terça-feira, 16 de setembro de 2008

Da autora

A autora do blog pede desculpas pela demora nas postagens, mas é tudo uma questão de tempo e organização, tenho a impressão de que estes me faltam, mas com o tempo, não por acaso aí está ele outra vez, saberei administrá-lo.

Mulheres da literatura

Diante da minha paixão pela literatura, sempre me peguei pensando em algumas semelhanças que se fazem notar nas grandes personagens femininas que, muitas vezes, dão nome a grandes obras. O interessante neste ponto é discutir qual seria o perfil da mulher que merece ser lida, entendida, revelada. Vejamos a emblemática Anna Kariênina de Tolstói, mulher que conserva como características a ambiguidade, que por ela não é muito bem exercida, o misto de calma e desespero, o amor - no sentido mais escandaloso deste sentimento. Anna sofre mas arrisca, ama, mas não hesita em trair, chora, nem sempre de tristeza, sentimento que exprime nem sempre através de um olhar. A grande inspiradora das barbas de Tolstói é uma mulher adúltera, impetuosa, frágil e desesperada, a ponto de extinguir a própria existência arremessando-se sem medo sob os trilhos de um trem.
E o que dizer de Madame Bovary, a mulher marcante de Gustave Flaubert, não por acaso, ou se por acaso for, adúltera, amante, impetuosa, apaixonada, misteriosa. Madame Bovary envolve-se de corpo e alma. Ao ler a obra e as palavras que se referem a ela, não se sabe ao certo como ela é, mas se tem certeza de como ela não é. Uma Madame que não hesitou em ser o que é em essência, manteve-se fiel ao seu interior até o fim - fim trágico - mas fim, mesmo que ditado por uma dose de veneno.
E o que dizer da nossa Capitu, de seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada, de seus olhos de ressaca, expressões fortes, simples e reveladoras da alma de muitas de nossas mulheres. Só poderiam ser cunhadas por Machado de Assis. A sua Capitu, sem dúvida, representa muitas mulheres. Uma Capitu esperta, e, ao mesmo tempo, ingênua, impetuosa, corajosa e confiante. Uma mulher que traz para si tudo e todos apenas com o olhar. Uma mulher que mente e encanta, fascina e corrompe. Capitu não escolhe a morte como Anna Kariênina e a nossa querida Emma (Madame Bovary), talvez porque ela fosse viva demais, confiante demais, a cigana digna dos feitiços da alma e do corpo. Anna e Emma nem por isso foram menos ambíguas, fortes e encantadoras, o fato é que estas não portavam a confiança e a total capacidade de ser duas, como Capitu. Elas optaram pela morte, talvez, porque só por meio desta poderiam ser quem elas realmente gostariam de ser. Não tinham os olhos dissimulados de Capitu e sim olhos de angústia e latência, olhos de atitudes desesperadas que se traduziram no veneno de Madame Bovary e no trilho do trem de Anna Kariênina.
As mulheres de nossa literatura são no mínimo instigantes, diferentes e curiosas, daí concluo que a heroína, aquela que é digna de ser o centro de uma história, não é necessariamente a que porta a moral e os bons costumes e sim aquela que é autêntica não importando se para o bem ou para o mal.

O destino final de Anna Kariênina


Capitu: "Olhos de cigana oblíqua e dissimulada, olhos de ressaca"

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O JORNALISMO alternativo ao "jornalismo"

