segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A boneca do silêncio


A cidade era quase como uma vila perdida, arrasada pela mais cruel de todas as tempestades que havia caído nos últimos anos. As ruas estavam desoladas, árvores entregues ao chão, restos de casas sendo levados pelo vento, mulheres, homens e crianças arrastando-se contra o tempo e não levando nada além do próprio sofrimento. A atmosfera era fantasmagórica e enquanto os homens vertiam lágrimas, os bichos faziam a festa. Para onde se olhava as formigas irrompiam grandes, fortes, orgulhosas, soberbamente impetuosas, os gatos saltavam dos esgotos com os olhos cada vez mais cínicos e desafiadores. Os ratos fugiam dos gatos e subiam pelo corpo dos homens, os sapos se multiplicavam, as baratas faziam arruaça e riam de modo quase que frenético e louco quando provocavam nas mulheres gritos que eram menos sinceros e mais afetados.
A Vila do Silêncio de fato nunca fora tão silenciosa e triste assim. Homens velhos, que nos dias de sol e prosperidade de outrora, sentavam nas calçadas e repousavam em baixo das pontes quentes e fortes conservando ainda um leve e constante sorriso a desenhar-se no rosto sujo, agora continuavam sentados, mas não mais em baixo das pontes ou na beira das calçadas, e sim em meio a destroços de um nada que levava a outro nada. No rosto de todos esses velhos homens, sequer notava-se qualquer vestígio de um sorriso, por mais disfarçado que fosse, era só olhar longe, só ausência, só falta e uma tão grande insegurança quase a engolir a própria tempestade , tempestade essa que insistira em levar todo o resto, menos esses homens de barba quase sempre longa, por fazer, e roupa rasgada, que se lançaram à tempestade, mas foram por ela negados. Era como se o movimento dos ventos e o cair das águas do céu lhes dissessem que eles eram da rua e não do céu, dessa forma, apenas os males que viessem da terra poderiam levar-lhes, jamais aqueles que brotassem do alto.
Assim quis o tempo, assim se deu o certo. Os homens velhos continuaram na mesma rua a olhar os outros homens que antes tinham uma casa e, agora, vagavam pela cidade sem quase nada. De fato, para os velhos que olhavam, nada naqueles outros homens de fato restava. Nunca foram muito afeitos a sentimentos de solidariedade. Nos tempos bons, tinham sua casa, sua comida e sua indiferença para com aqueles homens que moravam nas ruas. E, no entanto, ainda conservavam a mesma indiferença, o mesmo vazio de sentido, o mesmo medo em relação aos homens barbudos e com roupa rasgada que agora os perseguiam com o mesmo olhar faminto, com as mesmas mãos que pedem, com a mesma alma que chora.
A estas horas, a tempestade já cessara por aquelas terras, mas o céu ainda derramava uma água fina, leve e que parecia ser eterna. Ela caía, deitava e já não molhava o chão por demais encharcado. Era como se este últimao expulsasse a água, como uma mulher quando expulsa um homem de sua casa por estar cansada de se sentir tão triste, tão pouco amada, cansada de ter poucas alegrias e um coração já tão saturado de mágoas. A terra de Vila do Silêncio estava exatamente como o coração de tantas mulheres que pelas ruas vagavam. Olhando a todas como que instintivamente, um dos velhos da rua que se achava sentado em um pedaço de pedra, possivelmente saído de algumas das tantas já não existentes casas, deteve seu olhar perdido em uma mulher profundamente triste. Admirou-se porque neste momento todos da Vila estavam razoavelmente tristes, haviam perdido tudo, inclusive pessoas haviam morrido, havia uma ressaca generalizada que comprimia os corações como contra uma fogueira que os queimava e os deixava ardendo em brasas, brasas que nem mesmo a água fina e constante caída do céu apagava. Mas essa mulher tinha uma tristeza ainda mais profunda, mais triste, recortada por algo sutilmente mudo e, ao mesmo tempo, ensurdecedor. Seu corpo, mesmo olhando de longe, parecia doer. Aos olhos do velho sentado era como se ela tivesse o corpo todo dolorido, a cabeça pesada, os olhos queimando, a respiração entupida e entrecortada e a alma terrivelmente vazia e desolada.
