quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os olhos de gesso


Ela olhava tudo ao seu redor e tinha olhos de gesso, precisos, escancarados, insinuantes e ironicamente sensuais. O olhar lançado era reticente, via a cor do invisível, ouvia as vozes do inconsciente mais distante, sentia os odores mais fétidos e também, os perfumes mais misteriosos. Sabia distinguir os sorrisos ansiosamente falsos, os alucinadamente ambiciosos, os tremendamente infantis, os naturalmente verdadeiros, os inevitavelmente exaustos. Estática, aparentemente alheia a todo o resto, a estátua julgava o homem, enquanto este passava sem sequer perceber a estátua.

A figura esculpida no gesso era a de uma mulher, segundo diziam, de uma deusa grega que cuidava daqueles que muito falavam e pouco sabiam, que muito consideravam e pouco sentiam, que muito apontavam e pouco entendiam, pessoas incrivelmente vazias, que mostravam como o caráter humano é permeado por grandezas e mesquinharias.
Especialmente hoje, estava a estátua ansiosa para os acontecimentos das próximas horas. Na bela casa, onde ela confortavelmente se achava instalada bem no centro da sala de estar, uma festa íntima se daria, não era nada para muitas pessoas, mas a dona da casa e, consequentemente, da estátua, estava comemorando seu aniversário o que revestia a ocasião de uma atmosfera outra, um tanto quanto especial e preenchida por aquela ansiosidade e expectativa próprias de acontecimentos que reúnem a diversidade humana em um mesmo lugar durante certo espaço de tempo.
A dona da estátua era a Srta. Karenina, uma mulher que apreciava as artes, o movimento da cultura, gostava das festas, da diversidade e alegria da vida e buscava viver esta última da maneira que melhor lhe aprouvesse. Karenina era, acima de tudo, uma mulher incrivelmente bela. Tinha traços harmônicos, um rosto pequeno, fino e delicado, olhos castanhos, assim como os cabelos, longos e lisos. Sua expressão era de certa euforia melancólica, seu olhar parecia ansioso e inquieto, sua boca era tensa e envolvente, seu semblante de maneira geral tinha algo de pensativo e cansado, como se escondesse profundas dores de outrora, pequenas e grandes mágoas. Mas, de forma geral, Karenina parecia sutilmente feliz, embora essa felicidade não fosse tão aparente.
Estava comemorando seu quinquagésimo aniversário e para tal data convidara algumas personalidades da cidade para a qual mudara apenas há cerca de dois anos.
Quando batia no relógio 21h, a estátua apenas observou os convidados que chegavam. O primeiro deles foi Ernesto, homem de uns quarenta anos, um tanto quanto sisudo e debochado. Gostava de promover longos discursos pelos lugares que frequentava, tinha idéias prontas e opiniões formadas a respeito de todos da cidade, menos dele próprio, diga-se de passagem. Falava de todos, sem exceção. Gostava de julgar os outros, sentia um prazer quase que explícito quando em um círculo de amigos se dispunha quase que euforicamente a discorrer sobre tal fato, envolvendo tais pessoas. Esse era um momento de excitação para Ernesto e, no fundo, a estátua percebia que quando falava de alguém era como se ele estivesse encontrando uma forma sutil e próxima de preencher o vazio que cercava sua própria vida, de suportar o valor da sua existência em estado puro. A estátua via nos olhos de Ernesto, o vazio e a amargura típica das pessoas mal-resolvidas, entediadas com elas próprias, nas quais habita o mais fino sentimento de inveja e ausência. A estátua tinha pena de tal homem, o achava digno apenas de pena, nada mais, apesar de entender o ser humano como algo extremamente complexo, a estátua só conseguia distinguir neste homem uma crise do existir terrível, que se mistura com sua arrogância e modelos próprios e superficiais.
O segundo convidado era Mateus, um garoto de vinte e dois anos, belo, alegre, amantes das mulheres, das festas, da noite e de todas as suas honrarias. Era alto, moreno e tinha profundos olhos verdes, que escondiam certa palpitação e revelavam uma grande euforia.
A primeira mulher que passou pela estátua sem notá-la, como até então todos haviam feito, era Dona Margarida, uma estrangeira muito simpática, de porte elegante, vestimentas exageradas, maquiagem pesada e forte, voz firme, olhos pequenos e um tanto quanto equivocados. Margarida era portadora de certa bondade que se confundia com uma esperteza disfarçada de ingenuidade. Ela tecia considerações a respeito da vida alheia, em diversos casos atuava quase como uma legítima alcoviteira e sobre a aniversariante desta noite, já dissera uma série de coisas que valem não por serem verdadeiras ou mentirosas, mas apenas por serem portadoras daquele primitivo e selvagem sentimento difamatório que visa apenas destruir o outro, atitude daqueles para quem basta as observações aparentes porque elas os alimentam, os iludem e os enganam mais que as análises mais cuidadosas e menos preconceituosas. A estátua via isso muito bem, dizia que certos tipos de pessoas preferem o engano à verdade, já que nunca foram e nunca serão dignas desta última.
