domingo, 28 de fevereiro de 2010

Da adaptação

Sob influência dessa idiossincrasia, colocou-se em primeiro plano a "adaptação", ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade, chegou-se mesmo a definir a vida como uma adaptação interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas (Herbert Spencer). Mas com isto se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder; com isto não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a "adaptação"; com isto se nega, no próprio organismo, o papel dominante dos mais altos funcionários, aqueles nos quais a vontade de vida aparece ativa e conformadora. Recorde-se o que Huxley criticou em Spencer- o seu "niilismo administrativo": mas trata-se de bem mais que de mera "administração"...

Nietzsche em Genealogia da Moral

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Contadora de histórias



Ela sempre usava um xale, às vezes, eu notava que ele era colorido, bastante estampado com algumas flores ou desenhos de forma familiar, que, aos nossos olhos, parecem estar presentes em todos os lugares. Outras vezes, ele era apenas de uma cor, branco, vermelho ou negro. Quando era negro dava a ela um ar de superioridade, quase de coisa inalcançável, sublime, fria e distante, levemente pensativa, detentora da ponta da eternidade ou do prazer efêmero do mais envolvente dos instantes. Vestida com um xale negro ela estava da última vez que a vi e vestia apenas isso: um xale negro. A brancura límpida, diáfana, do restante do corpo contrastava com a negritude do tecido, ela figurava de um tom enegrecido na claridade, quase como uma vertigem, sua imagem fugia aos meus olhos, adormecida e doce, tal como sua voz que falava. Era um dia de chuva, frio, com ventos acelerados, almas agitadas, tons e ritmos misturados, se parecia com uma receita de melancolia sem saudade, cheirava a abacate maduro, esperando algo, esperando alguém, esperando alguma palavra, a derradeira história. E ela veio. Quase que escondida, foi aos poucos desfazendo-se do seu véu empoeirado e despejou-se no tecido das almas ali presentes.
Lembro que naquele dia éramos quatro mais a contadora de histórias. Coberta pela escuridão do xale, ela contou de um rei, bastante sábio e nobre, demasiadamente poderoso e que se tornara também, em virtude da vida e das coisas do destino, demasiadamente humano. Seu reino era o mais extenso de toda idade antiga, abrigava povos de variadas cores e vozes, terras de inúmeras plantas e solos, árvores de incontáveis formas e frutos, rios de múltiplas margens e velocidades, mulheres de todas as belezas e idades, homens de inacreditáveis forças e vaidades, crianças de incríveis sonhos e curiosidades, velhos de todas as dores e saudades. O rei assim se tornara rei aos quinze anos quando já era um bom lutador, hábil na guerra, rápido nas emboscadas, inteligente nas negociatas, embora nesse tempo ainda fosse bastante convencido de si mesmo. Sem o perceber, o rei já estava cansado e aborrecido de si mesmo, apenas se iludia com vitórias sem trégua, com louvações sem verdade, com promessas sem dignidade. Seu mundo era festa, milagres, conquistas, seu poder parecia não ter fim, sua glória e força, típicas da juventude, faziam-no pensar que viveria mil anos, apenas a sua consciência alertava de vez em quando, sutilmente, que tanta certeza resvalava na soberba e vaidade, não deixando de tangenciar a estupidez e mediocridade. Até que um dia, o rei com um mundo todo a seu dispor, cheio de vitórias e promessas pela frente, descobriu que não chegaria aos trinta anos de idade. Ele começava a ser lentamente devorado. Por um lance do destino ou castigo dos deuses, sua pele até então fina, macia e delicada, passou a ser consumida pouco a pouco, castigada por feridas que vinham de dentro pra fora, deformada por fantasmas, queimada por chamas impiedosas, estupidamente comida e mastigada por ratos da escuridão. O rei era agora leproso aos vinte e dois anos de idade. Para que seu vasto reino não se assustasse com sua desintegração e deformação em vida, cobriu as mãos com panos brancos, revestiu a face com uma máscara prateada de formas bastante perfeitas, harmônicas e delicadas imitando um rosto que parecia ser o da mais bela das mulheres já existentes neste mundo e disfarçando o horror do mais nobre dos reis. Lançou-se uma sombra sobre a sua própria existência cada vez mais fraca e, ao esmo tempo, nobre. Doente, o rei se tornou maduro, pensativo, demorava-se nas questões sobre coisas do dia-a-dia que antes sequer se debruçava, esquecia por mais tempo seus olhos nas terras que conquistara, terras que até então ele sequer parara para admirar. Sua voz, sempre macia e antes recortada por um fino tom autoritário, agora era marcada pela mesma maciez, mas por uma doçura e temperança próprias daqueles que perderam a beleza do corpo e encontraram as respostas na visão de suas almas, posto que a visão do primeiro seria por demais insuportável, intolerável.
Assim, o rei aparecia aos olhos do mundo, cada vez mais fraco e, no mesmo movimento, cada vez mais autônomo, amoral, livre de vaidades, corroído de corpo, adormecido e engrandecido de alma.
Nos anos ligeiramente reclusos da doença ninguém nunca via seu rosto. Quando o rei morreu, ao tirarem sua máscara prateada, apenas um som mudo, um contorcer dolorido de lábios, um umedecer repentino de olhos desenhou-se nas expressões de alguns. Aquilo não era o rei, outrora tão lindo, jovem e saudável, era apenas um rosto de monstro, devorado em algumas partes, desfeito em sua perfeição, deformado por uma doença que lhe atacou a casca, mas conversou um fruto eterno e delicioso. Sobre seu corpo morto, docemente colocado, esquecia-se um xale negro, bastante perfumado a exalar um cheiro de lírios e abacates.
Foi quando o xale deslizou suavemente pelos seus ombros, sem pressa, ela os recolocou no lugar com um simples e lento movimento de braço e continuou, agora já era outra a história...
Em um dos cantos do extenso reino de um belo e valente rei, havia uma menina. Tinha lá os seus dezesseis anos, para os outros era ela uma menina, para ela mesma, já era uma mulher. Na verdade, ela era uma daquelas pedras preciosas, cujas condições de existência fizeram os anos pesarem mais, tornando-as joias maduras e delicadamente lapidadas. De olhos pequenos, tentadores, envergonhadamente decifradores, tingidos por um tom castanho e emoldurados por longos cílios bastante enegrecidos, a menina sempre tivera uma olhar perturbador combinado a uma alma revestida de névoa bastante espessa e densa, temperada com incertezas e mistérios. Aos olhos do mundo, ela pairava como uma alma suspensa, que infligia penas e castigos com um simples olhar. Muitos já haviam sido os que naquela aldeia se debruçaram sobre o segredo daqueles olhos que ora pareciam generosos, ora pareciam mesquinhos e egoístas, às vezes eram perdidos e vagos, como suspiros desencontrados, em outras, eram certeiros e retos, como seta mirada e cravada. De todo sempre eram belos, como um desmaio doce de fim de inverno e começo da primavera, como um desabrochar tímido e suave da mais bela das flores do campo, como um aroma sem nome, sentimento sem dono, palavra de repente muda e eterna. Os olhos lhe preenchiam o rosto, davam a ele equilíbrio e formas perfeitas, combinando com a boca de lábios nem tão finos, nem tão grossos e com o nariz altivo e onipotente, destes que exalam o desejo e a certeza de que com a beleza podem dominar o mundo, deitarem as almas, subverterem o próprio destino e, por fim, regarem a terra com lágrimas semeadas no vento de um excesso de perfeição.
A menina se chamava Helena, tal como Helena de Tróia, a mulher que ocupou docemente e detalhadamente dois corações inimigos na política que, por interesses econômicos, provocaram uma guerra de dez longos anos. As bocas dizem que, além dos interesses comerciais, entranhado e pregado como feitiço nos seus corações, gritava o amor pela mesma mulher, a durar, soberanamente, uma vida toda. Os pais da menina da nossa história adoravam o nome Helena e, principalmente, admiravam a mulher que o portara em outros tempos, assim não hesitaram em dar à sua filha o mesmo nome, desejosos de que ela também conservasse ao menos um pouco da graça e majestade da primeira. A beleza seria demais, esta os pais honestamente não almejavam, queriam apenas a alma altiva e parecida com a de uma heroína de um belo romance. Mas, quando a menina nasceu, viram que a beleza a escolhera, ainda não sabiam da alma, dos seus desejos e das suas insatisfações, mas a beleza já estava à mostra, uma beleza tão grande que desde o começo já incomodava.