O Jornal Pessoal é um alternativo que existe há 17 anos na Amazônia. Sua linhagem tem por base a investigação e a análise crítica de grandes temas da região, como biodiversidade, projetos econômicos e questões agrárias. Seu fundador Lúcio Flávio Pinto criou o jornal no período pós-ditadura militar. Daí poderia vir uma contradição que quero trabalhar neste texto. O que leva um jornalista a lançar um veículo alternativo em plena liberdade política? Os tempos atuais podem ser vistos como uma era de amplo acesso a informação no Brasil? A imprensa alternativa viveu o seu auge durante o período da ditadura militar. Diante da restrição à liberdade de imprensa e de expressão, da anulação dos direitos essenciais do cidadão e da censura, muitas vezes implacável, os jornais da grande imprensa foram totalmente controlados pelo governo, tendo que recorrer, como se sabe, às famosas receitas de bolo ou aos versos de Camões. Como a grande imprensa do país estava literalmente amordaçada pelo regime militar, a única fonte de informação da população passou a ser a imprensa alternativa, composta por nomes como O Pasquim, Opinião, Movimento, dentre outros. Os alternativos denunciavam os atos de tortura implementados pelo DOI-CODI, as violações aos direitos humanos, os graves crimes cometidos pelo estado e tantos outros temas e fatos que eram de real interesse público, mas estavam mascarados por nossa "Ditadura Escancarada" pós AI-5, como diz o jornalista Elio Gaspari. O fato é que durante essa época surgiram cerca de 160 periódicos das mais variadas tendências. Com a abertura política no governo de Figueiredo, os alternativos começaram a perder força, principalmente, porque com a “volta da liberdade”, opor-se ao governo deixou de ser monopólio da imprensa alternativa.
É justamente nesse contexto de "volta da democracia" que Lúcio Flávio Pinto decide lançar o seu próprio jornal alternativo. Lúcio já era um jornalista experiente. Ele era repórter do jornal O Liberal, maior veículo de comunicação do Norte e Nordeste do Brasil. O Jornal se recusou a publicar informações que Lúcio reunira em três meses de investigação sobre o assassinato do ex-deputado estadual Paulo Fonteles. O caso envolvia interesses grandes demais para permitir uma cobertura isenta, por isso não só O Liberal, como também outros grandes jornais do país, deixaram este fato de total relevância jornalística passar em branco. Lúcio decide, portanto, criar o Jornal Pessoal e nele publica a matéria que fora rejeitada por O Liberal. O Jornal Pessoal já surge com uma matéria de grande impacto jornalístico, com investigação séria e análise crítica dos fatos, o que vai ser uma marca das demais reportagens do jornal.
O Jornal Pessoal também publicou grandes reportagens que foram simplesmente ignoradas pela grande imprensa, como a que se refere à entrada do narcotráfico no Pará, tendo como foco o assassinato do jovem empresário Bruno Meira Matos. Podemos perceber claramente que, infelizmente, nós convivemos com uma imprensa cada vez mais conivente, parcial, que prefere as declarações às informações. Afinal, as primeiras comprometem quem as deu e não a imprensa, já as informações, são de inteira responsabilidade de quem as publica. A grande imprensa esqueceu um dos maiores princípios do jornalismo: a investigação e o está substituindo pela preguiça, preguiça essa que se traduz em uma cobertura superficial, que não informa, muito pelo contrário, chega até a desinformar, tendo como base um jornalismo de press-release (informações prontas). O Jornal Pessoal não tem publicidade em suas páginas, o conteúdo é puramente informativo, e toda produção jornalística é feira por Lúcio Flávio Pinto.



O jornalismo investigativo praticado por ele já lhe rendeu diversos processos judiciais aos quais ele responde desde outubro de 1992, além de um fato no mínimo covarde. Todos se lembram do episódio em que Lúcio foi espancado e ameaçado de morte pelo empresário Ronaldo Maiorana, diretor-editor-corporativo do jornal O Liberal em um restaurante de Belém do Pará. Esse triste e vergonhoso episódio, apenas mostra que os resquícios do autoritarismo, as seqüelas da autocensura que decorrem da censura direta sofrida durante a ditadura militar e as formas de barbárie e opressão continuam latentes nos dias atuais. Voltamos àquela contradição a que me referi no começo deste texto. Tem sentido um jornal alternativo ser lançado em um período no qual as liberdades estão de volta e a imprensa é livre para informar e investigar os fatos? Afinal a ditadura acabou não é? Hoje somos livres, pensamos e fazemos o que queremos, não há censores, muito menos porões de tortura. O fato é que quando analisamos a trajetória do Jornal Pessoal, um símbolo da luta pela liberdade de imprensa na Amazônia, vemos que a censura está mais viva do que nunca nas redações brasileiras, a diferença é que ela não é oficial, e sim, sutil, mascarada pelos interesses dos grandes empresários da comunicação, que há muito não fazem jornalismo para o público e sim pelo lucro. A grande imprensa simplesmente abdicou de sua capacidade de investigação e de contestação responsável. O Jornal Pessoal é um exemplo de jornal alternativo, alternativo a todos os jornais que simplesmente se recusam a fazer jornalismo, alternativo à preguiça, ao silêncio conivente e oportunista da grande imprensa, à defesa de interesses escusos, à informação pronta e copiada, à falta de ética no exercício da profissão e no trato do interesse público. Um alternativo sério, responsável, que sabe fazer oposição, porque sabe o que diz e o que quer, não vive de especulações e posições extremadas. É, no mínimo curioso, o fato de querermos nos considerar uma democracia, afinal, democracia, liberdade e amplo acesso à informação não combinam com jornalistas que são espancados e jornais que não têm liberdade de expressão quando criticam os detentores do poder ou contrariam interesses econômicos, principalmente, em regiões afastadas do centro econômico e político do país, onde se pressupõe que vigora uma terra sem lei!


