quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Espera que não espera


As melhores coisas da vida não são coisas...
São aquilo que não se entende, não se define, não se limita.

São aquilo que é anterior à vida, a qualquer sombra de percepção.

São aquilo que arrepia sem aviso, devora e fascina de forma selvagem, primitiva.

São aquilo que que passa muito rápido, e dói, machuca, desintegra...

São aquilo que nos envolve, antes de ser dito ou mostrado.

As melhores coisas da vida não são coisas...

São um silêncio mudo, um abraço desesperado, um amor gratuito

Que é corajoso e equilibrado dentro do seu equilíbrio

Doce e feroz na sua intensidade e transbordamento.

Uma loucura insana, uma pureza que queima.

As melhores coisas da vida são uma vertigem que não se controla.

Por vezes, são aquelas que nunca chegamos a realizar, aquelas pelas quais passamos uma vida inteira esperando.
Mas são maiores e mais legítimas que qualquer outra, posto que cobertas são pelo manto da verdade que não se pretende absoluta e sim coerente, saciadora de cada ponto de vista.
As melhores coisas da vida são por vezes acusadas pela inveja e ironia tristes do mundo.

São o pecado e a pureza da infância, as águas caudalosas de um rio, as arestas de formas que rompem os limites da forma.

As melhores coisas da vida são, às vezes, utópicas.

Mas a utopia é uma das formas de ser.
E SER é uma das melhores coisas da vida!



Chão verde
Vozes estranhas

A mim alheias

Teus restos me beijam


Chão branco
Lágrimas emudecidas

Pensamentos inertes
Teus sonhos me visitam

Chão verde
Alma desprendida do corpo

Corpo que te chama

Derrama brotos ainda incolores que se amam



Alma gelatinosa

Amanhece e anoitece

Entre prosas e selvagens histórias


Alma escrita

Nasce e morre

Entre letras e lágrimas insólitas


Alma cansada

Fala e cala

Escondida entre os degraus da inóspita Escada


rumo ao paraíso das almas desesperadas
que sobem sozinhas

deixando rastros de carcaças despedaçadas



Entre a minha saudade e o infinito

Há um espaço de algumas noites

De alguns fatos

Pessoas
Vozes

Cores
Sons

Que se fazem a mim tão inexpressivos
Entre a minha saudade e o infinito

Se esconde a minha pressa que tenta ser calma
O tempo
O vento
O começo

O fim
dos dias
Dias a estar
Entre a minha saudade e o infinito


M.V

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

"Nós que aqui estamos por vós esperamos"






Se você tivesse que contar a história do século XX como faria? De quais elementos se utilizaria? Como combinaria esses elementos de modo a ampliar a produção de significados e despertar os mais diferentes sentidos e sensações?
Como falar de um século no qual aconteceram duas grandes guerras mundiais - conflitos bélicos que produziram todo o seu saldo de dor, morte e sofrimento ao lado de cenas únicas, encontradas acima de qualquer descrição que se pretenda objetiva.

Como falar de um século no qual as mulheres passaram a ter outro papel na sociedade, no qual as grandes metrópoles se constituíram, o mundo foi apresentado às novas mídias e tecnologias, o modelo industrial conheceu o seu auge, o conhecimento ultrapassou barreiras, sonhos já eram interpretados e o nosso inconsciente era posto a prova com Freud, as artes conheciam Picasso e as possibilidades de novas tendências na forma de representar o mundo e traduzir em cores e formas na tela a angústia do homem moderno. Como falar de um século que conheceu outro sistema de governo, uma alternativa ao capitalismo que prometia mais igualdade e justiça social: o socialismo.



Como dizer de um século no qual o mundo se dividiu em dois no contexto de uma guerra ideológica, um conflito que se dava de maneira indireta e se estendia a todas as áreas do conhecimento humano: a Guerra Fria. Como falar da construção de muros e da destruição destes, como falar de guerras regionais que só serviram para aumentar o poder e a influência de poucos, aumentando por efeito a pobreza e miséria de muitos. Como falar de um século de sonhos, ideias, poesia, arte, música. De um século que transpôs seus limiares mais imperceptíveis e se fez decisivo para o mundo como o conhecemos hoje.

O grande desafio de Nós que aqui estamos por vós esperamos, filme dirigido por Marcelo Masagão em 1998, é justamente falar do mundo e do homem do século XX. A questão é o caminho que o documentário percorre para falar dele, um caminho no qual o que se percebe claramente é a presença de um uso híbrido da linguagem e dos signos e, neste caso, está implícito todo desafio que se processa para que a hibridrização se materialize no gênero documentarista à medida que este trabalha, acima de tudo, com a tênue e fina fronteira entre ficção e realidade.