À medida que o tempo ia passando, Helena mostrava um certo pendor para as artes do corpo, dentre elas, a dança. Dançava lindamente! Seus movimentos eram coordenados, verdadeiros, intensos, era como se em cada um deles sentisse a mais gloriosa das alegrias ou a mais pungente e dilacerante das dores. A sincronia de seu corpo era perfeita, os cabelos dançavam e se penteavam no mesmo movimento do restante do corpo. Dançando, ela era simplesmente insuportável, não só pela leveza e exatidão com que se fazia uma bailarina sobre o palco, isso muitas outras tinham, mas, acima de tudo, pela beleza de seu rosto, pela harmonia do seu corpo, pela seda esvoaçante a confundir-se com seu cabelo que, combinados aos passos da dança e ao ressoar da música, faziam-na testemunho do sortilégio despejado pelos deuses sobre essa terra habitada por homens tão vis, tão cheios de si, e tão estupidamente pequenos. Se as mulheres sentiam inveja, os homens enlouqueciam ao vê-la. No início, tratava-se apenas daquela loucura própria dos arrebatadamente apaixonados, depois tornava-se insanidade mental, os homens deixavam casa, esposa, filhos, gatos e cachorros e vagavam pelas ruas nus gritando o seu nome, deitavam sob a janela do seu quarto, uivavam como cães abandonados, assim viviam dias e dias, esperando ao menos um daqueles olhares, ah o prazer de decifrar aquele segredo navegava na alma suspensa de cada um daqueles homens, loucos eles ficavam, era como se a beleza da dançarina não pudesse conviver com a razão e moralidade mesquinhas a tornar o homem dependente e fraco. Sua beleza só colhia lírios, lírios que como já dizia um poeta, existem apenas no osso da fala dos loucos. E enquanto os homens perdiam a razão, Helena continuava linda e silenciosa, falando pouco, reparando demais, dançando e vertendo vendavais.
Foi quando na pequena aldeia em que vivia, não demorou muito para que os boatos corressem soltos, como plumas despregadas de um travesseiro e lançadas ao vento indo cada uma para um lado, perdendo-se levianamente para sempre. Todos falavam que a menina Helena visitava o rei, dono e senhor de todas as terras próximas da aldeia em que ele vivia, e ainda diziam que ela fazia suas visitas no seio de todas as madrugadas e com ele, vinha tendo já há algum tempo, uma tórrida história de amor.
De fato, Helena saía todas as noites de sua casa, vestindo apenas um xale negro, mais nada, e dirigia seus passos coreografados para o castelo onde vivia o rei. Entrava por uma porta secreta que ia dar diretamente no quarto deste último. O rei já notara desde muito a beleza daquela menina que aos seus olhos sempre fora uma mulher, muitos dela falavam, outros tantos por ela enlouqueciam, seu exército, inclusive, já tivera uma baixa considerável no número de homens em razão da loucura que acometia muitos dos que a viam. Todos esse poder a emanar de uma mulher o fascinava, para ele era como um desafio novo e empolgante que fugia um pouco daquela acomodação e mesmice cotidiana de sempre ter em sua cama mulheres comuns, medianamente belas, estupidamente frescas e totalmente vazias. O rei queria mais, Helena parecia ser mais. Ela, por sua vez, sempre o achara belo, altivo, imponente, forte, com mil anos de vida pela frente. Acima de tudo, ela o achava bom, honesto, nobre, um verdadeiro rei, destes que defendem o seu povo e não perdem a sua dignidade.
O primeiro encontro foi simplesmente mudo. Quando os olhos do rei pousaram naqueles olhos misteriosos de Helena, eles docemente se esqueceram ali. Não conseguiam desviar-se, não podiam suportar-se de tanta beleza, lágrimas explodiram insossas e já apaixonadas, o rei a tomou em seus braços, a beijou longa e deliciosamente. Depois, esquivou-se, a olhou por inteiro, pediu, sedutoramente, para que ela dançasse pra ele, só pra ele. Combinando o movimento do seu corpo com os movimentos de mão com que fazia bailar o seu negro xale, Helena dançou como um imenso campo de girassóis, iluminada, uniforme, harmônica, petulante, misteriosa, mutante e, se fez, em um só movimento, mulher e criança, sua dança tinha a graça pueril da infância e também a sensualidade branca do fruto levemente amargo e já maduro.
A cada noite pareciam mais apaixonados. Helena mostrava-se diferente aos olhos da família e dos habitantes de sua aldeia, sua dança já era menos petulante e mais natural, seus modos menos desesperados e mais doces, sua voz menos entrecortada e mais completa, seus dias menos longos e com mais sentido. O rei continuava, como sempre fora, conquistador e generoso, com a gota pingada pelo verdadeiro amor, parecia ainda mais lúcido e coerente, mas continuava levemente arrogante, agora então, que conquistara a mulher mais fascinante de todas as terras próximas, não cabia dentro de sua vaidade e grandeza, para alguns dizia que não viveria apenas mil, e sim dois mil anos, quiçá por toda a eternidade!
Até que em uma das madrugadas, o destino se apressou em não dormir depois que os homens. Naquela noite, Helena dançou como nunca antes havia dançado, o rei a beijou de forma tão interminável que ela julgou estar em um deserto lindamente longo, com um céu tingido de vermelho, salpicado por algumas manchas róseas, perfumado por um cheiro de eternidade, de perfeição, cantado por vozes afinadas e melancólicas. Acordando daquela espécie de vertigem, Helena, sem querer, no mais profundo e inexplicável instinto, sentiu que o xale queimava sobre a sua pele, ardia feito brasa incontida e esfomeada, pronta para devorar e morder a própria noite. Em um impulso frenético, atirou o xale enegrecido na claridade derramada pela lua, sobre os ombros nus do rei. Assustada, Helena correu em direção à saída, sem entender, o rei a seguiu e gritou seu nome desesperadamente, como pressentindo um mal que ainda não conseguia distinguir. Pode vê-la afastar-se pelo corredor cinzento, toda nua, grande, muda. Foi a última vez que a viu.
No outro dia, Helena descobriu que o rei fora acometido por uma das doenças mais terríveis de todas as eras e épocas. Segundo soube, ao acordar pela manhã, ele viu suas mãos já inteiramente deformadas, sua pele a verter feridas em carne viva, em breve, ele todo seria uma sombra monstruosa do que um dia foi. Inutilmente tentou visitá-lo, o rei não queria vê-la. Elas apenas o via de longe, quando este não podia vê-la no meio da multidão. Nestas ocasiões, notava que ele sempre aparecia escondido sob uma máscara prateada quando já não era mais o homem que ela tanto amara e que, dolorosamente tinha consciência, ela castigara não com a loucura da mente e sim com a desintegração do corpo, de toda e qualquer vaidade, em uma jogada na qual a razão se faria cada vez mais lúcida, não mais arrogante, apenas nobre, consciente de seus limites, não mais seduzida pela ilusão da eternidade do corpo, perecível e efêmero, e sim condutora de uma alma que se conservaria bela, serena, como um diáfano rio que se desprende das suas margens correndo livremente, sem moralidades que o prendam.
Depois da última vez que o viu, Helena olhou-se refletida nas águas de um rio próximo à sua casa. Odiou toda a sua beleza, rasgou com fúria o reflexo do seu olhar, e, em meio a tanta angústia e dor, descobriu que a máscara prateada usada pelo rei imitava exatamente as formas e traços da sua face. No entanto, não levava os seus olhos, apenas não pesava nela aquele segredo. Era como se o rei combinasse, na agonia da sua doença, a perfeição do rosto da mulher amada à generosidade gratuita que sempre se refletira no seu olhar. Confusa e quase que enlouquecida, Helena correu em direção a algo que não tinha nome, a um nada no infinito, procurando fugir daquela imagem que esfumaçava sua mente, seu rosto nos olhos dele, seus olhos na alma dele, sua dança como expressão perpendicular de um desejo horizontal. Nunca mais ela dançou, a maldição de seus olhos a condenaram à solidão, perdida, algumas pessoas ainda contam que ela vagava chamando por um nome, usando apenas um xale preto a ouvir as vozes mudas do universo em um vácuo de poesia e recordação.
Com um breve e dolorido suspiro, ela terminou a história daquela noite. Novamente, deixou cair o xale que cobria um dos ombros revelando a mesma pele branca e profunda de todas as madrugadas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Perdido



Não passe por mim
como quem passa pelos anos,
tímido e pensativo.
Não olhe pra mim
como quem olha o horizonte altivo,
perdido em mera contemplação.
Não me vista assim
como quem veste um paletó,
reto e sem emoção.
Não me descreva de cabeça
como quem descreve sem vibração,
morno e colecionando pó.
Não me faça tua
como quem toma pra si a lua,
e a esquece com o nascer do sol.
Apenas me faça muda
como quem deita na rua,
e abraça uma alma nua.
Me tome múltipla e escura,
e faça de mim somente uma,
mesmo assim ainda não serei
detalhadamente tua...