O Jornalista Lúcio Flávio Pinto

domingo, 17 de agosto de 2008

Kafka de ontem, de hoje, de sempre

Certas curiosidades me foram reveladas pelo suplemento Mais!, do jornal Folha de S. Paulo do dia 10 de agosto de 2008. Nele, li uma reportagem revelando um outro lado da personalidade de um dos principais escritores do século XX, Franz Kafka. A matéria discorria sobre a existência de uma coleção de revistas eróticas pertencentes ao escritor tcheco de língua alemã, que só venho à tona publicamente com a publicação, no Reino Unido, de um livro do pesquisador James Hawes de nome “Excavating Kafka” (Escavando Kafka). O objetivo do pesquisador seria desmistificar a imagem de Kafka, que sempre foi visto como uma figura solitária, oprimido pelo pai e incompreendido pela maioria, aquele que anteviu o holocausto e foi capaz de escrever com uma magia e sutileza únicas para o seu tempo e época. Kafka, de acordo com essa nova biografia, seria na verdade um filho de milionário e viciado em prostitutas, um escritor apoiado e admirado por muitos de seus colegas escritores. Esta nova visão do escritor só teria sido possível a partir da descoberta do baú misterioso no qual ele guardava sua coleção de revistas, com certeza, porque a partir delas Kafka e sua vida passaram a ser vistos de outra maneira, com menos idealização e mais realismo. A descoberta se faz importante, pois com ela talvez, finalmente, nós consigamos entender de fato a literatura de Kafka pelo que ele realmente é, e não por essa imagem obscura e problemática que se associou a ele. Se Kafka fosse mesmo alguém ligado aos prazeres sexuais, isso explica em parte o fato de muitos de seus textos apresentarem, até certa fase de sua vida, uma dimensão lúdica e um gosto por situações fantásticas, o que fica evidente em A Metamorfose, na qual uma situação absurda e até assustadora é explorada ao máximo. Para entender a obra de Kafka é preciso, antes de mais nada, entender a própria vida do autor. Até a I Guerra Mundial Kafka tinha uma visão mais lúdica da literatura que deixou de existir quando a guerra terminou e a doença que o matou foi descoberta (tuberculose). A partir daí, os textos de Kafka tornam-se mais concisos, ainda mais abstratos, parecem transmitir a sensação de alguém que só tem o que lhe sobrou para viver. O romance símbolo desta nova fase é o inacabado O Castelo, nele Kafka fala de perdas sem desespero, fala das próprias perdas sem desespero.

Em minha opinião, já que é de Kafka que falamos aqui, acredito que em um de seus livros – O Processo – a personalidade de Kafka fica marcante e evidente. O personagem central do livro, Josef K. , faz coisas que nem ele mesmo entende, diz algo, mas a sua ação não corresponde ao que ele pensa e fala. É um personagem que pensa muito, imagina situações. Assim é Kafka, o escritor ficou conhecido por ter uma imaginação cinematográfica, ou seja, ele pensava com imagens, encontrava imagens para expor o que sentia, lutava contra o fluxo incessante e constante destas. Na narrativa de O Processo fica clara a existência de instâncias superiores, às quais não se tem acesso direto, sendo estas, portanto, fontes de pesadelo e medo para o personagem central. No livro, esta instância corresponde aos anais da justiça, ao funcionamento complexo e à atmosfera sufocante de um lugar para o qual o personagem central não tem acesso em nenhum momento do livro. Esta instância superior corresponderia ao inconsciente humano, à experiência fundamental e superior. O Processo é uma obra fantástica, vai além do que parece, revela - nos uma atmosfera abstrata que marca o conjunto da sociedade capitalista atual e, deixa claro porque Kafka exerce uma fascinação tão grande entre seus leitores geração após geração. O livro delineia o traço mais moderno e realista de sua obra: a administração das massas. Controle este que só é possível devido à fascinação por Kafka. Ela decorre do fato de que ele formulou a experiência humana em seu nível mais fundamental e instintivo, deixando claro o lugar-comum da condição absurda moderna, do estar entregue a mecanismos de controle invisíveis. Por isso tudo, O Processo é uma das obras que melhor resume Kafka, um Kafka que, definitivamente, não deixa de ser o Kafka só porque possuiu uma coleção de revistas eróticas e não foi a alma oprimida, incompreendida e solitária que se criou, aliás, o Kafka de agora é bem mais interessante, posto que parece mais humano, embora o verdadeiro Kafka, nem o de ontem, nem o de hoje, mas, o eterno, seja um completo mistério, cheio de fantasias, delírios e suposições, como sempre se apresentaram as suas obras!