A opção que se faz em Nós que aqui estamos por vós esperamos é por uma espécie de vídeo arte. Ele é uma espécie de documentário que foge aos padrões convencionais e é por isso que chama a atenção. Primeiramente, se estrutura com imagens de arquivos, extratos de documentários e de algumas obras clássicas do cinema, até aí nada de novo. A questão é que o uso das imagens não se dá de forma isolada, ela se combina com os acordes de uma música melancólica e emocionante, que marca seus compassos com bastante precisão na alma de quem a ouve.

Além da música, as imagens são associadas ao texto, um dos elementos em semiótica que faz com que a imagem adquira novos significados e, portanto, conote. Mas não se trata de qualquer tipo de texto, os textos utilizados são demasiado poéticos e resgatam valores próximos de cada um de nós. O silêncio também é usado de forma perspicaz ao longo do filme, há momentos em que a música cessa por completo como que a pedir no silêncio um pouco de reflexão sobre o que se está vendo. Ou seja, até aqui percebemos que vários sistemas modelizantes são utilizados para compor essa linguagem híbrida de Nós que aqui estamos por vós esperamos.

Mas, talvez, o elemento mais essencial neste filme seja o tipo de história utilizada para contar alguns episódios que marcam o século XX. Fica clara a preocupação com a humanização do relato que se faz por isso mais próximo, toca em cada um que vê, faz com que os olhos de repente se surpreendam marejados de lágrimas. Isso acontece porque o filme trabalha aquilo que é humano, as dores, os pequenos sonhos, hábitos e as singelas felicidades de cada um deles, que também são as singelas dores e felicidades de cada um de nós, daí essa ligação, “nós que aqui estamos por vós esperamos”, o ‘nós’ de hoje se liga ao ‘eles’ de ontem pelos sonhos, dores e tons,além da ideia de morte que também está implícita, afinal, nossos signos ainda são os mesmos e nos compõem em sutilezas, pequenas frases, como se elas se combinassem e se interpenetrassem com tamanha beleza estética e humana que chega a emudecer.


Nós que aqui estamos por vós esperamos é uma aula de história do século XX, mas, acima de tudo, é uma aula sobre a vida, uma homenagem a cada homem que com seus sonhos e medos fez o século XX. Ao contrário de livros acadêmicos que privilegiam os fatos ao falar da história, este documentário privilegia o homem, aquele que de fato escreve a história, são dele as honras, conquistas, glórias, perdas ou derrotas. E, afinal, nada como o homem para contar a história do próprio homem em certa época.
Nós que aqui estamos por vós esperamos são signos, signos e mais signos, que constroem, desconstroem, compõem, aproximam e investem em todas as suas possibilidades de significação, na composição de uma semiosfera. Realmente, o mundo todo é signo, o signo, assim como o homem, é meio, processo, devir...

E como ele produz o belo, o diferenciado!
Como dizia Nietzsche sobre o ato de escrever, “escrever é traduzir a partir daquilo que se conhece o que não se conhece”. No caso de Nós que aqui estamos por vós esperamos, se escreve por meio de signos de modo a produzir um filme que existe nos abismos, nas zonas essenciais humanas e que bebe das entranhas da sua alma enquanto documentário híbrido, da alma deles do século XX, e da alma de cada um de nós.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Caminho do desejo



Quando olho este caminho
por onde escorre e flui meu desejo,
me faço impetuosa.

Espero vir a poesia
por cima de rabiscos apagados
mal traçados e perdidos.

Espero vir a poesia do verde, do cheiro, do tom...

Espero vir a poesia que me desconstrói
no mesmo movimento em que me constrói
nesta linguagem que almeja sentido, arte.

Espero vir a poesia que cria, compõe
com a palavra, com a rima ou com a sua falta,
desenhando curvas e desespero de corpo, paixão da alma

Espero vir a poesia que olhe para o que não é visto,
que não procure explicar, antes apreender, resgatar
a potência que faz a vida mais bonita.

Espero a poesia que faça com que a parte ainda muda
ouça seu próprio canto, com que a beleza ainda maquiada
se faça autêntica e natural, com que a dor hoje sentida
preserve em seu fim a verdadeira alegria,
com que a cegueira branca dos fracos e angustiados
se faça extinta e, por fim, a visão torne-se colorida.

Ver o invisível.
Ouvir o inaudível.
Dizer o indizível.

Espero a poesia que talvez sequer seja entendida...