M.V

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Antes das aspas


O ar respira diferente
A incerteza veste o que vem pela frente
Meus olhos desfilam esquecidos no chão
O ar paira ausente
Eu sou agora como aquele
que, de repente,
não sabe mais o que sente.


Saudade das letras,

do romance delicado,
quanta assessoria neste espaço!
Não recuso a literatura,
vou aonde os versos estão,
neles eu percebo a mim mesma
é como a claridade na escuridão.



Constante

mente
Cansa-me
sente
Distante
mente
Demora-te
quente



Vou esperar

seu toque de dedos trêmulos
Vou revirar
seu salto de murmúrios breves
Vou desafiar
seu cotidiano de olhares inertes
Vou descobrir
seu palco de panos transparentes
Vou implodir
suas ruínas de versos indecentes
Vou decidir
se te coloco aspas ou parênteses

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Do homem contemporâneo

Hoje nada vemos que queira tornar-se maior, pressentimos que tudo desce, descende,torna-se mais ralo, mais plácido, prudente,manso, indiferente, medíocre, chinês, cristão - não há dúvida, o homem se torna cada vez "melhor"...E precisamente nisso está o destino fatal da Europa - junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa - o que é hoje o niilismo, se não isto?...Estamos cansados do homem...


Friedrich Nietzsche em Genealogia da Moral

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Desintegração

Galatea of the Spheres, Salvador Dalí


Perdi a voz.



Sucumbi a um delírio sem nome,
o abismo enegrecido do prazer
misturou-se à intensidade de algumas lágrimas
vertidas sem que eu pudesse perceber.

Senti a sua alma.
Primeiro apenas a ponta dos dedos,
depois a doçura dos beijos,
o repousar da face,
a suavidade da voz.
Fugiu-me naquele instante o medo.

Andei pelo outro lado da rua,
colhi outras paisagens,
encontrei a minha saudade
toda revestida de negro
com uns olhos sem cor.
Estava um pouco envergonhada,
sedenta por paisagens mais largas.


Um suspirar do amor...

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Algo

Era algo além de mim,
um aperto maior que a solidão,
uma angústia maior que a dor,
um vazio com cheiro de cinzas de flor.

Era algo que me apertava,
um adeus sem a lembrança de um olhar,
uma palavra muda,
um sentimento deitado na rua.

Era algo que me espreitava,
uma vertigem que assombrava,
um ruído que faltava,
um tempo que sobrava.

Era algo que não tem nome,
uma incerteza de mim mesma,
uma luz que não está mais acesa.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Um desmaio doce

Criador de uma obra que não se encaixa em nenhuma das escolas das vanguardas, o pintor russo Marc Chagall (1887 - 1985) pintou na tela com cores vibrantes, formas originais, temas fantásticos e também religiosos, uma forma única de se fazer arte. Considerado um expoente da arte moderna, Chagall foi muito além dela, materializando uma arte sem nome que incorporou aspectos de diferentes correntes estéticas às cores e formas da tradição russa. O pintor bebeu de diversas fontes e produziu algo fascinante e inexplicável perpassado por uma presença marcante de imagens bíblicas. Judeu, o pintor retrata em uma série de gravuras, pinturas e vitrais, cenas do Antigo Testamento. Independente de religião, a arte de Chagall é um espetáculo aberto diante dos olhos atentos e fascinados de quem se rende à alma colorida, pungente, levemente melancólica e marcada por uma pitada de surrealismo, de sua arte.
Aviso aos navegantes: vale a pena conferir a exposição O Mundo Mágico de Marc Chagall – Gravuras, uma versão reduzida da mostra que esteve em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro no ano passado. Na exposição, que acontece no Museu de Arte de São Paulo, MASP, até o dia 28 de março, de terça a domingo, das 11h às 18h, o público paulistano e da região de São Paulo poderá conferir 178 gravuras feitas pelo artista russo e mergulhar maravilhosamente no seu universo doce e sutil.

Abaixo, vídeo com trabalhos de Chagall, alguns deles estarão expostos no MASP:

"O segredo dos teus olhos"


Eça de Queirós


E que falem as sutis e emocionadas descrições, o olhar lançado sobre a alma, a alma lançada sob os olhares atentos de quem deita o pensamento sob algumas páginas minuciosamente escritas. E que falem as discussões políticas, as ambições civilizatórias, os sonhos sublimes, a filosofia purificadora, a busca por menos oratória e mais ideia, a vontade de ser livre voando nas asas do conhecimento. E que falem os versos da natureza, a boca do sagrado, os lírios dos passos, a imagem da perfeição gratuita e delicadamente graciosa. E que fale o amor intenso, inexplicável, a dor urgente, o horror irreparável, o êxtase dos corações verdadeiramente apaixonados. E que fale o destino, sua maliciosa rede a beijar os corpos que nela irremediavelmente se enroscam. E que por fim a prosa se faça muda, a poesia absurda, o olhar esplêndido...

Eça de Queirós, escritor português, autor de romances como O crime do Padre Amaro, A Relíquia, O Primo Basílio, dentre outros, em um de seus mais conhecidos romances, Os Maias (1888), constrói uma obra diante da qual todas as outras palavras ficam estupidamente pequenas, tal a grandiosidade e lapidação esmerada de cada frase que ele tatua sobre o papel. Mestre e símbolo do realismo português, o escritor leva tal literatura realista às últimas e extraordinárias consequências quando faz o leitor divagar e desmaiar docemente diante de cenas inspiradas na realidade, tradutoras esmeradas da realidade, mas que a transcendem à medida que se fazem emprestadas do divino, do ideal, do destino. Se o realismo pretende descrever a realidade tal como ela é, fazendo-o de maneira sistemática e absorvente, Eça de Queirós não só descreve essa realidade, mas também vai além dela, inspirando-a com a sua forma de olhar e com a sua forma de contar. As descrições, como não poderiam deixar de sê-lo quando se fala em um escritor realista, são constantes no romance, perpassando-o da primeira à última página e desenhadas, quase esculpidas com um mármore muito fino, bastante delicado e majestosamente límpido. A linguagem por ele utilizada se faz absolutamente diáfana, lírica, intensa, marcando um estilo meticuloso e denso, em que a prosa bebe da poesia e a poesia ilumina a prosa. É literariamente lindo!

Complemento o estilo denso, descritivo e a linguagem eternamente a desabrochar, o enredo e os fatos que compõem a narrativa de Os Maias são por si só um atrativo incrível. A história gira em torno de uma tradicional e rica família portuguesa, cujos personagens principais são o avô, Afonso da Maia, rígido quanto aos princípios, de uma ternura quase pueril e, como é no livro às vezes descrito, semelhante a um mármore branco e fino. O filho de Afonso, Pedro da Maia, homem ardente e apaixonado, cheio de impulsos generosos que se mata depois de ser abandonado pela esposa, Maria. Do casamento de Pedro com Maria nascem dois filhos, Carlos e Maria Eduarda, separados ainda nos primeiros anos da infância quando Maria, ao fugir, leva consigo a filha ainda pequena. Dada como morta, Maria Eduarda é, com o passar dos anos, esquecida, até que o destino a coloca, doce e suavemente, cravada no olhar e no seio do coração apaixonado e sonhador de Carlos. Os dois se apaixonam e se entregam a uma paixão incontrolável, indomável, maior que a própria alma, destas que não acontecem duas vezes na vida de uma mesma pessoa. Como diz Eça de Queirós, Afonso da Maia se vê assim diante de “um implacável destino que, depois de o ter ferido na idade da força com a desgraça do filho, o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto”. Como já dizia Tolstói em Anna Karienina , “As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Esta, que é uma das aberturas literárias mais famosas da literatura russa, se aplica perfeitamente à história da família Maia. Estes são felizes e nisto se parecem com tantas outras famílias ricas e tradicionais, mas são surpreendidos pela malícia reta e grave do destino, por seu incontornável sortilégio, por aquilo diante do que os homens tornam-se de repente pálidos e mudos. Horrorizados, violentados, roubados de si mesmos, suspensos em relação à própria alma. Nos sofrimentos, a família Maia tem também a sua beleza, a sua essência, a sua arte, assim como tantas outras famílias que sofrem cada uma à sua maneira, respondendo ao seu destino. De todo, as desgraças não descem em todos os lugares, quem saberá as regras e normas do destino? Talvez elas escolham os mais fortes, os mais essencialmente originais ou talvez sejam apenas capricho aleatório, ou castigo planejado, talvez...

