estético, apuro e cuidado no relato.


Majoritariamente, a narrativa vai se tecendo linear, os diálogos (como já é típico de Saramago) seguem soltos em meio às entrelinhas do relato, dizem algumas palavras que das entrelinhas se sobresaem e escondem tantas outras dentro delas.
Como qualquer romance que se faça realmente bom, o percurso narrativo de O Evangelho segundo Jesus Cristo, tem seus ápices e seus momentos de devaneio e reflexão. Um dos ápices da narrativa, diz respeito ao sensacional diálogo que se estabelece entre deus, o diabo e Jesus. Tal diálogo é extremamente original a começar pelo lugar em que acontece. As paredes que o protegem são formadas por uma neblina que envolve os protagonistas em uma áurea mística e assombrada. O chão, na verdade, está a metros de distância dos seus pés, eles conversam sobre o mar, tão distantes da terra quanto do céu. Para não ficar apenas no lugar, o tempo do diálogo é bastante ilustrativo e pertinente. Deus, o diabo e Jesus conversam durante quarenta dias envolvidos pela neblina da qual já falamos, tão espessa que apenas em poucos pontos se faz transparente, que só se desfaz da superfície do mar quando o diálogo por fim termina e os seus protagonistas de dissolvem no mistério que envolve todos nós.

O fato é que neste diálogo, Saramago emprega toda sua maestria e habilidade literária para revelar um deus ambicioso, sedento por poder, glória e dominação, um deus que não mede esforços em provocar sofrimento, em derramar sangue e lágrimas, em despedaçar almas, tudo em nome de um poder que ele precisa ter para sua própria glória e redenção da humanidade. Além disso, esse deus se revela em toda sua frieza e ambição quando é tentado pelo próprio diabo, quando este, em uma tentativa de poupar a humanidade de todas as mortes e desgraças que virão, propõe negar sua própria existência, extinguir-se enquanto mal para que a humanidade viva em paz. O fato é que deus, neste momento, legitima o mal, afirma ser este necessário e vital para a sua existência e para a expansão de seu poder. Sem o diabo, deus não teria sentido, sem o mal o bem não existiria e, portanto, deus, aquele que prega pela paz, pelo bem, pela harmonia entre os homens, é o primeiro a legitimar a existência do mal, da fome, da guerra em um misto de soberba e contradição.

Esse é o deus que Saramago nos faz conhecer por meio de um novo evangelho, que não sabemos se certo ou errado, mas que, no mínimo, é mais coerente, humano e próximo das coisas da terra, dos seus desejos e das suas securas morais.
A principal lição que fica deste evangelho, além de um exemplo de como se construir literatura e de como trabalhar a linguagem da forma mais bela e emocionada possível, é a percepção e consciência de que algumas histórias se fabricam em seus pequenos detalhes e pormenores, de que alguns homens são construídos para serem heróis, mas não passam de homens como qualquer outro, de que um ser supremo que diz proteger e zelar por todos os demais, sempre acaba sendo seduzido pelo poder de seduzir a humanidade, sempre acaba abusando desse poder, sempre acaba sendo autoritário e, por vezes, mesquinho demais. Se existir um deus, com certeza, ele não é esse deus que a nós nos é apresentado sem que de sua imagem nunca sequer tenhamos nos aproximado e sim um deus muito particular, que é diferente e único para cada um de nós, para cada sofrimento, para cada sonho. Um deus que pode existir na beleza de um deserto, de um céu tingido pelas cores do escurecer, que poder falar pelo choro de uma criança, pelo riso de qualquer pessoa, ou pela lágrima sincera e emocionada que da banalidade destoa. Um deus que pode existir nas belas palavras contadas por Saramago, um deus que não controla ou dita regras, que longe de saber de tudo e ter a capacidade de perdoar, busca, acima de qualquer outra coisa, perdoar a si mesmo e reconhecer-se como essa espiritualidade, essa coisa que existe, paira no ar e não conseguimos explicar, essa coisa que às vezes é destino e às vezes é apenas vontade.

Por fim, o grande e último lance de Saramago neste livro é substituir a frase, talvez a mais dita e repetida no mundo, Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem, pela frase, Homens, perdoai-lhe, pois ele não sabe o que fez.
Diante da exatidão e do impacto dessa nova construção de Saramago, absurdamente inteligente e fantástica, fica claro de quem seria a culpa (se é que existem as culpas), demos agora a César o que é de César, peçamos aos homens que perdoem a deus e não mais a deus que perdoem aos homens, (leia-se romanos).


Nos momentos finais de o Evangelho segundo Jesus Cristo, Jesus vai morrendo e sonhando com os momentos em que conversava com seu pai – José, carpinteiro, homem, morto na cruz por engano – no vilarejo de Nazaré, e não com aquele que a humanidade diz ser seu verdadeiro pai – deus, divino, portador de todas as verdades e toda sabedoria, eternizado por um homem que também morreu na cruz por engano.
E eis que, nas palavras derradeiras, surge o diabo para recolher o sangue do filho de deus.