sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Pés de Pipa

Era um daqueles dias cinzentos, amenos, quase reticentes, perdido entre nuvens, vago, sofregamente ausente. Dia nublado, distante, sacudido por ventos e estupidamente seco. Não havia chance de chuva, as nuvens se encontravam no alto, mas não verteriam água, queriam um tempo maior de exposição, queriam ser vistas, sentidas por qualquer um que sob elas passasse.
Coberto por sombras o menino acordou, o quarto estava escuro, ele pressentiu, com um leve tom de melancolia recortada por uma sutil frustração, que aquele seria um dia de chuva, ou seja, nada de pipas. Nada de cores dançando pelos ares, nada de movimentos leves e encantados, nada de doce ou de suave, os pássaros ficariam guardados no recanto do quarto. Mesmo assim, levantou-se. Estava bastante desanimado, quase se arrastando abriu a janela, e, ao levantar os olhos para o céu, seu olhar esqueceu-se por um intervalo de tempo entre as nuvens, deixou-se penetrar pela névoa, turvou-se pelo vento, foi roubado pelo destino. Em instantes, foi tomado por um brilho misterioso, fez-se belo e completo, sim, os pássaros voariam! Não havia sinal de chuva, o vento era farto, tudo era vento, as cores bailariam pelo palco suspenso, assim como o prazer e a alegria primitiva e selvagem pelos seus olhos bailavam agora graciosamente.
Foi assim que a pipa do menino voou pelos ares, com a leveza de uma rara lembrança que pousa na sombra e descansa delicadamente sobre a relva. Outras apareciam em número cada vez maior fazendo companhia à primeira. O céu virara uma festa. Até que, em uma confusão de vertigens e movimentos, uma das pipas desmaiou docemente sendo tocada e resvalada pelo vento. O menino viu perder-se de suas mãos o fio branco que ele até então quase que inconscientemente segurava. O fio foi se esvaindo, tal qual um pedaço de gelo quando o seguramos por um tempo em nossas mãos sob uma réstia de água líquida e, quando percebemos, vemos que a matéria sólida vai se diluindo, fundindo-se com a líquida, tornando-se ela também líquida, tornando-se de repente nada. O menino quando deu por si não segurava mais nada. Espertos, alimentados por uma sobra de esperança e incendiados por um triste sentimento de possível perda, todos os outros meninos voltaram-se ligeiros e curiosos para a pipa que caía por entre o tecido dos ares e, ainda tiveram tempo de ver que ela caía entre os muros de uma casa do bairro. Justo aquela casa! Poderia ser qualquer outra menos aquela, menos aquele cheiro de incenso a pairar através das paredes, menos aquelas árvores escuras e opulentas, menos aquele silêncio entrecortado por suspiros infinitos e sobrenaturais, aquela tristeza toda vestida de negro, aquela saudade toda recortada pelo medo.
Pousou os dedos trêmulos sobre a campainha fria.
Da mulher a primeira coisa que vira foram os pés. E que pés horrorosos, envelhecidos, com veias esverdeadas saltadas, unhas pintadas de vermelho e compridas, de aparência grossa e firme. Dedos compridos, separados, sola reta e média. Duro. Depois, o seu olhar infantil deitou-se sobre o corpo, bastante magro, com formas desiguais, ombros caídos, cansados, parecia ter uma armadura nas costas e esconder nela o mundo, os medos, as amarguras, as lágrimas retidas, as palavras sufocadas. Os ombros insinuavam ser sua proteção e sua fuga diária. Já os olhos eram ausentes, distantes, lançavam olhares longos, tão longos como uma vasta planície de um campo verde molhado pelos raios do sol e decorado em certos pontos por algumas flores silvestres. Também eram muito tristes, a tristeza daqueles olhos perturbou o menino, não só pela melancolia e impressão que nos causa as profundas e misteriosas tristezas, mas também porque essa tristeza não vivia naqueles olhos solitária, ela era recortada por uma fina sombra de maldade, sutil e perversa, fria e desconsoladamente perdida.
-O que foi garoto, perdeste algo? - disse ela mostrando uma voz rouca e resignada, quase que indiferente à vida e às outras coisas deste mundo.
-Sim, minha pipa! – e essa palavras saíram trêmulas e engasgadas, sofridas e sufocadas, como se o garoto tivesse engolido uma azeitona e esta estivesse entalada na sua garganta, impedindo que a coragem se impusesse altiva e imponente ao medo – Poderia ir apanhá-la, corro rapidinho aí no quintal e saio com ela debaixo do braço mais rapidinho do que entrei? - perguntou ansioso e nervoso por fim.
-Tem medo de mim garoto? Não há problema em entrar e pegar a pipa, fique à vontade. Só não olhe através da única porta pela qual vai passar, a porta por onde saí e vim ter com você. Se olhar, nunca mais terá sua pipa de volta! – disse ela em um tom risonho e quase cínico, que fez com que o medo do menino fosse, por um curto espaço de tempo, substituído por um sentimento de irritação ingênua e estridente.