Kafka à direita

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Tempos olímpicos e reflexões nacionalistas

É interessante ver como todos nós ficamos mais brasileiros, tanto em tempos de Olimpíada como de Copa do Mundo. Durante estes eventos, passamos a amar mais nosso país, nosso povo, nossa cultura. É como se entrássemos em campo com o time de futebol brasileiro, voássemos junto com nossos ginastas, nadássemos sem perder o fôlego e a determinação ao lado de nossos atletas da natação, é como se sentíssemos com eles todas as emoções, derrotas, cobranças e glórias. Vejo como bonito e necessário este sentimento e não sou, nem de longe, uma crítica do nacionalismo, até acho melhor a sua presença do que a sua ausência e, desde que não seja exacerbado, é muito bem vindo, afinal, é ele que nos faz sentir pertencentes a um país, a um povo, a uma cultura, recordando-nos de nossos inúmeros direitos e deveres para com estes. Mas, para que o nacionalismo seja de todo saudável e verdadeiro, além de controlado, ele também deve ser constante, ter certa permanência.
Um nacionalismo que surge hoje e desaparece amanhã é tão frágil que chega a dissolver-se no ar sendo também dispensável, posto que não acrescenta nada, a não ser a ilusão da existência de um maquiado sentimento de pertença. O nacionalismo brasileiro não é nacionalismo, se é que me entendem, já que ele não é constante, muito menos controlado. Ao contrário do que se espera de um sentimento nacionalista ele é esporádico, dá as caras de repente, quando quer e quando o momento se faz oportuno. Nestas ocasiões, as pessoas se vestem de verde e amarelo, fingem saber a última parte do hino nacional, torcem pelo seu país e pelo seu povo, acompanham tudo pela televisão, praticamente se fundem aos atletas olímpicos quando da ocasião de uma Olimpíada e, exageram nas manifestações, como se elas mesmas quisessem acreditar no que dizem e fazem. Aproveitando que me referi à mídia, ao falar na televisão, quero dizer que esta é outra que cumpre seu papel “nacionalista” na íntegra durante as atuais Olimpíadas de Pequim, dando notícias olímpicas vinte e quatro horas por dia, interrompendo qualquer outra programação para mostrar um lance, uma vitória, um momento, ou qualquer outro sinal que venha de Pequim. Como já disse anteriormente, não sou contra o nacionalismo, ele é realmente importante e essencial, mas não é o verdadeiro nacionalismo esse que cultivamos aqui no Brasil. Por que só falar de Brasil em épocas Olímpicas, por que amar o seu povo e torcer por ele tão esporadicamente? Sempre achei de um equívoco muito grande o fato de locutores esportivos ao narrarem um jogo do Brasil, por exemplo, dizerem “Vai Brasil, Vai Brasil”, esta fala realmente cria a ilusão de que é o Brasil, país, povo, cultura que está lá, e na verdade não é. Quem está lá no campo, jogando, é a seleção brasileira, ou os atletas brasileiros, a equipe brasileira, no caso de uma Olimpíada. Não devemos misturar as coisas, pelo menos não deveríamos.
O Brasil é muito mais do que aquilo que vemos em uma Copa do Mundo ou em uma Olimpíada, há muito mais pelo que torcer, há muitas coisas a serem conhecidas e valorizadas dentro deste país tão grande e, ao mesmo tempo, tão esquecido. Se fossemos nacionalistas, estaríamos defendendo a Amazônia, constantemente saqueada e comprada por estrangeiros, e todo nosso patrimônio e riquezas naturais. Se fossemos nacionalistas, estaríamos preocupados em mudar, ou pelo menos, tentar mudar e melhorar nossa política, cada vez mais impune e desonesta. Se fossemos nacionalistas, olharíamos mais para tantos brasileiros que vivem nas ruas, ou em tantas outras situações, sob condições desumanas, com mais atenção e consideração e não com aquela resignação conformada, momentânea e, por vezes, indiferente. Se fossemos nacionalistas, não seríamos tão desiguais, tão inversos, tão cordiais. Não é sendo brasileiro só de vez em quando que estaremos construindo um real sentimento de amor e pertença por nosso país. O nacionalismo é antes de mais nada algo constante, ele existe em olimpíadas, guerras, crises, sucesso, derrota, ou em qualquer outro contexto pelo qual passe o país ao qual ele se remete.
Ninguém ama o outro de vez em quando, pelo menos não em essência, sendo assim, ninguém é nacionalista quando quer, se isso acontecer, já não estamos falando de nacionalismo e sim de um sentimento passageiro e superficial. Que o entusiasmo, a beleza, a euforia e toda torcida pelos times e equipes brasileiros nessa magnífica e monumental Olimpíada de Pequim nos sirva de exemplo e lição, pois enquanto não aprendermos que ser brasileiro é diferente de apenas torcer em um futebol ou em uma Olimpíada continuaremos fadados ao estigma de sermos um estado sem nação, ao contrário daqueles tantos que foram uma nação antes de serem um estado!