Por fim, chegaram três moças e três moços, eram casais de namorados, todos jovens e apaixonados, aproveitando esses anos da vida que a estátua sempre ouvira dizer serem os melhores, algo em que ela não acreditava muito, já que vira, em outras ocasiões, jovens tão confusos e marcados pela mais profunda angústia e desespero ao lado de adultos maduros e serenos, assim como já vira jovens incrivelmente maduros e tremendamente sonhadores, ao lado de adultos imaturos, ambiciosos e controlados pela mais fria e vil maldade, esta última a tendo encontrado tanto em jovens como em velhos.
Karenina recebeu a todos vestida de preto, com um penteado singelo e elegante, munida de brincos e de um belo colar de pedras esverdeadas. Depois das formalidades iniciais que a estátua achava incrivelmente falsas e levemente engraçadas, a festa ganhou seu próprio ritmo, vozes misturadas com músicas compunham a atmosfera de mais uma noite ainda escondida.
Por fim, quando a festa já ia por demais avançada, eis que mais um convidado se avista. Munido de trajes simples, aparentava ter uns trinta anos, era magro e perfeitamente belo. A estátua simpatizou-se em demasiado com o mais novo visitante da noite, sentiu nele algo de nobre, fino, gentil e educado, apurou nele uma fina inteligência e uma aguçada sensibilidade. Fitou seus olhos verdes longamente e neles viu, além da beleza genuína e natural, algo de sonhador, um desejo de viver a vida, uma latência sensual, uma esperteza ingênua, um sentimento de amor mudo e que estava prestes e explodir em seu peito umedecido pelo calor da noite que já ia alta.
Karenina foi tomada visivelmente de forte inquietação ao ver o recém-chegado. Um tanto sem jeito ia cumprimentá-lo quando Ernesto e Margarida em coro, quase como em um belíssimo ensaio iniciaram seu espetáculo locucional da noite.
A estátua moveu imóvel seus olhos para Ernesto que assim começava:
- Eis que surge o mais novo amor de Karenina, um de seus mais novos rapazes. O comentário pela cidade é que estão de caso há algumas semanas e sabemos que, neste meio tempo, a presente dama que aqui faz aniversário, foi vista várias vezes com o nosso elegante Mateus que aqui também se faz presente. Desculpe-me as acusações Srta, sei que me tem elevada estima, caso contrário, não estaria eu aqui hoje em sua belíssima casa, mas minha força e índole moral não permitem que eu deixe de alertar essa senhora, essas moças e esses rapazes para o que vem acontecendo em nossa cidade. Noto uma total perversão, inversão grave de valores, afinal, Srta, com quem estás? Com Mateus ou com este que acaba de chegar e visivelmente já a perturba tanto? Acham justo uma mulher que se faz inteligente e mostra-se como exemplo de dama da sociedade, sair por aí espalhando esse tipo de comportamento e plantando como que uma erva daninha no seio da sociedade?
A estátua já se voltava a Margarida que assim continuava:
- Tens razão Ernesto, tenho ouvido muito a respeito de Karenina, quase não vim hoje a esta recepção. Onde já se viu travar relações com este rapazote e ainda andar por aí em público de braços dados com Mateus. Eis que se avista de fato o fim dos tempos, as mulheres não mais se dão seu devido valor.
A estátua voltou-se para Mateus:
- Vocês dois são tremendamente falsos, de modo que nunca na terra imaginei dois seres tão pérfidos, a começar por você Ernesto que mantém descaradamente em casa duas mulheres e nos fins de semana, sai com Ana, exatamente essa Ana que aqui conosco se encontra na companhia se um de seus namorados, este, por sua vez, já foi visto com Dona Margarida em situações nada favoráveis. Esta, já que aqui nos dispusemos a falar da vida alheia, tem uma filha que possui um caso já bastante conhecido com este outro jovem que forma o segundo casal da festa com a jovem Lívia. Lívia, que aqui se mostra na companhia de Claúdio, aquele que dá suas escapulidas com a filha de Dona Margarida, também já foi vista com Armando, meu querido irmão se é que se lembram. Armando tem uma namorada que, algumas noites, o deixa em casa para dar suas voltinhas com Sandro, este último jovem que aqui se encontra esta noite ao lado de sua linda, mas tremendamente ingênua namorada Alice, que parece ser a única honesta de toda essa história, portanto, faço aqui meu convite para que aceite meu pedido e saia comigo uma noite dessas, para que descubras novos prazeres bem como a doçura de um verdadeiro homem. Por fim, digo-vos que a Srta. Karenina, infelizmente, jamais me deu a honra de provar de seus belíssimos atributos e inteligência já bastante conhecida, não sei o porquê, mas prefere este rapazote a minha sedutora personalidade.