Andava a trajes mínimos, tremia, mas não parecia ser de frio, apesar de o tempo estar cinza e congelado depois do ar ter sido varrido por ventos e chuvas tão fortes quanto frias e distantes. Seu tremor era de desespero, arrepio moral, dor encravada no fundo da sua solidão e, aparentemente, ainda latente. A mulher era múltipla e o velho, em um momento de alucinação e loucura, chegou a vê-la como aquelas lindas bonecas russas, que saem uma de dentro da outra, e a mulher parecia multiplicar-se, ser muitas para depois desintegrar-se em um nada, vertendo apenas sangue, um sangue a irromper vermelho sobre a neve branca.
A mulher era como um mistério e sua beleza se tornava um enigma cada vez mais escondido e enrugado na fina chuva que se derramava depois da tempestade. Tal como a boneca russa, de fato, era ela como uma mulher que sai de dentro da outra e o velho a essa altura já queria saber quem eram todas as mulheres que existiam dentro daquela mulher tão melancólica quanto bela. Mesmo assim, diante de toda sua angustiosa curiosidade, ele sabia, depois de tantos dias a olhar o homem que nascia, crescia e antes de morrer escolhia, como era difícil julgar a alma humana, seja daquela mulher ou de qualquer outra pessoa. A alma humana de fato é o mais recôndito dos abismos, envolto por uma névoa espessa ele se faz tão gélido quanto fantasmagórico, tão fascinante quanto vulgar, mesquinho e banal. Por isso, sempre dizia aos outros velhos que por ventura lhe escutassem ou a si mesmo em um monólogo inconstante e demasiado benevolente que ao julgar a alma de um homem parcialmente a gente sempre, em lugar de só querer ver a verdade exata com o intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças por falta de ternura e caridade.
No eco de todos esses pensamentos, o caos tomou conta da Vila do Silêncio. Muitos corriam de um lado para o outro, outros tantos lutavam entre si por um pedaço de pão velho e amassado, homens loucos e sem rumo abusavam sexualmente das mulheres de outros, mulheres inertes e ausentes se entregavam como máquinas a prazeres que nelas eram como gotas de veneno, lentamente as matavam, lentamente as deixavam. Crianças gritavam assustadas, nada continha a guerra sem rumo de quem já não tinha rumo nem mais nada, apenas um corpo que muitas vezes se arrasta por toda a vida, vida que simplesmente passa.
Os velhos da rua continuavam sentados assistindo ao caos generalizado, eram os únicos que não se atormentavam, tinham o olhar sereno, a alma amadurecida pelo frio do chão, pela faca cortante do vento. Talvez isso tenha se dado, pois, ao contrário de todos os habitantes da Vila do Silêncio, os velhos da rua eram os únicos que falavam entre si, trocavam uma impressão ou outra despreocupadamente para contar uma lembrança, para falar do frio ou para dizer de uma dor da alma. E assim, eles eram os únicos lá que realmente viviam porque sentiam frio, fome, porque tinham memórias e contavam as suas histórias. Os outros habitantes da Vila do Silêncio sempre foram só silêncio, dentro de qualquer uma das casas som nenhum se escutava, os anos podiam passar que isso não mudava, as pessoas eram frias, mecânicas, executavam, tarefas, não guardavam lembranças, não sentiam saudade, não contavam histórias, simplesmente iam e vinham a esmo, sem emoção em um completo, ausente e perdido nada.
O lugar era assim tão ausente de memórias, histórias e pessoas a sentir a vida e possuir além de um corpo também uma alma, que uma cruel tempestade resolveu por estas terras desabar, causando um caos e vazio tão grande que fizesse com que aquelas pessoas banais, enfim, tivessem que olhar umas para as outras e falar, brigar, fazer qualquer coisa, mas ter qualquer mísera história pra contar. E foi assim que caiu a tempestade, e foi assim que ela fez a todos sofrer, menos àqueles que já sentiam, já sofriam, já falavam, já existiam de fato. Menos aos que já eram da rua, da rua viviam a vida terrena demais, sofrida demais para merecer do céu castigos que atingem apenas os que voltam por demais seu olhar para as alturas, desviando-o da terra, dos homens de barba a esperar, contar e reparar.