Não esqueçamos: o que vem rápido vai rápido! (Clichê ou não, vale lembrar)


O Movimento "Caras Pintadas" - momento de nacionalismo verdadeiro e democrático

sábado, 9 de agosto de 2008

O Princípe, de Maquiavel

Há algum tempo terminei a leitura de O Príncipe de Maquiavel. Lembro-me que na ocasião da leitura fiquei impressionada com o teor político da obra, com a análise de fatos históricos em todo momento, com a riqueza de argumentos, com a frieza com que é visto na obra o homem e sua forma de governar. Decidi escrever aqui sobre O Príncipe porque ás vezes, não me pergunte a razão, me pego pensando no que disse Maquiavel nos seus dias de exílio na cidade italiana de San Casciano e vejo que mesmo com toda a chocante amoralidade dos princípios do maquiavelismo, no fundo é difícil demonstrar que o convívio político entre os homens tenha sido outro, afinal se existem boas teorias políticas, a prática é sempre diferente e Maquiavel simplesmente fez da prática uma teoria. Discordo de que o escrito de Maquiavel seja apenas político, ele discorre sobre diversos aspectos da personalidade humana, ao tentar expor qual seria o modelo ideal da personalidade do verdadeiro príncipe. Sendo assim, quando li Maquiavel aprendi muito sobre a engenharia operacional dos governos e sobre os grandes feitos históricos que devem nos servir de lição, mas também conheci mais a fundo a própria personalidade humana. Pode parecer uma opinião fria e simplificada a que emito agora, mas compartilho com a visão que Maquiavel tem dos homens, dizendo que estes são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas as cidades e em todos os povos e o agir humano está condicionado, única e exclusivamente, pela necessidade.
Seguem alguns trechos de O Príncipe que me impressionaram quando da leitura do livro, pela aplicabilidade que podem ter na sociedade atual e também pela veracidade de suas constatações:

As amizades conquistadas por interesse, e não por grandeza e nobreza de caráter, são compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário. Os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer, porque o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual, devido a serem os homens pérfidos, é rompido sempre que lhes aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca.

É muito mais seguro ser temido que amado, quando se tenha que falhar numa das duas.
Os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda de seu patrimônio.

Tão simples são os homens, e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar.

Os homens, em geral, julgam mias pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir. Todos vêem o que tu pareces, mas poucos o que és realmente.

Um príncipe deve estimar os grandes, mas não se tornar odiado pelo povo.

A prudência está justamente em saber conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo bom.

O príncipe deve sempre manter integral a majestade de sua dignidade, a qual não deve faltar em nada.

Os homens sair-te-ão sempre maus, se por necessidade não se fizerem bons.

Não desejarias cair só por creres que encontrarias quem te levantasse. Isso ou não acontece, ou, se acontecer, não te dará segurança, porque é fraco meio de defesa o que não depende de ti. E somente são bons, certos e duradouros os meios de defesa que dependem de ti mesmo e do teu valor.

Maquiavel

Os homens são felizes enquanto o seu modo de agir e as particularidades dos tempos concordarem. Não concordando, são infelizes.

As injúrias devem ser feitas todas de uma vez, a fim de que, tomando-se-lhes menos o gosto, ofendam menos. E os benefícios devem ser realizados pouco a pouco, para que sejam mais bem saboreados.

O objetivo do povo é mais honesto do que o dos poderosos; estes querem oprimir e aquele não ser oprimido. O pior que o príncipe pode esperar de um povo hostil é ser abandonado por ele. Mas, dos grandes, deve temer que o ataquem.

O príncipe prudente deve cogitar da maneira de fazer-se sempre necessário aos seus súditos e de precisarem estes do Estado; depois, ser-lhe-ão sempre fiéis.

Conhecendo-se os males com antecedência, o que não é dado senão aos homens prudentes, rapidamente são curados: mas quando, por se terem ignorado, se têm deixado aumentar, a ponto de serem conhecidos de todos, não haverá mais remédio àqueles males.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

"No mar estava escrita a história de uma cidade."

Recentemente fiz uma viagem ao Rio de Janeiro e trouxe dela inúmeras impressões e lembranças de momentos, sensações e reflexões que vivi e fiz. Encantou-me a vontade e a alegria de viver de pessoas que carregam em si uma energia e simpatia espontâneas, inebriei meus olhos com a belíssima paisagem de um mar que parece não ter fim, cortado por montanhas e formas que dão a impressão de terem sido desenhadas. Visitei lugares que marcaram uma época não vivida por mim, mas que pude reconhecer por terem feito história e estarem presentes como símbolos da antiga capital da república. Entre esses lugares estão o Paço Imperial, antiga residência da família real, que hoje funciona como Museu da República. De uma de suas janelas D.Pedro disse a famosa frase: " Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico." Surpreendeu-me a beleza, o luxo e a sofisticação do Teatro Municipal, o cheiro de livro e o ar de conhecimento que paira sobre a Biblioteca Nacional, as cores e formas da arte e a imagem da cultura que marca o Museu Nacional de Belas Artes.
Admirei o fato de o Rio de Janeiro ser uma cidade que homenageia por toda parte aqueles que buscaram inspiração na sua gente e na sua beleza e, de alguma forma, fizeram história no Brasil e no mundo. No bairro do Flamengo há uma região chamada Largo do Machado, onde morava o Escritor (digno da letra maiúscula) Machado de Assis, em uma casa que hoje já não existe mais. No Jardim Botânico há um espaço homenageando Tom Jobim, que buscava conforto e inspiração para suas canções na paz e na beleza do lugar. José Alencar também ganhou um monumento em sua homenagem, e os bustos de D.João espalham-se pela cidade que ele preparou para ser digna de abrigar a corte portuguesa. Tive o imenso prazer de me sentar ao lado de Carlos Drummond de Andrade nas ondas do calçadão da praia de Copacabana. O Poeta, que também é digno da letra maiúscula, estava sem os óculos arrancados pela sétima vez, se não me engano, mas conservava o ar pensativo e simples que marcou toda sua vida na cidade, que como ele mesmo descreveu, teve sua história escrita no mar.
Foi uma viagem que valeu a pena por ter me proporcionado aquela felicidade gratuita, que vem naturalmente, marcando-nos de alguma forma, e também porque dela levo muitas coisas que vi e aprendi. Termino este texto e resumo minhas impressões desta vigem, com uma poesia daquele que ainda habita imóvel o coração desta cidade.


Memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.


Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.


As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão


Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade


sexta-feira, 11 de julho de 2008

Palavras que valem mais do que o silêncio

O livro As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano é uma ótima opção para quem quer entender de fato como se deu a história de um continente que já nasceu explorado. Eduardo Galenao consegue trazer dados curiosos e interessantes utilizando uma linguagem simples e acessível. O livro tem um tom crítico evidente mas muito bem sustentado por argumentos sólidos e dados verídicos, além disso, possui componentes essencias para que se conheça de fato uma história peculiar e esclarecedora de nossa própria condição atual. A América Latina é desvendada como um continente que empobreceu por causa de suas riquezas, que sempre produziu para atender às necessidades européias, nunca visando o seu mercado interno, uma região que exporta o barato e consome o caro, um lugar fragmentado, dividido, frente a uma Europa forte e desenvolvida. Grande ironia esta que nos apresenta o livro e a própria realidade, ironia que corresponde ao fato de as matérias primas, tão cobiçadas, insistirem em estar no terçeiro-mundo. A impressão é de que rebemos um presente que determinou nossa própria exploração e como conseqüência, nosso próprio subdesenvolvimento.
Um bom livro nos faz pensar, refletir sobre nossa própria condição e também nos provoca sentimentos de indignação. Ao ler As Veias Abertas da América Latina me senti perturbada ao constatar que ao longo de nossa história um continente que sempre teve tanto se contentou com tão pouco. Parte de nossa miséria e inferioridade tecnológica, humana, política e econômica são frutos de uma cordialidade revoltante para com aqueles que nos exploraram de todas as formas com que se pode explorar um continente.
Os mecanismos de poder, os modos de produção e os sistemas de expropriação, que nos são comumente apresentados como produtos do destino, enfrentam o confronto dos fatos na história deste continente e são claramente desmistificados. Como resultados da criação humana, eles podem ser modificados. Mas a mudança exige ciência e consciência. Daí a importância da leitura deste livro.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Uma história