Na literatura são muitos os “talvez”, mas na boa literatura são muitas as certezas que produzem glórias. Em Os Maias , o que seria uma simples e novelística historieta de amor entre um homem e uma mulher que, mordidos pelo destino, se descobrem irmãos e em razão da evidência incestuosa se separam feridos e desintegrados de corpo e de alma, vai muito além disso, já que a belíssima e trágica história de amor entre Carlos e Maria Eduarda é entremeada por elevadíssimas discussões políticas, filosóficas, econômicas, sociais e artísticas. Eça de Queirós faz uma análise em seu romance da decadente burguesia portuguesa, a expõe no que esta tem de mais mesquinho e medíocre e, ao mesmo tempo, levanta discussões sobre a arte, valoriza a poesia, a beleza, as ideias, as lutas maiores e justificadas por uma sociedade menos superficial e vazia e mais poetizada, bela, inteligente e, se ainda não for muito, regada por uma fina réstia de ternura e generoso amor. Eça de Queirós moldura um belo quadro no qual se vislumbra perfeitamente um amor sincero, indomável, enlouquecedor e, essencialmente, fraternal, com a secura que habita o seio da sociedade e com o clamor urgente e inadiável por “civilização”, resvalando naquele que seria o sentido da existência humana.


Carlos e Maria Eduarda, interpretados por Ana Paula Arózio e Fábio Assunção na minissérie Os Maias, da Rede Globo


Pérola do realismo, uma das chaves-interpretativas para esse romance pode ser a social e também a psicológica, mas as possibilidades de entendê-lo são infinitas, embora os elementos principais de Os Maias sejam a personalidade humana - seus amores, dores, frustrações, angústias e sua incrível limitação diante do destino – e o complexo tecido social no qual ela encontra-se encravada.
Unindo linguagem impecável, narrativa inteligente e original, estilo denso, personagens sólidos e bem construídos, Eça de Queiróz ata em Os Maias as duas pontas do ser humano e do meio no qual ele vive, aquilo que há de mais belo e sublime e aquilo que há de mais indisfarçavelmente horrendo e rastejante. Uma obra rara, um presente gratuito entregue aos olhos, instantes de loucura, de devaneio, de saudade...

De uma coisa não resta dúvida, se Eça de Queirós diz ter decidido não fazer um romance, mas fazer um romance em que pusesse tudo o que tem, a nós, anestesiados por suas letras, não resta outra escolha senão colocarmos tudo o que temos na leitura deste livro, o que de fato fazemos, mesmo sem o perceber, inconscientemente. Quando nos damos conta já estamos todos dentro do livro, habitando as janelas tristes e tímidas do Ramalhete, chorando melancolicamente lágrimas soltas e nostálgicas ao lado de Carlos e Maria Eduarda, ouvindo as poesias declamadas nos saraus literários nas quais se sonha e se constrói em versos uma democracia branca, regada por paz e arte. Em outras palavras, não há como entender um realismo tão abismático se não nos rendermos ao interior do livro, colocando tudo que temos em suas entrelinhas disfarçadas, tudo aquilo que temos de mais enfadonho e covarde e também tudo aquilo que ainda temos de mais apaixonadamente sincero e belo!


À porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele, pela derradeira vez na vida, viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à portinhola daquele vagão que para sempre a levava.

Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e descompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.

- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida: a paixão.

(trechos extraídos do romance Os Maias, de Eça de Queirós)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Pés de Pipa

Era um daqueles dias cinzentos, amenos, quase reticentes, perdido entre nuvens, vago, sofregamente ausente. Dia nublado, distante, sacudido por ventos e estupidamente seco. Não havia chance de chuva, as nuvens se encontravam no alto, mas não verteriam água, queriam um tempo maior de exposição, queriam ser vistas, sentidas por qualquer um que sob elas passasse.
Coberto por sombras o menino acordou, o quarto estava escuro, ele pressentiu, com um leve tom de melancolia recortada por uma sutil frustração, que aquele seria um dia de chuva, ou seja, nada de pipas. Nada de cores dançando pelos ares, nada de movimentos leves e encantados, nada de doce ou de suave, os pássaros ficariam guardados no recanto do quarto. Mesmo assim, levantou-se. Estava bastante desanimado, quase se arrastando abriu a janela, e, ao levantar os olhos para o céu, seu olhar esqueceu-se por um intervalo de tempo entre as nuvens, deixou-se penetrar pela névoa, turvou-se pelo vento, foi roubado pelo destino. Em instantes, foi tomado por um brilho misterioso, fez-se belo e completo, sim, os pássaros voariam! Não havia sinal de chuva, o vento era farto, tudo era vento, as cores bailariam pelo palco suspenso, assim como o prazer e a alegria primitiva e selvagem pelos seus olhos bailavam agora graciosamente.
Foi assim que a pipa do menino voou pelos ares, com a leveza de uma rara lembrança que pousa na sombra e descansa delicadamente sobre a relva. Outras apareciam em número cada vez maior fazendo companhia à primeira. O céu virara uma festa. Até que, em uma confusão de vertigens e movimentos, uma das pipas desmaiou docemente sendo tocada e resvalada pelo vento. O menino viu perder-se de suas mãos o fio branco que ele até então quase que inconscientemente segurava. O fio foi se esvaindo, tal qual um pedaço de gelo quando o seguramos por um tempo em nossas mãos sob uma réstia de água líquida e, quando percebemos, vemos que a matéria sólida vai se diluindo, fundindo-se com a líquida, tornando-se ela também líquida, tornando-se de repente nada. O menino quando deu por si não segurava mais nada. Espertos, alimentados por uma sobra de esperança e incendiados por um triste sentimento de possível perda, todos os outros meninos voltaram-se ligeiros e curiosos para a pipa que caía por entre o tecido dos ares e, ainda tiveram tempo de ver que ela caía entre os muros de uma casa do bairro. Justo aquela casa! Poderia ser qualquer outra menos aquela, menos aquele cheiro de incenso a pairar através das paredes, menos aquelas árvores escuras e opulentas, menos aquele silêncio entrecortado por suspiros infinitos e sobrenaturais, aquela tristeza toda vestida de negro, aquela saudade toda recortada pelo medo.
Pousou os dedos trêmulos sobre a campainha fria.
Da mulher a primeira coisa que vira foram os pés. E que pés horrorosos, envelhecidos, com veias esverdeadas saltadas, unhas pintadas de vermelho e compridas, de aparência grossa e firme. Dedos compridos, separados, sola reta e média. Duro. Depois, o seu olhar infantil deitou-se sobre o corpo, bastante magro, com formas desiguais, ombros caídos, cansados, parecia ter uma armadura nas costas e esconder nela o mundo, os medos, as amarguras, as lágrimas retidas, as palavras sufocadas. Os ombros insinuavam ser sua proteção e sua fuga diária. Já os olhos eram ausentes, distantes, lançavam olhares longos, tão longos como uma vasta planície de um campo verde molhado pelos raios do sol e decorado em certos pontos por algumas flores silvestres. Também eram muito tristes, a tristeza daqueles olhos perturbou o menino, não só pela melancolia e impressão que nos causa as profundas e misteriosas tristezas, mas também porque essa tristeza não vivia naqueles olhos solitária, ela era recortada por uma fina sombra de maldade, sutil e perversa, fria e desconsoladamente perdida.
-O que foi garoto, perdeste algo? - disse ela mostrando uma voz rouca e resignada, quase que indiferente à vida e às outras coisas deste mundo.
-Sim, minha pipa! – e essa palavras saíram trêmulas e engasgadas, sofridas e sufocadas, como se o garoto tivesse engolido uma azeitona e esta estivesse entalada na sua garganta, impedindo que a coragem se impusesse altiva e imponente ao medo – Poderia ir apanhá-la, corro rapidinho aí no quintal e saio com ela debaixo do braço mais rapidinho do que entrei? - perguntou ansioso e nervoso por fim.
-Tem medo de mim garoto? Não há problema em entrar e pegar a pipa, fique à vontade. Só não olhe através da única porta pela qual vai passar, a porta por onde saí e vim ter com você. Se olhar, nunca mais terá sua pipa de volta! – disse ela em um tom risonho e quase cínico, que fez com que o medo do menino fosse, por um curto espaço de tempo, substituído por um sentimento de irritação ingênua e estridente.