Mas a pergunta que ainda resta de toda essa história de uma vila na qual as pessoas insistiam em não falar, não viver e não amar é: Se tais pessoas eram tão secas e incapazes de sentir uma real tristeza, o que dizer daquela mulher que um velho barbudo avistou brotando do meio da multidão e parecendo tão triste, tão repleta de sentimentos, tão a procura de algo, perdida e prolixa, tal como um jovem ainda inseguro de si mesmo e com tantos sonhos e medos em relação ao futuro? Aquela boneca russa que parecia gritar muda, sozinha, forte e impiedosamente acuada, como uma poesia que pode dizer tudo em uma rima e nada em mil linhas?
Quando o caos instalou-se na Vila do Silêncio de modo que esta rompesse o silêncio mórbido e infértil de tantos anos e anos, o homem que observava com os seus olhos e a sua barba, perdeu a bela e triste moça de sua vista já cansada. Agitou-se naquele momento, gritando inutilmente, de forma insistente e quase que tomada da mais absoluta certeza, o nome dela que ele nunca chegaria a saber ao certo qual era. Naquele momento, a chamava por Boneca, evocando novamente a imagem da boneca russa que nela ele vira há cerca de poucos minutos atrás. Neste instante, o velho que gritava Boneca era o único entre os velhos que gritava, partilhando um pouco do drama dos que passaram a vida toda calados. Os outros velhos da rua estavam todos sentados, alguns já dormiam, e outros estavam amontoados em círculo contando as histórias que há anos contavam todos os dias, enquanto no silêncio o restante da cidade vivia.



Como um facho de luz ardente a irromper por entre aquela atmosfera cinza e fria, a mulher apareceu de súbito ao lado do velho que por ela ainda chamava. De perto, o homem a achou ainda mais linda e, como surpresa, a percebeu menos triste, tomada de mais emoção e serenidade, como se tivesse encontrado algo que há muito procurava, como se tivesse ouvido a voz do homem que amava ou lembrado de um sonho bom que em algum outro tempo já sonhara. Agora, ela já não era mais múltipla e sim limpa, definida, uma só mulher, inteira, misteriosa, de posse da mágica do encontro consigo mesma. Foi assim que ela apontou a pedra sobre a qual o homem da rua estivera durante longo tempo sentado enquanto contemplava a sua tristeza de mulher que agora já se fazia mais sutil e apagada.
Disse ela de forma suave e doce:
- O senhor poderia devolver-me esta pedra sobre a qual estás sentado? Ela é o último pedaço que sobrou de um muro que existia em frente à janela do meu quarto que foi, como quase tudo por aqui, despedaçado pela tempestade, mas ainda o encontro vivo neste pedaço. Ah! Como estou feliz por tê-lo encontrado e o reconhecido em meio a tantos pedaços de um concreto tão amargurado. O silêncio deste lugar sempre me desesperou, nunca suportei o barulho do relógio a soar as horas que passavam arrastadas enquanto todos comiam calados, nunca suportei o barulho da poeira que caía de leve nos móveis da minha sala, nunca encontrei-me no som dos passos, do bater de portas, do abrir e fechar das janelas, da minha própria respiração, da noite descendo e do dia se indo.
O silêncio me doía os ouvidos, jogava-me em um estado angustiosamente mortal e desesperadamente enlouquecedor, faltavam as palavras, as lembranças, qualquer coisa de humano que pudesse dizer sim ou não, chorar, cantar ou tocar, proferir espasmos histéricos, mas que ao menos fossem carregados de sentimentos e autênticos, porque o silêncio no qual cresci sempre fora seco, não era um silêncio de dor, de respeito, uma pausa necessária que se estendia por alguns minutos ou horas para atenuar um coração, dar voz a uma melancolia, o silêncio deste lugar sempre fora oco, idiota, amuado. Sempre olhei admirada vós a conversades animadamente e depois de ver como vossos olhos brilhavam, encarava os meus no espelho, e os via tão esfumaçados quanto opacos.
Foi então que depois de muito olhar pela janela de meu quarto, encorajei-me a proferir minhas primeiras palavras a um muro vermelho que separava a minha da outra casa. Pra ele eu contava tudo, era com ele que sentia, que chorava, era nele que eu vivia e existia, naquele pedaço vermelho de muro, que me escutava e a mim respondia, desde que eu tivesse sensibilidade e coragem para entender e ouvir a sua resposta, quase sempre tímida. Sei que isso é loucura, falar com um muro, imagina! Mas o muro curou minhas dores todos esses anos, me fez ouvir ao menos o som da minha própria voz. Meus pais nunca deixaram que eu saísse de casa para falar com vocês, mesmo depois que já era mulher feita, se saísse, ao certo, seria terrivelmente repreendida com aquele mesmo olhar oblíquo e vazio de todos os dias.