Quero aquela que chegue em zonas tão profundas ou obscuras da existência que os covardes da sua palavra não possam apreciar, sentir e provar.
Ela seria muito para eles e então dela diriam ser absurda, surreal, louca, grotesca, como fazem todos aqueles que não suportam aquilo que se faz belo, tão belo que ofusca, como um olhar que fulmina e seduz, atrai por ser autêntico, por não ter medo de encarar o outro, seja ele qual for, porque esse olhar já se desconstruiu na construção da sua essência enquanto ser que acontece, que sente, cria.

Espero a poesia que não tenha tempo,
tampouco ocupe espaço
Quero aquela que crie tempo e espaço.

Espero a poesia que brote como água da rocha, limpa, fresca
E, por fim, desça impetuosa e branca como uma bela e misteriosa cachoeira.
E que como a cachoeira não canse de descer, forte, firme, pelas mesmas rochas
entre os cantos e recortes da mesma mata, ano após ano, segundo após segundo, abraçada pelas montanhas, protegida pela eternidade.

Espero a poesia que me faça existir em essência, na potência virtual de um acontecimento, a poesia que me resgate do banal, das paixões tristes, da melancolia vazia, da insegurança desanimadora e sufocante, que me torne amada de mim mesmo, potência do meu meio, presente no meu presente, sem prender-me às faltas do passado e medos ou ilusões do futuro.

Espero a poesia que atraia e arraste as mentes mais obtusas, para que elas descubram sentidos antes despercebidos, para que elas gozem do verdadeiro gozo, saciem-se com a sua própria vida, não se alimentem de falta, não precisem da vida do outro para suportar o vazio existencial da sua. Não precisem do reconhecimento do outro.

Espero uma poesia que não precisa buscar o ideal, a perfeição de forma e essência, a ilusão dos homens. Quero uma poesia que precise do real, do banal, do lugar onde existe o interessante, do olhar, dos sentidos, das histórias, da natureza em sua mais alta potência do falso.

Quero a palavra que se suporte, que se goste, que se renove.

Espero a poesia que não seja vazia, que não esteja separada do que pode e sim próxima do que gera valor, cria potência, alimenta o outro e desperta nele o que ele tem de melhor.

Espero a poesia que desabroche na diversidade, que não alimente máquinas, que não sirva ao poder, que construa e se construa, que trabalhe a linguagem, que tenha sensibilidade e percepção para distinguir sexo e sensualidade, paixão e amor, amenidade e intensidade.

Espero a poesia que componha seus acordes com amor, que faça de seu regime de signos um eterno ensaio literário, uma brecha do tempo, um devir da alma.

Espero a poesia que emocione o outro, mas que o emocione não de maneira que este verta lágrimas de forma desesperadora e sim que ele, antes de tudo, tente esconder suas lágrimas, pois assim serão estas lágrimas sinceras, verdadeiras em uma dor que por vezes esconde uma alegria, alegria também verdadeira, a melhor de todas as alegrias.

Espero a poesia que não tenha verdades absolutas, mas que saiba muito bem qual é a sua verdade e respeite a verdade que existe em cada ponto de vista.

Espero a poesia que seja como uma linda estrada de terra, cercada por montanhas, coberta por um céu azul, por casas singelas, por uma cerca toda poética, por sons da natureza, dos pássaros, das flores, das pedras deste caminho.

Quero uma poesia que seja o caminho, nunca o começo ou o fim, apenas o caminho...


quinta-feira, 15 de outubro de 2009

By Pipilotti Rist



Este vídeo traz cenas da videoinstalação Ever is Over All, de 1997, da artista suíça Pipilotti Rist. Ever is Over All estará no Paço das Artes, em São Paulo, até o dia 6 de dezembro, uma oportunidade para que o público brasileiro entre em contato com a obra de uma artista que tem a cara do nosso século. Pipilotti cria cenários coloridos e grandiosos que nos remetem à infância e ativam nossa imaginação.
São imagens que conseguem nos impressionar em meio a este mar de tantas outras imagens que nos invade todos os dias, projeções que tomam paredes inteiras combinadas com uma música vibrante e com a exploração dos limites entre o racional e o intuitivo, o físico e o psicológico.

A artista suíça une cenas e fatos que podem até parecer prosaicos, mas sob a estética e o estilo de sua arte ganham outra dimensão. Trata-se de uma artista irreverente, capaz de produzir obras que combinam morangos, sexualidade e vandalismo urbano, alimentando-se de ironia, emoção e também das questões relevantes de nosso tempo, um tempo tão confuso, colorido, ensurdecedor, alucinógeno e sonhador, tão a obra de Pipilotti Rist.