A mulher abriu o portão de ferro que separava a rua da casa, cortou o silêncio um ruído fino e quase assustador proveniente do atrito do ferro velho que reavivou na mente do menino os seus mais profundos e esquecidos pesadelos. Em um balançar de mãos, ela mostrou o caminho e não esperou o menino passar. Andou antes dele e entrou na porta que o menino não podia olhar. Fez um movimento lento e pensativo para fechá-la, mas quando a porta já estava quase encostada, ela recuou, deixou um fino espaço por onde entrava o vento de fora e saía o ar esfumaçado e úmido de dentro.
O menino sentia seus passos ecoando no silêncio fúnebre da casa tomada pelo verde de milhares de plantas que nela habitavam, e à medida que se aproximava da porta proibida dentro dele se misturavam sentimentos regados por uma sutil melancolia, entremeada por uma breve e séria ansiosidade em saber o que havia por detrás daquela névoa espessa a sair vagarosa e misteriosa de dentro da porta entreaberta.
Foi quando o desejo foi maior que o pudor e o próprio medo a devorar os escrúpulos da infância. O menino pousou os olhos delicadamente na fresta deixada pela senhora e seus olhos lançaram um olhar inocente e longo, demasiadamente longo, vidrado e temperado com uma pitada de curiosidade juvenil e ingênua. Em instantes era como se aquele olhar fosse como um desmaio doce, no qual os sons são todos transformados em confusos e perdidos lamentos, o olhar era um próprio lamento a mergulhar deliciosamente e perigosamente nas águas turvas de um oceano infinito e desconhecido.
Havia três mulheres, a senhora que abrira o portão velho de ferro, e outras duas, igualmente velhas e provocantes em seu mistério e leve tom de ironia diante do mundo. Só uma das mulheres falava, as outras duas apenas escutavam lançando olhares longos e pensativos que, às vezes, esqueciam-se no tapete colorido que forrava a sala para serem logo e cuidadosamente pousados nos lábios trêmulos que falavam:
-Da minha vida pouco ou nada entendi, me sinto hoje tão vazia, tão triste, às vezes, ao olhar no espelho me sinto mais madura do que sou e até mais bela, como se a tristeza que me envolve me fizesse de repente mais bela, portadora daquela beleza séria, distante, fria, inalcançável, da qual muitos falam, alimentada por uma seriedade e gravidade quase diáfanas. Lembro de tantas coisas que tive, e, ao mesmo tempo, creio hoje que nunca tive nada. Perdi, miseravelmente, quase tudo aquilo que acreditei ter um dia. E como eu comprava! Mandei vir da Europa todos os quadros que imaginam, obras de arte valiosíssimas, tipos franceses de Debret e Cézanne, espanhóis de Velázquez e Picasso, os sonhos e a realidade única de Van Gogh, a inteligência e perfeição estética de Da Vinci, as delicadas e sublimes esculturas de Michelangelo, perfeitas no seu modelo renascentista, sagradas e profanas, deliciosamente encantadoras, trouxe peças de museus, acumulei em minha biblioteca milhares e milhares de livros que somem pela parede e vivem através dela sob camadas densas de poeira, títulos dos grandes russos, dentre eles, Dostoiévski, Tolstói, Nabokóv, Tchekhov, e o inspirador de quase todos Nikolai Gógol romances franceses belos e trágicos como os de Flaubert, Stendhal, Guy de Maupassant, Balzac, Proust, irlandeses, como as essências esplêndidas de Bernard Shaw e as páginas intermináveis de James Joyce, pérolas inglesas de Oscar Wilde, que devassaram-me a alma e expuseram vis e cruéis meus vícios e pecados mais sórdidos, a palavra doce e pungente de Virginia Woolf, clássicos alemães como Goethe que expuseram-me os sofrimentos do jovem Werther que nunca foram maiores que os meus, nem sequer serviram para me consolar dos meus, nunca desejei a morte, pareço covarde, sequer tenho coragem de enfrentá-la, de em mim provocá-la, sou, entre os seres humanos, a espécie mais vil e mais cheia de saudade do que nunca teve, enganando as horas, os dias, os anos, sufocada por tudo que tive. E banhei-me de filosofias, todas as possíveis e imagináveis, de Sartre, Nietzsche, Spinoza, até símbolos do pensamento moderno como Voltaire e Rousseau. Me fizeram companhia por longas horas as belas palavras de um Saramago, o estilo de Onetti, a poesia de Borges e T.S. Eliot, a magia de Gabriel García Márquez, a politização e denúncia social de Galeano, ah! E as palavras de minha terra, os versos de Drummond, Vinicius, Cecília, as histórias de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, a intensidade sofredora de Clarice... Minha vida foi nada mais que uma sequência sutil e irremediável de perdas que eu tentava esconder de mim mesma e não me faltavam os livros, quadros e peças de decoração. Hoje, estou encravada dentro de um palácio onde não cabe tudo aquilo que comprei, pedaços do mundo inteiro, peças soltas e cinzentas que não se completam, estão longe de montar o quebra-cabeça final, falta a peça derradeira, a palavra definitiva, o amor que nunca tive para preencher o vazio que hoje me corta e alucina. O preço de tudo que comprei, de tudo que construí, talvez nenhum homem deste mundo jamais saberá, só eu sei o preço de minha construção em ruínas, de meu mar de objetos invisíveis e que ardem em minha alma feito chama prolongada. Meu sofrimento é também estéril, estendido, entrecortado por sorrisos amargos que despejo preguiçosamente e forçosamente aos meus milhares de empregados, a servir bandejas de tédio e solidão. Eles colhem mansos e lotados de pena, meu olhar rompido, trincado e sujo. Cansado e, como alguns dizem, de uma ternura branca e ressabiada.