A mulher abriu o portão de ferro que separava a rua da casa, cortou o silêncio um ruído fino e quase assustador proveniente do atrito do ferro velho que reavivou na mente do menino os seus mais profundos e esquecidos pesadelos. Em um balançar de mãos, ela mostrou o caminho e não esperou o menino passar. Andou antes dele e entrou na porta que o menino não podia olhar. Fez um movimento lento e pensativo para fechá-la, mas quando a porta já estava quase encostada, ela recuou, deixou um fino espaço por onde entrava o vento de fora e saía o ar esfumaçado e úmido de dentro.
O menino sentia seus passos ecoando no silêncio fúnebre da casa tomada pelo verde de milhares de plantas que nela habitavam, e à medida que se aproximava da porta proibida dentro dele se misturavam sentimentos regados por uma sutil melancolia, entremeada por uma breve e séria ansiosidade em saber o que havia por detrás daquela névoa espessa a sair vagarosa e misteriosa de dentro da porta entreaberta.
Foi quando o desejo foi maior que o pudor e o próprio medo a devorar os escrúpulos da infância. O menino pousou os olhos delicadamente na fresta deixada pela senhora e seus olhos lançaram um olhar inocente e longo, demasiadamente longo, vidrado e temperado com uma pitada de curiosidade juvenil e ingênua. Em instantes era como se aquele olhar fosse como um desmaio doce, no qual os sons são todos transformados em confusos e perdidos lamentos, o olhar era um próprio lamento a mergulhar deliciosamente e perigosamente nas águas turvas de um oceano infinito e desconhecido.
Havia três mulheres, a senhora que abrira o portão velho de ferro, e outras duas, igualmente velhas e provocantes em seu mistério e leve tom de ironia diante do mundo. Só uma das mulheres falava, as outras duas apenas escutavam lançando olhares longos e pensativos que, às vezes, esqueciam-se no tapete colorido que forrava a sala para serem logo e cuidadosamente pousados nos lábios trêmulos que falavam:
-Da minha vida pouco ou nada entendi, me sinto hoje tão vazia, tão triste, às vezes, ao olhar no espelho me sinto mais madura do que sou e até mais bela, como se a tristeza que me envolve me fizesse de repente mais bela, portadora daquela beleza séria, distante, fria, inalcançável, da qual muitos falam, alimentada por uma seriedade e gravidade quase diáfanas. Lembro de tantas coisas que tive, e, ao mesmo tempo, creio hoje que nunca tive nada. Perdi, miseravelmente, quase tudo aquilo que acreditei ter um dia. E como eu comprava! Mandei vir da Europa todos os quadros que imaginam, obras de arte valiosíssimas, tipos franceses de Debret e Cézanne, espanhóis de Velázquez e Picasso, os sonhos e a realidade única de Van Gogh, a inteligência e perfeição estética de Da Vinci, as delicadas e sublimes esculturas de Michelangelo, perfeitas no seu modelo renascentista, sagradas e profanas, deliciosamente encantadoras, trouxe peças de museus, acumulei em minha biblioteca milhares e milhares de livros que somem pela parede e vivem através dela sob camadas densas de poeira, títulos dos grandes russos, dentre eles, Dostoiévski, Tolstói, Nabokóv, Tchekhov, e o inspirador de quase todos Nikolai Gógol romances franceses belos e trágicos como os de Flaubert, Stendhal, Guy de Maupassant, Balzac, Proust, irlandeses, como as essências esplêndidas de Bernard Shaw e as páginas intermináveis de James Joyce, pérolas inglesas de Oscar Wilde, que devassaram-me a alma e expuseram vis e cruéis meus vícios e pecados mais sórdidos, a palavra doce e pungente de Virginia Woolf, clássicos alemães como Goethe que expuseram-me os sofrimentos do jovem Werther que nunca foram maiores que os meus, nem sequer serviram para me consolar dos meus, nunca desejei a morte, pareço covarde, sequer tenho coragem de enfrentá-la, de em mim provocá-la, sou, entre os seres humanos, a espécie mais vil e mais cheia de saudade do que nunca teve, enganando as horas, os dias, os anos, sufocada por tudo que tive. E banhei-me de filosofias, todas as possíveis e imagináveis, de Sartre, Nietzsche, Spinoza, até símbolos do pensamento moderno como Voltaire e Rousseau. Me fizeram companhia por longas horas as belas palavras de um Saramago, o estilo de Onetti, a poesia de Borges e T.S. Eliot, a magia de Gabriel García Márquez, a politização e denúncia social de Galeano, ah! E as palavras de minha terra, os versos de Drummond, Vinicius, Cecília, as histórias de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, a intensidade sofredora de Clarice... Minha vida foi nada mais que uma sequência sutil e irremediável de perdas que eu tentava esconder de mim mesma e não me faltavam os livros, quadros e peças de decoração. Hoje, estou encravada dentro de um palácio onde não cabe tudo aquilo que comprei, pedaços do mundo inteiro, peças soltas e cinzentas que não se completam, estão longe de montar o quebra-cabeça final, falta a peça derradeira, a palavra definitiva, o amor que nunca tive para preencher o vazio que hoje me corta e alucina. O preço de tudo que comprei, de tudo que construí, talvez nenhum homem deste mundo jamais saberá, só eu sei o preço de minha construção em ruínas, de meu mar de objetos invisíveis e que ardem em minha alma feito chama prolongada. Meu sofrimento é também estéril, estendido, entrecortado por sorrisos amargos que despejo preguiçosamente e forçosamente aos meus milhares de empregados, a servir bandejas de tédio e solidão. Eles colhem mansos e lotados de pena, meu olhar rompido, trincado e sujo. Cansado e, como alguns dizem, de uma ternura branca e ressabiada.