Dona Rosinha, uma senhora com seus setenta e quatro anos, anda, fingindo estar distraída pela Praça da Sé em São Paulo. Pára em frente a alguma vitrine, foge de lugares cheios de outras mulheres e, sem que se possa perceber, começa a conversar com um homem. O homem é, digamos, de meia-idade, aparentemente alguém livre de qualquer suspeita, muito bem vestido, tem um ar de intelectual e conversa amistosamente com Dona Rosinha. Ela parece desconfortável durante toda conversa, não parece estar simplesmente tendo uma conversa ocasional, os olhares são de um compromisso maior.
Dona Rosinha não é uma senhora como outra qualquer, ela vive sozinha em um barraco simples, de terra batida, com algumas coisas velhas amontoadas e perdidas, somente duas fotografias se destacam em meio à bagunça generalizada. Uma é do seu filho e a outra é sua de quando era moça, talvez uma época menos amarga, mais feliz e não tão solitária como se faz sua velhice. Dona Rosinha mostra as fotos a todos que visitam seu barraco com orgulho, saudade e uma pontinha de tristeza no tom de voz.
Os olhos de Dona Rosinha são cansados, conformados, muito fundos e tristes, como um rio profundo e silencioso no qual você se perde em indagações. O corpo e o rosto são envelhecidos pela idade e pelo temp0, a voz é doce, o jeito meigo e suave, parece o de uma menina frágil e desprotegida que ainda não foi apresentada a este mundo e à sua realidade. Mas voltando à conversa na praça com o homem de meia idade, depois de um tempo, Dona Rosinha sai andando em uma direção e o homem a segue com o mesmo ar de superioridade no rosto. Ela entra em um hotel simples, um local que já está acostumada a freqüentar, haja vista a intimidade que tem com seus administradores. O homem a esta altura já está atrás dela. Dona Rosinha entra no quarto e fecha a porta depois que o homem por ela passa. Ela não diz uma única palavra durante uma meia hora, neste tempo, apenas falam seus olhos tristes e humilhados através de lágrimas disfarçadas. Depois de um tempo ela diz: são trinta reais mais dez do quarto. Ela recebe e o homem sai sem dizer obrigado.
O bom jornalismo realmente é aquele feito de boas e surpreendentes histórias como esta que acabei de conhecer por meio do Profissão Repórter, um programa da Rede Globo que mostra os bastidores da notícia e todo trabalho que envolve a realização de uma reportagem, o programa é sem dúvida alguma um dos poucos redutos do bom jornalismo na televisão brasileira atualmente. Imaginar que uma senhora de 74 anos, que já viveu e passou por muita coisa na vida precisa se prostituir por trinta reais, como ela conta na reportagem, é algo triste que chega a doer em pessoas que ainda têm um mínimo de sensibilidade. Não estou encontrando palavras para expressar minha indignação e tristeza perante uma história como essa, que país é esse onde as pessoas têm que se submeter a situações tão humilhantes simplesmente porque não encontram outra forma de sobreviver a essa selva na qual vivemos, que país é esse que não respeita seus idosos, que têm homens capazes de usar e abusar de alguém que deveria estar tendo uma velhice digna e serena, como ela realmente tem que ser. A prostituição é algo conhecido pela grande maioria dos brasileiros, mas, as suas distorções são algo impressionante. Estas distorções acontecem quando ela envolve jovens e idosos, nestes casos o que já é algo degradante torna-se simplesmente indefinível, insuportável, revoltante.
Esse mundo me surpreende e me impressiona cada dia mais, não há sequer palavras pertinentes para descrever essa nossa caótica realidade. Peço que algum ser superior ou alguma divindade proteja Dona Rosinha porque nesta terra de loucos não sei mais para onde implorar por um pouco de lógica, humanidade e, principalmente, bom senso. A única certeza que tenho em relação às pessoas é que elas precisam viver com dignidade. Dona Rosinha admite no final da reportagem, com a voz meiga e os olhos cansados, que lhe são característicos, que não é feliz. Não esperava outra resposta de alguém que, além de viver sozinha, sem ter qualquer espécie de conforto e proteção familiar, tem que encarar uma realidade tão fria que chega a doer, tão degradante que deixa um vazio nos olhos de Dona Rosinha, olhos de um personagem deste mundo que teve sua vida roubada e não pode sequer desfrutar da serenidade e dignidade que qualquer ser humano merece em sua velhice.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Destinos femininos

Ingrid Betancourt
Nestes últimos dias estive guardando algumas impressões e, ao mesmo tempo, aguardando o momento exato de reuni-las em um único texto. Dois acontecimentos envolvendo mulheres de nosso tempo marcaram o noticiário dos últimos dias. O primeiro deles diz respeito à morte da primeira dama, que nunca gostou de ser chamada como tal, Ruth Cardoso, e o segundo à libertação de Ingrid Betancourt, que até poucos dias atrás, era refém das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).
Esses acontecimentos aproximaram duas mulheres distintas e semelhantes, fortes e frágeis, sensíveis mas, ao mesmo tempo, decididas. Ruth Cardoso caracterizava-se pela combinação de elegância e despretensão, de sofisticação intelectual e simplicidade, uma antropóloga que se construiu como tal, no mais puro e simples sentido da profissão. Partiu dela o programa social Comunidade Solidária, do governo FHC, um verdadeiro programa social, próximo do modelo do Welfare State americano, um programa social que não só ajuda como também prepara e cria verdadeiras portas de saída. Ruth foi lembrada com respeito e admiração unânimes no momento de sua morte, talvez ela nunca tivesse tido consciência em vida de sua própria dimensão, afinal, esse tipo de certeza só se impõe claramente em sua plenitude como produto do trabalho da morte. Ruth podia não gostar mas era primeira e dama no sentido mais literal de ambas as palavras.Ingrid Betancourt parece muito com Ruth Cardoso, basta lembrar dos olhos e do semblante firme que ela nunca deixou de portar, mesmo nos momentos mais difícies de sua longa estada junto às FARC. Ingrid foi feita refém por fazer a diferença e, como uma ironia do destino, e elas são tantas, agora sua libertação também fará toda diferença. Mas discutir as questões geopolíticas do fato não é o objetivo deste texto, deixemos que outros veículos informativos se encarregem de informar esta parte da questão, muitas vezes simplificando os fatos.
Aqui, falaremos dos aspectos humanos e das características de uma mulher que se diz feliz e madura, mesmo depois de anos de toda sorte de sofrimentos possíveis e eu diria até inimagináveis. Esta é uma das peculiaridades das grandes mulheres, elas sofrem mas não se fazem de vítimas, ao invés disso, sobrevivem, agem e se afirmam, reforçando a sua luta e seus ideais. Ingrid dá uma lição a todos aqueles que se vitimizam por qualquer bobagem e é um exemplo da determinação e da luta que marca o espírito e o caráter de tantas mulheres.Dois destinos femininos, duas mulheres, uma mesma expressão serena. Ruth Cardoso e Ingrid Betancourt são um exemplo, um conforto e uma certeza de que nem tudo está perdido. A partida de Ruth e o retorno de Ingrid são uma chance para restabelecermos com urgência no Brasil e no mundo a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o correto e o maldoso, o justo e o injusto.