-No, entanto, não há sequer um só dia, desta minha miserável existência, que não me recorde, doce e suavemente de um sonho lindo. Ah! Como aquele lugar era lindo! Como ele era lindo! Havia uma grande casa de fazenda, de janelas azuis e paredes amarelas, a casa parecia antiga, do tempo da escravidão, das grandes fazendas produtoras de açúcar, de um outro tempo o qual a poeria da vida já foi deixando pra trás. O lugar tinha cheiro de terra, sopro de ar, e, bem no meio da grande casa, se andava por uma passarela longa, que, em intervalos regulares, era interrompida por algum lugar que do sonho eu não me recordo muito bem, eis uma área confusa, enevoada pelas zonas obscuras da lembrança de meu inconsciente insensato. Creio que eram regiões onde as pessoas poderiam sentar-se e conversar, olhar o céu, as cores do universo, a quietude mansa e imponente das montanhas. Mas, o mais lindo de tudo, era que, no fim desta longa passarela, que no meu sonho era percorrida rapidamente, sentava-se em um banco de madeira e do alto contemplava-se lá em baixo um belo e extenso mar, regado por um intenso brilho de sol, vidrado pela luminosidade reticente do cair da tarde, mudo e estático, tão expressivo, de águas tão abundantes, diáfanas e silenciosas. Confuso, um mar ao lado de uma casa de fazenda, as águas derradeiras encravadas no seio de uma montanha, deitadas graciosamente no colo macio e aconchegante dos campos. Mas, no meu sonho era exatamente assim. E me recordo de algumas crianças, belas e saltitantes, livres mergulhando toda a graça pueril que lhes é própria nas águas líricas daquele mar. E, no sonho, eu não estava sozinha, estava comigo um homem que eu vira, de fato, uma única vez, de relance. Atraiu-me seu olhar longo e terrivelmente belo, regado por um tom esverdeado, e seu rosto tinha feições que me pareciam tão jovens e, ao mesmo tempo, tão singelas que tocaram as cordas de algum canto de minha alma que ainda não tivera sido tocado. No mesmo instante, pousei sobre ele um olhar prolongado, cheio de um êxtase incontido e arrepiado a verter um desejo que parecia ter sob as camadas nebulosas de minha alma se acumulado durante séculos. Foi apenas um instante, minutos, que eu nunca mais me esqueci. Foi um homem que eu nunca tive, sequer dele sei o nome ou o som da voz, mas mesmo assim, mesmo nunca o tendo de fato, ele foi a única coisa que eu realmente tive na vida, aquele olhar foi e continua sendo a minha lembrança, a fuga de minha alma, o ecoar do meu silêncio, um sentido sublime, intocável para meu deserto cotidiano.
Nunca soube explicar o sentimento que tive diante daquele homem. Em momentos de aflição e desespero incontrolável nos quais os olhos refugiam-se sob camadas infinitas de lágrimas, tais como uma névoa espessa e densa, ao mesmo tempo, lenta, arrebato-me e me descontrolo diante da indisfarçável transparência de meus sentimentos. Aperto com força meus olhos, esfrego o rosto com as minhas mãos trêmulas, quero fugir desse ar que me sufoca e me liberta, que faz-me bela e também mesquinha, invejosa. Quero ter de volta ou poder ter aquela paz que há tempos já não sei mais qual é, uma paz que hoje apenas me espreita, mas segue pairando longe de mim, escondida, sombreada pelo meu medo e pelo meu amor. Amor incontrolável, indomável, distante de todas as outras leis que se possa ditar sobre os homens e sobre a terra. Amor do qual às vezes chego a ter medo, será pecado amar tanto assim, qual será a peça maior do destino pregada sobre meu desmaiado coração, completamente esquecido e desejoso de teus olhos, revoltado por uma saudade incontrolável, angustiado por um tempo longo, tão longo...
Vício de minha alma, canto do meu mais profundo ser, sonho do meu passado, brilho de meu futuro, sentido de meus sonhos, condutor de meus passos, te amo, inconscientemente, talvez assim não pudesse ser, as coisas fora de mim me culpam, me julgam, eu mesma me espreito na solidão de meus loucos devaneios, eu mesma me condeno até que seus braços me absolvam e neles eu pouse leve e docemente, tal como folha a cair sobre os campos verdes extensos, embalada pelas notas tocadas pelo vento, parecendo trocar com a paz que procuro um terno e doce abraço. Esquecida em teu olhar, mergulhada dentro da sua alma, contemplo a mim mesma, um tanto esfumaçada, um tanto lenta, longa, intensa, assim como os beijos que trocamos, infinitos, pueris, sinceros, ardentes, regados por um fina réstia de ternura a selar com uma perfeição rara a afinidade de dois espíritos eternos a se reencontrarem no oceano sublime dos tempos. De resto apenas me faço muda, entrego-me à vida como vencida, ficamos tais como dois seres suspensos, pairando acima do próprio céu, recolhidos dos olhares do mundo, dos sentimentos alheios, revestidos de pétalas de rosa e poesia, onde encontro enfim a minha paz.
E de repente, esta lembrança de outrora se junta, sutilmente e como que tomada por uma graciosidade gratuita, a esse lindo sonho que agora me parece como uma despedida desse mundo. Uma última imagem de minha vida solitária e ausente, uma imagem linda, na qual ao recanto e paz infinita de uma casa de campo, se unem a grandeza e a simplicidade do mar. Um mar que entra deliciosamente a desafiar as montanhas, montanhas que cedem, gentilmente, passagem para as águas derradeiras e infinitas nas quais elas mergulham com uma sensualidade primitiva e rara. Um lugar que no meu sonho reuniu todas as possibilidade de perfeição, no qual eu prometia a ele, de costas para a casa de janeles azuis e paredes amarelas e de frente para a plenitude brilhante do mar, um amor mais bonito...
Uma lembrança sublime, intacta, suspensa, a sustentar minha vida, uma promessa, um lugar, um pano branco estendido em pleno ar.
Um silêncio tomou conta daquele ar umedecido de lágrimas, cortado por uma grave densidade, esfumaçado, cheirando a saudade, estilhaçado por memórias, dores e perdas, pela vida vivida e melancolicamente lamentada.
O menino de repente se viu ali, envolto por aquela fumaça, confuso e amedrontado por aquelas palavras tão doloridas, desperto de uma espécie de anestesiamento que envolvera seu corpo durante o momento em que saboreara e mordera o fruto proibido. Seus olhos e seu medo o lembraram de que durante aquele espaço de tempo no qual uma voz doce e pálida parecia implorar sua atenção, ele violara a palavra daquela primeira senhora que para ele abrira a velha grade de ferro, mandando que pela primeira porta, ele não olhasse, apenas pegasse a pipa e fosse embora.
Saiu correndo, dominado por um sentimento de medo e náusea, ao abrir o portão não conseguiu conter o mesmo barulho feito pelas dobradiças da grade já bastante velha e isso lhe deu de repente a sensação de que tudo ali era tremendamente velho. A casa da qual ele sempre tivera medo lhe pareceu assustadoramente envelhecida, recortada e preenchida por pessoas também envelhecidas a tecer considerações sobre a vida, a render-se diante dos fatos e da malícia e tortuosidade de um destino ao qual todos nós teremos que responder um dia.
Enquanto andava, lhe voltavam feito sombras perfuradas as palavras que saíram daquele lábios que agora ele recordava enrugados e vulgarmente vermelhos. Quando já havia andando um bom pedaço, o menino lembrou-se da pipa. Caída naquele chão enfeitiçado, solitária, colorida, com seu ar espontâneo, livre e jovial, em meio a toda aquela casa ausente de cores, antiga cinzenta, amargamente triste. Ao sair da casa, com a alma agitada e ligeiramente amadurecida, ele nem sequer se lembrara da pipa, como se tivesse sido tocado por um sortilégio que advém dos detalhes do passado, da própria vida desintegrada diante de seus olhos atentos, ainda ingênuos, pueris e fascinados.
Em meio a confusões e imagens disformes e quentes, o menino fez um movimento sutil com o corpo para voltar, mas, lembrou-se daqueles pés, e, com um leve cair de braços combinado a um suspiro de forçada aceitação, continuou a caminhar.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

"Catadentro"



Rua lotada
cores misturadas.
Andei aflita,
com pressa,
quase perdida,
sutilmente
desencontrada.
Não sei o quê,
mas algo me irrita.

Você parecia diferente
com palavras curtas,
fez-se breve e reticente.
Eu me sentia confusa
com olhares esquecidos,
fiz-me tua de repente.


Cansei do tempo,
ja nem falo de tédio.
Sinto algo além de dentro,
dança e gira feito catavento.

M.V

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Inventada fantasia



Meu coração fica tão apertado,
espremido
ausente
diante de um passado
onde os momentos,
sou eu que invento.



Te invento em minha pele

te rabisco sobre meus dramas
te disfarço nos meus mistérios
te seduzo no meu diagrama
te deito pelo meu corpo
te guardo no meu estojo
te envolvo na minha literatura
te prometo a minha vida
te mesclo em cores e brancura
te sonho na pele da saudade
te bebo do suor da minha dor
te afasto no brotar da minha dúvida
te faço improvável e imaturo
rompendo a forma
te inauguro

M.V

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Às Mulheres


Les demoiselles d’Avignon, 1907
Pablo Picasso (Espanha 1881-1973)
Óleo sobre tela
Museu de Arte Moderna de Nova York



Toda mulher já ficou sozinha
Na noite de sábado
Esperando o namorado
Que não vinha

Toda mulher já quis morrer
Afundada na cama
Desfeita em lágrimas
Pelo homem que ama

Toda mulher já se fez de louca
Bagunçou a casa
Revirou a cama
Emagreceu quando se viu na balança

Toda mulher já jurou nunca mais
Prometeu a si mesmo
Aos santos e orixás
E acabou voltando atrás

Toda mulher já teve um homem que se foi
E deixou seu coração partido
Sua saudade mordida
Seu mundo sem sentido

Toda mulher de verdade
Já foi embora
Deixou o homem sozinho
Desligou o telefone
E chorou escondida atrás da porta

Toda mulher já pensou que era o fim do mundo
quando perdeu um amor profundo
Até que outro pulou o seu muro
ficou um tempo do lado de dentro
depois foi embora quando já era tempo

Toda mulher já pensou em desistir
mas depois se convenceu de que as coisas são assim
vêm e vão em um eterno pousar sem fim
logo inventam outra vida
e voltam a sonhar por fim




Prefiro ser mulher

Que chora, grita, enlouquece
Prefiro ser mulher
Que pousa dramática, voluntariosa, escandalosa
Prefiro ser mulher
Que irrompe sincera, brava, feito prece
Prefiro ser mulher
Que sonha, forte, suave, misteriosa
Prefiro ser mulher
Que em delicados movimentos canta, escreve, se tece
Prefiro ser mulher
Que belisca a vida rebelde, inteligente, fantasiosa
Porque da mornidão não sai a mulher sem idade
Da forma da intensidade é que sai
A mulher de verdade



Irritada
Profundamente entediada
Angustiada
Indefinidamente ansiosa
Cansada
Insuportavelmente sufocada
Saturada
Amargamente fora de mim
Descontrolada
Levianamente mesquinha
Incerta
Esquecida em uma doce palavra bela
Imóvel
Umedecida e disforme em cores sem pressa
Imortal
Traduzida na eternidade da alma pintada em tela


M.V

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Fragmento

- Sinto-me como se a alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso de um banho por dentro!