Cela vermelha - 3º parte

Cela Vermelha Parte 1
Cela Vermelha Parte 2


As dores na prisão sempre foram assim. O outro sofria sozinho, calado, o sofrimento era problema de cada um.
A mulher que cuidava do nosso pavilhão, particularmente horrorosa, de traços frios e grossos, corpo redondo e movimentos firmes, dizia que o nosso sofrimento era pouco e servia para redimir os tantos sofrimentos que lá fora aos outros havíamos causado. Ela não gostava de Sócrates apenas porque este lhe dizia do prazer e da inveja que se nutre do sofrimento dos outros, ser o sentimento de seres essencialmente cruéis, seres que se preenchem de uma inveja que pisa no território da demência por ser uma inveja não da felicidade, mas da dor alheia.

O silêncio já voltara a reinar nestes cantos cinzentos de cá, Carmen parou de gritar, como todos faziam depois de crises e espasmos pelos outros ignorados. Ao certo, deveria estar encostada na parede sendo segurada por esta, com os cabelos atrapalhados e a face molhada de suor e saliva.

Imaginava-a assim, pois era exatamente assim que eu me encontrava.
Estava desistindo da vida, pela primeira vez me reconheci como uma mulher absolutamente só e percebi meu mundo como um mundo sem sentido, onde nada mais me interessava a não ser os ruídos esporádicos do tempo destes sujeitos quase cinzas, para quem o tempo demorava a passar e insistia em não anistiar.
Neste instante veio a minha mente quase que inconscientemente a voz do Sócrates dizendo que a vida é bela não na liberdade, mas no conhecimento, dizendo que o sentido não está no mundo, mas dentro de cada um, dizendo que a solidão não é dos males o pior, posto que a solidão desperta as loucuras mais sadias e eternas.

E quase que no mesmo instante, como uma espécie de eco ou premonição, sonho ou delírio escutava fora de mim as vozes de Sócrates que estavam outrora dentro de mim. Ele gritava como nunca antes gritara, sua voz deixava transbordar uma dor, uma dor de morte, de potencialidade, de desejo. A mulher do nosso pavilhão apareceu a passos rápidos, sem demonstrar preocupação, e ao parar em frente à cela de Sócrates gritou:
- O homem louco da cela que é toda pintada de vermelho está sendo devorado pelas abelhas, elas invadiram a prisão, estão devorando seu corpo todo, começando pela sua boca, parece que saem da sua boca.

Foi quando me tornei gélida, branca, arrepiada e desejosa da morte como nunca antes a desejara. Antes de entregar-me ao devaneio eterno lembrei-me apenas destas palavras, últimas e intensas. “Vivamos com amor companheiros, amor e beleza, só estes podem salvar o homem de si mesmo”. Lembrei-me destas palavras proferidas por um homem que vivia em uma cela vermelha, enquanto todas as outras eram cinza, e era conhecido por Sócrates, do qual herdara a retórica talentosa, gratuita e eterna, retórica que atraíra as abelhas que antes naquela cela entravam para embriagar-se do pólen das flores, a formar em traços de pedra as paredes de sua cela, e agora queriam beber do mel de sua palavra, mel que brotava de sua boca - doce e malicioso. Agora deliro só, penso, recordo e despejo palavras de um outro que aqui não mais está para escutá-las, para escutar-me.


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Cela vermelha - 2º parte


Eu, particularmente hoje, estava me sentindo muito sozinha. Não sei se assim estava em razão do silêncio mais acentuado do que o normal ou se me sentia atormentada depois do sonho que tivera nesta última noite. Agora dele tenho uma vaga lembrança, imagens soltas, meio embaçadas. Lembro-me apenas de estar conversando com meu pai e com um moço que, à época de minha liberdade, elogiara-me por algumas leituras.

Depois de súbito me perdi por um pomar extenso, úmido e escuro, gritava muda, sufocada, pareciam me tocar, me acorrentar, abelhas me devoravam, entravam e saíam, só vi meu pai indo embora com uma camisa bonita que em uma loja eu havia visto em um tempo outro. Foi quando acordei e olhei para o teto cinza da cela e desde então tenho me sentido perseguida, angustiada, sufocada, como se essas paredes me comprimissem mais do que o normal, como se nelas eu estivesse aos poucos enlouquecendo e me derretendo, diluindo meu caldo humano, dramático e complicado.

Estou achando, por esses dias e noites, que sou toda cimento, que faço parte desta parede, que existo nela, nesta compressão, nesta limitação. Ah! Como tudo isso me entope! Hoje precisava sair, ouvir uma voz, uma música horrível que fosse, precisava de água e só o que vejo é a secura de um cárcere, mais seco que o normal. À secura do cárcere soma-se a secura de minha alma, meu abandono, minha solidão.