Ruth Cardoso

Do contemporâneo e dos limites

O mundo informatizado está cada vez mais ignorantizado.

As verdadeiras fronteiras são as do pensamento.

Millôr Fernandes

terça-feira, 1 de julho de 2008

Passeio, família, felicidade...

No meu primeiro artigo neste blog gostaria de falar sobre uma impressão particular que tive durante um passeio agradabilíssimo, que selou o encerramento das atividades deste primeiro semestre com o pessoal da “melhor idade”, e que me fez pensar em coisas simples e um tanto quanto importantes. O lugar que nos recebeu chama-se Porto Feliz, cidade simples de pessoas que carregam o mesmo adjetivo em sua personalidade. O lugar deve se orgulhar por ter uma beleza singela, daquelas que a gente ouve falar, mas demora pra saber como é. A impressão, olha a palavra de novo aparecendo por aí, realmente é uma questão de impressão. Bom, deixemos as divagações de lado, voltemos ao centro da questão, mas aviso logo de cara que você, caro leitor, deve se acostumar com as digressões desta que vos fala. À medida que ia passeando pelas ruas desta cidade que acreditem, já fez história, senti sensações que não se podem definir, posto que por serem sensações não há como explicá-las, realmente é preciso senti-las, mas elas se pareciam muito com o conforto da casa dos pais, ou com a permanência daquilo que é certo.
Não vou descrever os lugares, este não é exatamente o objetivo deste artigo, álias, aconselho ao leitor que os conheça. Mas o que realmente me impressionou foi o contato com a família que nos recebeu. A casa era simples, pequena e um tanto quanto aconchegante, a comida era farta, saborosa, suficiente para o corpo e para a alma. A família era composta por filhos e netos de um casal que construiu uma vida juntos, baseando-se no companheirismo e no respeito, menos efêmeros que o amor, que às vezes cobra demais e quando se vê já se passa. Nem por isso o amor me pareceu ausente, pelo contrário, considerei-o algo que transbordava em cada ato de carinho ou até de punição humanamente responsável daquela família, mas era um amor natural se é que me entendem.

José Roque Neto, em seus desenhos sinais de tristeza, que está muito próxima da felicidade, se é que ambas existem de fato, como sentimentos puros e em essência


Quando cheguei em casa vi que esse passeio não foi como tantos outros que eu havia feito, em tantos outros momentos, foi um passeio aparentemente normal, simples, mas que me fez pensar sobre o que é necessário para que se encontre a tão sonhada felicidade, aquela que tantos falam e poucos têm. Dei-me conta disso quando liguei a TV, hábito esse que não sei quando vai me abandonar, e, oportunamente, bom pelo menos acho que foi oportuno, vi uma das cenas da atual novela das oito da Rede Globo, A Favorita. Confesso que sempre pensei que novelas não são capazes de acrescentar nada às pessoas, mas neste dia vi que até aquilo que não acrescenta em nada pode servir de fato para algo construtivo, deixemos o maniqueísmo de lado, assim como ninguém é bom ou mau em essência, nada é inútil ou desnecessário por completo. Mudei, em parte, minha opinião. Vi uma cena que mostrava uma família, aparentemente com os personagens centrais da trama, a casa era luxuosa e grande, ao mesmo tempo vazia e vulnerável, a comida era farta e exagerada e as relações entre pais e filhos (como já diria Renato Russo) eram um tanto quanto frágeis e desequilibradas. O amor era excessivo, as lágrimas exageradas, as dores inventadas, o importante não existia e o descartável sobrava. Não enxerguei na família da ficção, que não deixa de representar tantas famílias da realidade, o brilho e a segurança no olhar que reconheci nos olhos da família de Porto Feliz, onde eles pareciam dizer uns aos outros “eu sei que posso contar com você." Resumindo, não encontrei a felicidade da qual tive o prazer de compartilhar naquela tarde, naquele passeio, felicidadade que brota daquilo que se convencionou chamar de "família de verdade." Dormi pensando em uma frase de Tolstoi, com a qual ele começa o seu romance Anna Karenina, a frase dizia: “todas as famílias felizes se parecem." Quando finalmente peguei no sono vi que, somente naquele dia, tinha entendido o significado da frase.