Os Maias, Eça de Queirós

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Três luzes amarelas


Só eu sei como as esperei
à noite girando acordada
de dia contando o tempo congelado
e como elas vieram
doces
macias
e suaves
tal qual um lírio poético
a derramar a certeza de ser amado por onde passa
e como elas se fizeram gratuitas e raras
tal qual um beijo
a bailar no tecido de uma alma abandonada


três luzes amarelas
o tempo parou feito estátua
estou eu aqui parada
meio adormecida
meio acordada
três sombras endurecidas
uma mulher solitária
estou eu aqui andando
meio despedaçada
meio envergonhada
a visão some quando dobro a esquina apressada


esperando me entregaram
o tédio me espreita
o rumor distante da rua
aos poucos se deita
escrevendo me esqueceram
ora me chamam
ora me deixam

M.V

Fragmento

E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro de paixão, mais forte que as leis humanas, enrolava violentamente, levava juntos o seu destino e o dela; depois, que divina existência, escondida num ninho de flores e de sol, longe, nalgum canto da Itália... E toda sorte de ideias de amor, de devoção absoluta, de sacrifício, invadiam-no deliciosamente, enquanto os seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solenidade daquele belo fim de tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa cor de ouro pálido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia, como na imobilidade de um êxtase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janela acesa em brasa, os cismos redondos das árvores apinhadas, descendo a serra numa espessa debandada para o vale, tudo parecera ficar de repente parado num recolhimento melancólico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar...

Os Maias, Eça de Queirós

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Melancolia e Beleza

Tão melancólica
Como a fina chuva
Tão apagada
Como uma noite sem lua
Tão triste
Como um pássaro sozinho
Tão vazia
Como uma casa sem som
Tão ausente
Como um silêncio de amigo
Tão louca
Como uma tempestade sem rumo
Tão longa
Como um deserto sem fim
Tão reticente
Como um nada dentro do tudo
Tão amargurada
Como uma flor sem perfume
Tão ensurdecedora
Como um rufo de tambor
Tão pausada
Como uma respiração desigual e forçada
Tão lamuriosa
Como uma lama grudada
Tão sensível
Como um cristal embaçado
Tão esquecida
Como uma roupa pendurada
Tão desimportante
Como uma morte esperada
Tão julgada
Como um crime sem justa causa
Tão iludida
Como a dor de uma alma
Tão impaciente
Como uma cachoeira que arrebenta a rocha
Tão incansável
Como a onda a deitar na praia
Tão insuficiente
Como uma poesia sem fim
Tão cheia de esperança
Como alguém que vive
Hoje tão triste
Amanhã tão feliz
Mais triste é a tristeza
Pendurada no fio da alegria
Afinada nas cordas da beleza

M.V


Sucesso do carnaval baiano na voz delicada e gostosa de Caetano Veloso, em um ritmo mais doce, com um sutil tom melancólico, nos acordes simples e inconfundíveis de um violão. A música que no carnanal é tão vibrante e faz dançar, aqui, torna-se reflexiva, ardente no coração, resvala na saudade e se faz quase muda.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Embaixo de um pé de laranja