Acordei, mais é como se o sonho ainda me perseguisse, como se as abelhas quisessem por fim me devorar, me comer inteira, tirar de mim qualquer espécie de alma, alma esta que já não me resta intacta, apesar de senti-la um tanto assim formada. Se as abelhas ainda não me devoraram, os homens e seu mundo já o fizeram trancando-me aqui, apenas porque me defendi de um homem velho e nojento que de mim quis abusar em uma destas noites da vida, em um desses bares do caminho, em uma dessas fossas banais.

Só não sabia que o homem era rico. E ainda não tinha entendido como as coisas por aqui funcionam, como a brasa por aqui queima e na pele de quem ela arde.
A noite foi chegando e à medida que as sombras cresciam, eu ia ficando cada vez mais enlouquecida pelo silêncio. Neste dia nada comi, sequer me levantei, não tinha forças para pensar. Nos meus tantos livros amontoados no canto do meu espaço cinzento tampouco toquei. Confesso que os olhei diversas vezes, mas me faltava alguma coragem para neles penetrar. Que coisa horrível, que sonho angustiante, que sentimento de morte que de mim se apossava.
Tinha medo.

Medo era a única coisa que conseguia ter certeza de que sentia. Era meu rastro de humanidade e sentimento. Tinha medo das abelhas de meu sonho, achava que elas viriam me devorar, tinha medo de desaparecer dentro deste espaço pequeno e cinza, dentro deste espaço solitário e bravo, dentro deste mundo que pra mim sempre fora duro e injusto.
Foi quando um grito irrompeu o silêncio. Era Carmem que se debatia contra as paredes de seu reduto dizendo algumas palavras confusas e perdidas. Ninguém deu muita importância, tampouco eu que fechei os olhos tentando aproveitar daquele ruído para aliviar-me de minha dor.

sábado, 10 de outubro de 2009

Cela vermelha - 1º parte


Há dias tenho estado sozinha. Fechada pelas lembranças e pelas paredes desta prisão cinza que tomou posse do meu corpo e dos meus sentidos. Os dias aqui são longos, demoram a passar, consigo ler vários livros, dormir quanto tenho sono e até quando não o tenho, posso parar e ficar olhando um ponto que também para mim se volta e me interroga.

Por vezes escuto sons, mas hoje eles estão particularmente quietos, o silêncio está mais silencioso, profundo, denso, quase que diáfano. As paredes já grossas hoje parecem ainda mais grossas, de vez em quando sinto que elas conversam entre si, comunicando por entre as pedras o seu frio e gelado desespero, mas até as pedras da parede estão tão quietas e estáticas que sequer delas se ouve um disfarçado rangido.
Na cela vizinha uma moça jovem chamada Carmem gosta de escutar um tipo de música que se parece com samba, acredito estar entre o samba e o pagode, não o conheço muito bem, escuto apenas porque antes ela o escuta e acabo eu por aqui a ouvi-lo um tanto desgostosa.

Sei pouco da vida de Carmem, aliás, aqui todos sabem pouco de todos, vivemos separados por uma simples parede e é como se vivêssemos separados por um longo oceano de friezas e superficialidades. O que sei é apenas o seu crime, o motivo pelo qual a condenaram e que tampouco julgo justo ou injusto. Antes pensava sobre o mundo e suas coisas, agora minha mente está fatigada, pessimista e desanimada. Mas, enfim, Carmem assassinou o próprio pai quando este tentou violentá-la em uma noite de sábado quando chegava bêbado em casa. Vi seus olhos apenas uma vez e já me pareceram tão profundos e tristes que nunca mais deles me esqueci. Seus olhos são negros como seus cabelos e seu corpo é magro, parece carregar as lembranças do cansaço e da angústia dessa vida. Olhos cinza, como as paredes que o abraçam.

Do outro lado de minha cela vivia Sócrates, um velho com nome de filósofo, contou certo dia para ele mesmo que sua mãe ouvira esse nome uma única vez e dele se fizera quase que apaixonada, prometendo colocá-lo no primeiro filho. O primeiro pelo que sei de escuta nasceu morto, mas o segundo herdou a paixão da mãe e o conhecimento do primeiro que assim se chamou. O Sócrates meu vizinho de cela era um velho interessante.

Adorava falar sozinho, falava consigo mesmo, com a parede, com as pedras que formavam sua parede, pedras que ele sabia não só quantas eram, pois já as havia contado mais de um milhão de vezes como também que tinham um nome, todas ganharam nomes de flores. Além de serem formadas por pedras que tinham nomes de flores, as paredes de Sócrates eram vermelhas, não cinzas como as minhas e a de todos os outros. Ele as pintara em um dia no qual cantara e recitara versos formados em sua cabeça aleatoriamente, alucinadamente. De sua cela, Sócrates dizia perfumada e, por isso, sua presença ali era menos sofrida e mais provida de beleza e cheiros originais da natureza, além do tom vermelho.