Mas o muro me entendia, e aí veio a tempestade, o destroçou e foi então que fiquei tão triste a ponto de não me aguentar na minha própria tristeza. Saí à sua procura e eis que o encontro com um dos homens que sempre admirei. Bem que pensava eu, um dia estes homens barbudos salvarão o mundo e extinguirão este silêncio com a sua maneira de viver, com as suas memórias, histórias e lembranças, todas hão de brotar das suas belas e longas barbas pensava eu quando criança. Ao menos, saibam que devolveram a mim um pedaço do meu sentido, e se agora posso eu aqui falar com você é porque um dia escutei algumas palavras muito leves e doces, que atravessavam o ar com a delicadeza e a beleza de uma pétala de rosa e que eram proferidas por um muro vermelho, meu eterno e derradeiro amigo e conselheiro.
Um dia me disse ele que a Vila do Silêncio nunca aprenderia a falar de verdade porque as pessoas daqui são secas demais, e que uma tempestade seria mandada para estas terras de cá, para que ela pudesse molhar um pouco os homens secos que aqui sempre seguiram sem falar, e que depois da tempestade eles começariam a gritar, mas que nunca apreenderiam a essência do falar, já que falar, para o muro, muitas vezes não é simplesmente proferir som, falar é saber exatamente quais palavras de fato merecem existir por valerem mais do que o próprio silêncio. Quando isso ele me disse, entendi que por aqui, o silêncio valia mais do que qualquer palavra que chegasse a ser dita, porque os homens que poderiam vir a dizê-las não saberiam usá-las, sequer saberiam dizê-las, sempre foram tão inexpressivos na falta quanto serão na presença delas e, neste caso, para homens assim, é preferível o silêncio. O muro terminou dizendo-me que, nesta terra do silêncio, a palavra só continuará brotando da boca de quem realmente a merece, por saber usá-la tão bem quanto sabe desfrutar da plenitude de um olhar a arder no seio do tempo.
Depois de lindamente ao velho falar, a mulher tomou delicadamente nas mãos o pedaço vermelho do muro que com ela trocara tantas palavras nos últimos anos e, com um leve sorriso, virou-se e começou a andar com passos firmes e sem olhar para trás. O barbudo ficou pensando para onde ela se dirigia assim tão segura de si já que provavelmente da sua casa nada restara depois do cair da tempestade sobre essa Vila do Silêncio de cá. Mas, no seu íntimo, algo lhe dizia que ela sabia para onde ir, assim como sempre soube o que queria, assim como sempre repudiara o silêncio dos que com ela viviam, assim como sempre soube ser ela mesma, original a ponto de impregnar-se em um pedaço de concreto e fazer dele parte da sua solidão. Pensava o velho em como a adversidade amadurece um espírito, faz gerar tipos especiais que em nada se parecem “com todo mundo”, que se distanciam dos tipos comuns do cotidiano e se fazem verdadeiramente originais porque além da boa aparência conservam certo talento natural, uma personalidade marcada, ideias próprias e originalidades de espírito. Afinal, de que adianta o bom coração sem a grandeza de alma, de que vale a inteligência sem a capacidade de ter um pensamento legítimo que realmente seja seu, de que vale a beleza se a personalidade e sagacidade de quem a porta não for suficiente para fazer dessa beleza um enigma, um mistério capaz de revirar o mundo, de deitá-lo a seus pés, capaz de calar o silêncio ouvindo o mudo som de um muro vermelho a responder docemente aos anseios e alucinações provenientes da boca da alma humana, do desespero da solidão, do íntimo dirigido por vaidades menos ensurdecedoras e mais silenciosas?
Ao que o velho prontamente respondeu a si mesmo:
- Que o silêncio das madrugadas nos traga as respostas ou semeie mais dúvidas, não vale a pena pensar nisso agora. Só sei que as bonecas saem uma de dentro da outra e, no meu sonho, formigas as devoram.

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