Disse Ernesto quase que em fúria:
- Já chega, você é um fedelho mentiroso Mateus Manuel, de onde tirou tais considerações? Teceste uma teia de acontecimentos totalmente inverossímil, de onde tiraste estas tolices, qual é o teu propósito?
Ao que Mateus prontamente respondeu:
- Do mesmo nascedouro vergonhoso e infecundo de onde tiraste as tuas considerações a respeito da Srta. Karenina. Ela, neste momento encontra-se quieta e estarrecida, pois não esperava que fosses ter a coragem de acusá-la no dia de seu aniversário, dentro de sua própria casa. Mas eu bem que a avisei que um tipo como o teu não mediria esforços para alimentar teu vazio buscando julgar a felicidade de outros. Por isso, selecionei um a um os convidados dessa noite de modo a reunir um grupo de pessoas que a Srta conhecesse e que, ao mesmo tempo, estivesse conectado por uma série de acusações difamatórias feitas por diferentes pessoas em diferentes locais desta cidade. Tens como vês o resultado. Não penses que podes chegar aqui e acusar de coisas a Srta Karenina porque sobre ti pesam tantas outras acusações e suposições.
Karenina por fim tomou a palavra:
- De fato não esperava esse tipo de comportamento de ti Ernesto e também de ti Margarida. O fato é que não me alongarei, mesmo porque não lhes devo satisfações. Sou feliz e se minha felicidade é o que lhes incomoda, nela ei de agarrar-me ainda mais. Não interessa quem amo ou deixo de amar, sei que apenas amo, coisa que o vazio em que vivem não permite que conheçam, tampouco saibam do que falo eu neste momento.
Sem mais considerações, Karenina viu saírem de sua casa um a um seus convidados, já agora em uma terrível briga e confusão que se dava entre eles. Todos estavam eufóricos e perdidos em meio às acusações feitas por Mateus, um caos se instalara encontrando terreno fértil no coração de pessoas onde reinava a secura e a desconfiança em si próprias. No meio da confusão, Karenina, Mateus e o rapazote que de fato viria a ser o jovem namorado de Karenina, só chegaram a ver o momento em que Margarida esbarrou na estátua que desde o começo vinha olhando e reparando demoradamente e cuidadosamente os presentes na sala, derrubando-a em um só movimento. A estátua transformou-se em cacos, diversos e múltiplos, no entanto, os dois olhos de gesso permaneceram completos e intactos, ambos os olhos a olhar ainda uma última vez aqueles tantos outros olhos confusos e caóticos que a fitavam em pedaços no chão.
Foi então que a estátua de fato percebeu como eram vazios aqueles olhos, como eram atônitos, perdidos, como eram tristes! A tristeza era tal que perfurou o gesso que dava forma aos olhos em pedaços da estátua e sob estes uma pequena poça de água começou a se formar sobre o chão. Eram as lágrimas que acabaram vertidas pelos olhos de gesso que até outrora ocupavam o centro da sala. A cada segundo a poça aumentava ainda mais, sinal de que as lágrimas sugadas eram muitas, sinal de que olhos de fofoca são tão vazios e secos que sequer suportam a sinceridade de uma lágrima!
No fim da noite, quando já era quase manhã e o céu já ia se tingindo de outras cores, Karenina e seu belo namorado, cujo nome não interessa a esta breve narrativa, amaram-se apaixonadamente sobre um chão inteiramente molhado, cujas lágrimas convertiam-se e fundiam-se nos seus corpos com o suor que emanava da imensa felicidade e completude de suas almas. Os olhos da estátua seguiam a reparar a cena e, quanto mais reparavam, mais choravam, em um eterno jogo dos que habitam a secura e o vazio do existir e daqueles que se encharcam nas águas gratuitamente oferecidas pelos primeiros. E assim, não há outra saída, quanto mais secos forem os primeiros, mais molhados serão os segundos!
Conta-se por aquela cidade que, ainda depois de muitos anos, seguiam desconfiados, atentos, insinuantes e provocadores os olhos de gesso quietos no canto da sala, oblíquos e inumanos, a revelarem o homem e distorcerem as almas, tanto as mesquinhas, quanto as gloriosas!

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