Hoje, Sócrates não falara nenhuma vez, não o ouvira dar conselhos às pedras, tampouco para si mesmo, não o ouvira recitar verdades por ele postuladas ou mentiras por ele enganadas. Tampouco o ouvira falar da beleza. Todos os dias ao meio dia, Sócrates falava da beleza. Este era um momento único de nossa longa eternidade diária. Todos, de repente, paravam seus monólogos e gestos solitários para ouvi-lo recitar as belezas do homem, as belezas do céu, do inferno, deste mundo e do outro, era como se ganhássemos a liberdade por meio do contato com uma sombra do belo e era esse o desejo de Sócrates.

Para ele, apenas a beleza cantada e contada poderia libertar o coração dos homens. O que mais me chamava a atenção em Sócrates era justamente o fato de ele estar fisicamente preso, mas se dizer livre. Nunca vi seu rosto, posto que quando cheguei por aqui ele já estava e de sua cela nunca saía, nem para comer, tampouco para tomar um banho de sol. Nunca vi ninguém lhe levando comida, de fato não sabia como ele sobrevivera já por este modo por tanto tempo. Todos diziam que ele era louco, a prisão e o limite das paredes o teriam enlouquecido, mas eu, sinceramente, acreditava ser ele o mais lúcido de todos que ali condenados à solidão se encontravam.

domingo, 4 de outubro de 2009

Desejo

Luiz Fuganti


Luiz Fuganti é filósofo, arquiteto, professor e escritor. Desde 1986 ministra cursos, palestras e seminários acerca de um tipo de pensamento sem referências, imanente à própria natureza. Foi um dos fundadores da ONG Pivot em 2002, não mantém vínculos institucionais e criou um movimento, a Escola Nômade de Filosofia, resultante das práticas de pensamento que vem realizando.

Recentemente, assisti a uma palestra de Luiz Fuganti que desconstruiu a idéia de verdade comumente estabelecida entre nós. Ele começou sua palestra indagando “quem precisa da verdade?” e durante toda a sua fala buscou demonstrar diante do público a coerência e sustentabilidade da resposta dada por ele a esta pergunta “aquele que precisa da verdade exterior, imposta, construída sócio-historicamente e religiosamente é aquele que possui uma vida reativa em contraposição a uma vida em essência, dotada de potencialidade e autonomia, pensamento alegre e produção de um corpo pleno”.

A partir daí, Fuganti discorre sobre a história da verdade, fala dos três mestres da verdade na antiguidade grega, sobre um novo mestre da verdade e, por fim, sobre a condição de acesso à verdade. Como pano de fundo de todas essas discussões sobre verdade e mentira aparece a relação entre o desejo e o pensamento, quando Fuganti nos revela a existência de dois caminhos: o caminho da forma e o caminho do acontecimento, sendo que apenas este último é capaz de nos conduzir a uma verdade.

Verdade esta que não se faz absoluta em relação ao mundo exterior e físico das aparências, posto que esta não existe, mas verdade do mundo interior de quem constrói uma vida cuja essência permite recebê-la.
As ideias de Fuganti se contrapõem ao tempo em que vivemos, um tempo em que não mais se ousa desejar, agir epensar, um tempo onde a covardia, o medo de arriscar e de criar novas maneiras de viver corrói as consciências, como diz o filósofo.

"Vivemos um pessimismo e conformismo íntimos da contemporaneidade e com isso nos esquecemos de buscar e nutrir modos de vida que se constituem como autênticas obras de arte e modos de eternidade." (Luiz Fuganti)


Aos navegantes indico aqui um vídeo no qual Fuganti fala sobre o desejo e sobre a ilusão que construímos em torno dele. O filósofo diz que nosso grande equívoco na contemporaneidade é conceber o desejo como um sentimento que deseja algo exterior a nós, que está fora do nosso alcançe e que complementaria a nossa substância, o nosso sujeito, ou seja, ao desejo faltaria o objeto, ele se constituiria na falta, um grave erro que alimenta muita confusão e serve apenas ao poder, este que se nutre de ilusão e confusão.