Foto de Fátima Chavarria


Eu queria apenas ficar sozinha. Chovia naquele dia, uma chuva fina, reticente, contínua, esfumaçada, quase como uma dor que dançava dentro de mim e que eu não sabia muito bem qual era. Sob a chuva eu saí correndo, sem rumo, sem descanso, meu peito arfava esburacado, a respiração era entrecortada, desigual, a água derramada pelo céu encharcava meu corpo, mas conservava seca a minha alma. Seca e pálida, surda e muda, sem nenhum som aparente, ecoando vozes distantes, embaralhadas. Enegrecida eu estava de amor, cortada e regada por um fio de desespero tecido pelas teias invisíveis da solidão. O tempo chuvoso, o céu escuro, nublado, as nuvens acumuladas umas sobre as outras, a atmosfera triste, melancólica e ligeiramente taciturna no entanto, aliviava um pouco a minha tristeza. Era como se o universo tivesse naquele momento um pouco de piedade das minhas aflições e angústias e, tal como meu corpo, se fizesse ele também vertedor de lágrimas, soluços e alucinações.
Aquele dia tinha sido horrível. As imagens voltavam vagamente, envoltas por uma névoa espessa na qual eu não conseguia penetrar, as lembranças tinham cores cinzas, com pequenas zonas verdes a saltar diante de minha atenta inconsciência da qual nada fugia, tudo ela controlava, até mesmo aquelas emoções das quais eu nem havia me dado conta ainda, tal era a confusão do meu estado de ser.
Foi quando deitei-me embaixo de um pequeno e delicado pé de laranja, um dos muitos que ficavam atrás da casa do sítio. Costumava passar minhas férias no sítio de meus pais, que antes fora de meus avós. Eram dias a desfilar quase arrastados, nos quais agradava-me demasiado me fartar do verde da terra e das nuances cromáticas do céu que, ao amanhecer, era tomado por um azul quase infinito e, ao entardecer, tingia-se de um vermelho e dourado concentrados, maravilhosamente e um tanto preguiçosamente, em uma fina faixa de luz destoante do restante do véu noturno, já tomado de um azul que ganhava a profundidade escura de noites sem estrelas, típicas por estes lados de cá.
A plantação de laranja, morada do pé que me guardava, era extensa, não tão grande que se pudesse perder de vista, mas também não tão pequena a ponto de ao olhar o primeiro pé já avistar o último. Além dela, o sítio era muito verde, quase todo plano, com algumas montanhas e elevações leves que emolduravam a paisagem lindamente. Havia uma casa principal, onde moramos em outro tempo, meus pais e eu, e que agora nos recebe em períodos de tempo reservados às lembranças gratuitas e invasoras e, por vezes, a um profundo tédio engasgado na alma, quase a vomitar-se de aflição, misturado a uma angústia e ansiosidade latentes e transparentes, diáfanas e claras até para aqueles que fingem não ver. Um pouco depois do laranjal havia um lago bastante calmo e misterioso, habitado por pequenos peixes e, talvez, outros seres das águas que nunca me preocupei de fato em ver se ali deitavam morada. Gostava de nadar no lago de vez em quando, banhar-me em suas águas escuras, um pouco barrentas até, mas que faziam de mim tão leve e suave feito pluma a dançar pelo céu em dias de ventos doces e refrescantes.
Pousada nas sombras invisíveis de um dia chuvoso sob as folhas verdes e escuras do pé de laranja afundei-me em lembranças deste e de outros tempos já idos e vividos. Lá embaixo a chuva não descia tão forte, era sabiamente desviada pelos galhos da laranjeira e me chegava ainda mais fina, quase como um beijo doce e disfarçado, desses que se dá quando não se quer revelá-lo ou quando não quer uma pessoa revelar-se, tampouco o seu amor, o beijo apenas salta como coisa incontrolável e ausente de limites e margens tão ásperas quanto opressoras.
Aquele dia fora de fato terrível, durante a viagem de trem até o sítio você apenas me cutucava e perguntava “O quê tanto olha por esta janela, qual é a graça em ver este mundo passar, com esse verde sempre o mesmo a turvar as percepções e pôr qualquer um louco, e essas casas sozinhas, abandonadas, pobres no meio do nada? Fecha esta cortina que eu quero dormir”. Meio aturdida, confusa, mordendo os lábios e sentindo o cheiro de meu ressentimento eu respondia quase muda, sussurrando “Gosto de olhar”. “Olhar o quê”? , ele dizia visivelmente irritado e sem paciência. “A vida, simplesmente gosto de olhar a vida”. “É uma menina tonta, infantil e sonhadora, agora feche a cortina e deixe-me dormir um pouco, logo chegaremos ao sítio e ainda tenho que ter com os seus pais para enfim formalizarmos este namoro, preciso casar-me o quanto antes, os negócios exigem e você, apesar de nova ainda, dará uma esposa no mínimo apresentável, é só não continuar a olhar pela janela tão longamente como faz. Este seu mistério perturba-me”.
Ai como feriram-me tais palavras, perguntava comigo mesma onde ele esquecera a gentileza do trato, a delicadeza das palavras, a sutileza das formas, a generosidade gratuita da sensibilidade rara, do cuidado doce, da maneira suave. Como este que podia vir a ser meu noivo e depois marido, que outrora já me amara tão lindamente, escondido dos olhares de todos como se no mundo só houvesse nós dois, poderia colocar de lado dessa forma a lembrança pura de tantas noites cheias de lua que já havíamos passado juntos, simplesmente esmagando as lágrimas que dos meus olhos nasciam e que eu prontamente escondia, do amor negando a flor e só fazendo viver espinhos a furarem palavras que despencavam em forma de dor. Quando fechei a cortina por mim já estava tudo acabado, nada mais restava, meu sentimento era grande, mas estava cansado, terrivelmente cansado e eu repetia quase que alucinada, muda e pálida, voltada para dentro de mim mesma “quero ficar sozinha”. Ao descer do trem impedi que ele comigo saltasse, andar ao seu lado eu já não mais queria, sua presença me era insuportável como o calor que naquele dia fazia. Não, definitivamente, não o queria mais, algo acontecera ou ainda acontecia com meus sentimentos, estava cansada, confusa, queria poder olhar pela janela, pousar meus olhos sorrateiramente e deliciosamente sobre a vida, sem ter que fechar a cortina apenas porque outro assim pedia. Depois de muita insistência, mais por orgulho e menos por amor, ele por fim desistiu, pude ouvi-lo gritando, a caminho do trem, quando este já se afastava em direção à próxima estação “ Em breve conseguirei outra, bem melhor que você, mais calma eu diria, menos sonhadora e pensativa, não gosto de mulheres pensativas, de todo não a amo, nem nunca amei, amor é algo fútil que não está nos meus planos”. Estas foram as últimas palavras que ouvi dele naquele dia quente do começo do verão, há exatos dois anos atrás, e que agora voltavam um tanto quanto confusas e esfumaçadas à minha mente, com um leve sabor amargo, difícil de engolir. Depois de dizê-las, ele ainda deixou cair um lenço quando fazia o movimento para subir novamente no trem, não sei explicar por que naquele dia o peguei rápida e nervosamente do chão, com medo de que ele desse pela falta daquele pedaço de pano branco com desenhos bordados em verde escuro ou de que outra pessoa o pegasse ou até pisasse nele, manchando e corrompendo a sua brancura ingênua e delicada. Deste homem, além das lembranças sempre a me abraçar, às vezes com mais força, em outras com mais suavidade, ficou-me apenas o lenço. O trem afastou-se levando dentro dele nos primeiros vagões o meu primeiro amor, só pude segui-lo com os olhos, febril e contínua, até um pouco antes da primeira curva, quando, em um movimento rápido e regado por um leve tom de irritabilidade e sofrimento, as cortinas azuis se fecharam e o trem por fim sumiu ao fazer a curva, deixando um rastro de poeira na terra e uma mancha de saudade no meu coração.
Acordei assustada, como se tivesse dormido durante aquela lembrança, como se ela tivesse me arrastado de volta àquele dia de sol, àquele trem, a escutar aquelas vozes, ver aquelas cores que tingiam meu coração com a graça do primeiro amor. Hoje tudo era diferente, a chuva, o céu cinza, a atmosfera densa e escura, contrastava com aquele dia de sol que pintou a minha primeira separação amorosa na estação do trem. Agora, estou eu sozinha aqui neste sítio distante, embaixo do pé de laranja onde, em uma noite distante e quente de verão, lá se vão mais de dois anos, foi esta noite um pouco antes do dia na estação, eu amara G., assim o chamavam. Era ainda uma menina, tinha meus dezesseis anos. Naquele fim de semana, meus pais estavam na cidade, se quer o conheciam, nunca chegaram a fazê-lo posto que o mandei embora antes disso, mas namoramos um tempo escondidos e como era divertido, como a cor do perigo, o aspecto do proibido, o sabor da fruta mordida era irresistivelmente doce e livre. Rolei com ele grudado sobre meu corpo ainda tão inocente, o desejo bailando sobre nossos lábios, as folhas verde escuras descendo leves e, de vez em quando, pousando sobre a nossa pele e se encharcando com o nosso suor, o dia era quente, as almas também.
Agora estava eu só, embaixo do pé de laranja, nenhuma folha caía, estava frio, não havia vento, tudo era seco.
Tudo aqui é seco me dizia um homem que trabalhava na mesma estação ferroviária onde eu havia me separado de G. Já se fora um ano desde a separação, e eu vinha passar férias de verão novamente no sítio de meus pais. Naquele dia chovia, quase como hoje, eu descia sozinha e de lá pegaria um carro que me traria até o sítio. Mas o carro atrasara por causa da chuva, segundo me disse o guarda da estação, em quem até então eu nunca havia reparado, estava atolado em lama e não havia previsão de quando sairia de tal estado. Foi assim que fiquei um tempo conversando com o guarda de aparência cansada e solitária, que olhava com um tom melancólico, dia e noite, a estação de trem.
Perguntei se ele vivia sozinho ali, se tinha família, como era o trabalho de um guarda de estação. Ele me respondeu calma e longamente. “Há anos trabalho aqui menina, tenho apenas uma esposa que já não amo, estou com ela apenas porque ficar sozinho aqui no meio do nada, onde as pessoas nunca param apenas passam, seria de todo insuportável demais. Vou me aguentando, quase me arrastando, por aqui nunca acontece nada. Entre a passagem de um trem e outro o silêncio é maior que o de um enterro, o demorar do tempo tão longo quanto um deserto a perder de vista. Nunca vejo rostos diferentes do meu, de minha esposa e do de dois rapazes que aqui trabalham, exceto quando passa um trem e eu espicho a cabeça na direção das janelas abertas na esperança de topar com um belo rosto de rapariga, mas logo o rosto se vai e nunca acontece nada. Por aqui, escuta-se até o barulho do brilho da lua a molhar a terra e, depois de um tempo na solidão, começa-se a conversar com a lua, com as árvores, com a própria mão. É difícil estar no lugar onde as coisas são tão efêmeras como um piscar de olhos, a efemeridade enlouquece e, ao mesmo tempo, o arrastar lacrimoso e preguiçoso das horas desintegra. Não creio que nada de pior possa me acontecer, sempre temi menos a morte e mais a solidão, conheci primeiro a segunda, portanto, já não temo mais nada, espero apenas o próximo trem. “És um homem completamente amargurado e melancólico então”? “Não menina, digamos que, no fundo, gosto de sentar aqui e ficar olhando”. “Olhando o quê?”, perguntei surpresa e ligeiramente ansiosa. “A vida”!
Acordei de mais aquela lembrança, a chuva engrossara, o pé de laranja era remexido violentamente, as folhas e galhos se debatiam contra mim e começaram a arranhar todo meu rosto, e era como se arranhassem e perfurassem as minhas próprias lembranças, fazendo com que delas vertesse um sangue vermelho e ainda vivo, fresco, pastoso. Inconscientemente, levei minhas mãos aos bolsos de minha calça, como a procurar algo que pudesse me proteger um pouco da chuva no caminho de volta pra casa. Tirei de um deles, admirada e surpresa, fisgada pelas cordas do destino, o lenço de G. Aquele que ele me dera quase como prêmio de consolação, sem o saber, há dois anos, em um verão na mesma estação na qual há um ano eu vira a mim mesma em um original e solitário guarda de estação ferroviária.
Não quis cobrir-me com ele, talvez pelo desejo de que nenhuma lembrança de G. se colocasse entre mim e os pingos agora grossos da chuva, assim como nunca quis que uma cortina se pusesse entre meus olhos e a cena do mundo. Saí correndo pela chuva, a viver, completa e menos angustiada no meu estado de existir enquanto coisa ou ser humano, menina ou quase mulher, sabendo que eu não havia conseguido ficar sozinha. Aquele já não era mais um dia terrível.
O lenço branco ficou sob o pé de laranja, já sobre ele várias folhas haviam caído, elas eram da mesma cor que os bordados verde escuros desenhados sobre o lenço branco, mas já não eram as mesmas que outrora se banharam no suor diáfano de nossa juventude e do meu necessário primeiro amor.