Fuganti aponta um caminho para que essa ilusão possa ser desfeita desde que o sujeito entenda que tudo começa pelo meio, o desejo na verdade está no próprio acontecimento, no cerne do acontecimento, como diz Fuganti, então é o acontecimento que deseja em nós e não algo em nós que deseja o objeto.
O sujeito precisa encontrar a natureza do desejo no inconsciente da superfície: a virtualidade. O virtual é que deseja em nós, na medida em que a presença que nos constitui se encontra com a virtualidade do acontecimento. Nesse encontro o desejo emerge e se efetua.
Desafio fugantiano: O que é o acontecimento que deseja em nós? O segredo é chegar até ele para nos libertarmos de todos os sistemas de referência.

sábado, 3 de outubro de 2009

Sem nome



E pra quando nada mais deste meu corpo sobrar

Nenhuma dor, voz ou toque

E pra quando nenhum amor mais esse coração suportar

Nenhum arrepio, loucura ou desespero

E pra quando nenhuma lembrança mais de ti ficar

Nenhum sussurro, grito ou silêncio

E pra quando tudo que restar for caos e mar

Nenhum toque, cor ou cheiro

E pra quando eu por aqui não mais vagar

Nenhum passo, suor ou devaneio

E pra quando todo o som desta terra de súbito se calar

Nenhuma lágrima, angústia ou solidão

E pra quando toda melancolia de meu peito brotar

Nenhuma ausência, pena ou compaixão

E pra quando de mim tudo voar

Nenhuma estrada, porto ou abismo

E pra quando de tudo nada restar

Ainda terei esta da qual uso, abuso e amo estar

E pra todos os efeitos serás universal

Meu retrato do mundo

Pra quando dele não se escute mais a sonora melodia

Não se prove mais do delicado sabor

Não se entorpeça mais de um longo beijo

Não se arrepie mais de uma densa respiração

Não se inebrie mais de uma bela figura

Que a palavra mate a sede das almas suspensas

E pra quando deste mundo só a tristeza restar

Que ela alimente a palavra

Como a palavra dela se alimenta

Nos dias e noites nas quais deste mundo

Pouca coisa se entendeu

Entre sentidos e calafrios

E pra quando a mente por fim enlouquecer

E viver...


"A mais bela das primaveras"

O balé A Sagração da Primavera estreou em Paris no dia 29 de maio de 1913 com música de Igor Stravinsky e coreografia de Vaslav Nijinsky com direito a uma vaia que ficou marcada na história da arte. O fato é que se A Sagração chocou na estreia aos poucos foi caindo no gosto do público e se tornou uma espécie de “clássico de vanguarda”. Por mais paradoxal que a expressão possa parecer ela reflete muito bem o espírito do balé que inovou não só a dança e o modo de fazê-la como também a concepção de arte.


A Sagração da Primavera já foi apresentada em diversas versões nas quais os coreógrafos buscam com olhares peculiares contar a história de uma jovem que precisa ser sacrificada e oferecida ao deus da primavera. Mas, o mais impressionante não é essa antiga lenda russa que serve de pano de fundo para a história e sim o espetáculo de corpo, mente e alma que é apresentado pelos bailarinos no palco. Na primeira versão de Nijinsky, os dançarinos tremem, se contorcem em espasmos, dizem sem dizer, harmonizam seu corpo com a música, promovem uma encontro sublime entre representação e realidade. Eles golpeiam o solo com os pés, contrariando o tradicional “flutuar”, tudo isso em uma atmosfera mais rebuscada tanto no que diz respeito ao cenário quanto em relação ao figurino.


Já a primeira grande releitura da Sagração da Primavera tornou os recursos de cena mais econômicos e retirou a história do contexto regional russo. O francês Maurice Béjart em 1959 transformou a história do balé numa celebração ao amor universal. Para ele, o encontro carnal de um homem e de uma mulher no balé simboliza, também, a união do céu e da terra, a dança de vida e morte – “eterna como a primavera”.
Outras versões de A Sagração da Primavera foram feitas por Martha Graham em 1984 e pela coreógrafa alemã Pina Bausch em 1975. Pina trabalha em sua releitura as relações humanas, tema constante em toda sua obra e concebe a batalha entre vida e morte em um palco coberto de lama que, aos poucos, vai se alojando nos pés descalços, no peito nu dos bailarinos, nas camisolas transparentes das mulheres.
O fato é que em todas as versões de A Sagração da Primavera a ênfase na sexualidade sempre foi uma constante com movimentos pélvicos, violentos, de extrema intensidade, ou seja, os gestos primeiros de Nijinsky foram preservados e aquela vaia inaugural realmente ficou para trás dando lugar à verdade da contestação, aos movimentos de vanguarda na arte, a uma nova forma de dança que incorpora elementos da arte teatral e assim se faz dotada de uma força e essencialidade fora do comum.




Aviso aos navegantes: A Sagração da Primavera, versão de Pina Bausch, foi apresentada no Brasil agora no mês de setembro no teatro Alfa em São Paulo. No entanto, para quem não pôde ver (como esta que vos fala) ficam aqui fotos de algumas versões do balé e também a dica de um espaço no qual o leitor pode encontrar vídeos com trechos de releituras de A Sagração da Primavera. Vale a pena ver e se impregnar de arte no sentido mais completo que este termo pode ter. Arte em essência, beleza, harmonia e intensidade da música, do corpo, do ritmo, do olhar, do tempo e do espaço.

Com toda a força e a esperança da mais bela das primaveras...




quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A lógica do “Carpe Diem”


Hoje queria escrever sobre alguma coisa, preencher este lugar que está precisando do sabor da novidade, cansado do que nele já está, das letras já traçadas, da imagem já representada. Quero escrever mas não sei sobre o quê, tampouco me surgem ideias ou me sobra o tempo. Este vem escasso, rápido e intenso. Se termino algo, logo vem mais uma coisa, se respiro aliviada, essa respiração em instantes é sufocada e o ritmo volta a ser frenético. Neste momento em que traço estas linhas de cá penso em acontecimentos corriqueiros do meu dia de lá, das vozes, das cores, dos sons.
Hoje, almocei ouvindo músicas que marcam e já marcaram alguns momentos desta minha vida, melodias que me são conhecidas, letras que trazem lembranças de outrora. Almoçar de repente ficou mais sonoro, nítido, de todo mais alegre. Ah! Como podemos resgatar certos brilhos de nosso frio e atormentado cotidiano. E como perdemos tempo em falar de outros, em julgar outros, em olhar com um olhar torto, às vezes mesquinho, tão superficial e limitado. Quanto tempo perdemos com ausências, sendo que destas talvez a que nos traga mais prejuízo seja a do nosso próprio presente. Vivemos sem presente, querendo sempre voltar ao passado ou prever e chegar logo ao futuro. Que inconstância, que utopia da idade perfeita, da felicidade plena, da verdade absoluta. Quantas utopias vãs e sem sentido. Vivemos a Era do Prometeu, acreditamos que o mundo nos deve tudo e tudo nos deve ofertar, a nós cabe receber não dar. E com isso nos afundamos em incoerências, conflitos, dramas, vivemos uma vida reativa que simplesmente não acontece, uma vida de entupimentos, aparências, neuroses e alucinações. Terminamos seres controlados, por deus, por governos, pela mídia ou seja lá por quem mais deseje aparecer com uma dita verdade absoluta que a nós se impõe de forma alienadora, ilusória e automática.
E aonde fica a essência, a vida que se permite viver, a sensibilidade e o tempo para ouvir uma música durante um almoço e lembrar de cenas da vida, o caráter e a autoconfiança de quem não precisa falar do outro, da vida do outro, porque está alegre e experimenta de uma completude em relação à sua própria vida?
Quanto mais eu olho e penso, mais vejo o quanto precisamos aprender. Buscamos e valorizamos tanto uma verdade vã, que esquecemos de encontrar a nossa própria verdade, a que vem de dentro pra fora e não de fora pra dentro, a verdade autônoma e não a determinista.
Mas como já dizia Mário Quintana, e aproveito assim para deixar por essas páginas de cá minha homenagem a ele...

Um dia descobrimos que beijar uma pessoa para esquecer outra, é bobagem. Você não só não esquece a outra pessoa como pensa muito mais nela…
Um dia nós percebemos que as mulheres têm extinto “caçador” e fazem qualquer homem sofrer…

Um dia descobrimos que se apaixonar é inevitável…

Um dia percebemos que as melhores provas de amor são as mais simples… Um dia percebemos que o comum não nos atrai…
um dia saberemos que ser classificado como “bonzinho” não é bom…
Um dia percebemos que a pessoa que nunca te liga é a que mais pensa em você…
Um dia saberemos a importância da frase “Tu se tornas eternamente responsável por aquilo que cativas…”

Um dia percebemos que somos muito importante para alguém mas não damos valor a isso…
Um dia percebemos como aquele amigo faz falta, mas ai já é tarde demais…
Enfim… um dia descobrimos que apesar de viver quase um século esse tempo todo não é suficiente para realizarmos todos que os nossos sonhos, para beijarmos todas as bocas que nos atraem, para dizer tudo o que tem que ser dito…

O jeito é: ou nos conformarmos com a falta de algumas coisas na nossa vida ou lutarmos para realizar todas as nossas loucuras…

Quem não compreender um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação.

Decidi escrever esse texto depois de perceber que alguns belos quadros de temática indígena estão expostos no meu local de trabalho há alguns dias e que só hoje me dei conta de sua presença depois de já ter por eles passado inúmeras vezes!