-No, entanto, não há sequer um só dia, desta minha miserável existência, que não me recorde, doce e suavemente de um sonho lindo. Ah! Como aquele lugar era lindo! Como ele era lindo! Havia uma grande casa de fazenda, de janelas azuis e paredes amarelas, a casa parecia antiga, do tempo da escravidão, das grandes fazendas produtoras de açúcar, de um outro tempo o qual a poeria da vida já foi deixando pra trás. O lugar tinha cheiro de terra, sopro de ar, e, bem no meio da grande casa, se andava por uma passarela longa, que, em intervalos regulares, era interrompida por algum lugar que do sonho eu não me recordo muito bem, eis uma área confusa, enevoada pelas zonas obscuras da lembrança de meu inconsciente insensato. Creio que eram regiões onde as pessoas poderiam sentar-se e conversar, olhar o céu, as cores do universo, a quietude mansa e imponente das montanhas. Mas, o mais lindo de tudo, era que, no fim desta longa passarela, que no meu sonho era percorrida rapidamente, sentava-se em um banco de madeira e do alto contemplava-se lá em baixo um belo e extenso mar, regado por um intenso brilho de sol, vidrado pela luminosidade reticente do cair da tarde, mudo e estático, tão expressivo, de águas tão abundantes, diáfanas e silenciosas. Confuso, um mar ao lado de uma casa de fazenda, as águas derradeiras encravadas no seio de uma montanha, deitadas graciosamente no colo macio e aconchegante dos campos. Mas, no meu sonho era exatamente assim. E me recordo de algumas crianças, belas e saltitantes, livres mergulhando toda a graça pueril que lhes é própria nas águas líricas daquele mar. E, no sonho, eu não estava sozinha, estava comigo um homem que eu vira, de fato, uma única vez, de relance. Atraiu-me seu olhar longo e terrivelmente belo, regado por um tom esverdeado, e seu rosto tinha feições que me pareciam tão jovens e, ao mesmo tempo, tão singelas que tocaram as cordas de algum canto de minha alma que ainda não tivera sido tocado. No mesmo instante, pousei sobre ele um olhar prolongado, cheio de um êxtase incontido e arrepiado a verter um desejo que parecia ter sob as camadas nebulosas de minha alma se acumulado durante séculos. Foi apenas um instante, minutos, que eu nunca mais me esqueci. Foi um homem que eu nunca tive, sequer dele sei o nome ou o som da voz, mas mesmo assim, mesmo nunca o tendo de fato, ele foi a única coisa que eu realmente tive na vida, aquele olhar foi e continua sendo a minha lembrança, a fuga de minha alma, o ecoar do meu silêncio, um sentido sublime, intocável para meu deserto cotidiano.
Nunca soube explicar o sentimento que tive diante daquele homem. Em momentos de aflição e desespero incontrolável nos quais os olhos refugiam-se sob camadas infinitas de lágrimas, tais como uma névoa espessa e densa, ao mesmo tempo, lenta, arrebato-me e me descontrolo diante da indisfarçável transparência de meus sentimentos. Aperto com força meus olhos, esfrego o rosto com as minhas mãos trêmulas, quero fugir desse ar que me sufoca e me liberta, que faz-me bela e também mesquinha, invejosa. Quero ter de volta ou poder ter aquela paz que há tempos já não sei mais qual é, uma paz que hoje apenas me espreita, mas segue pairando longe de mim, escondida, sombreada pelo meu medo e pelo meu amor. Amor incontrolável, indomável, distante de todas as outras leis que se possa ditar sobre os homens e sobre a terra. Amor do qual às vezes chego a ter medo, será pecado amar tanto assim, qual será a peça maior do destino pregada sobre meu desmaiado coração, completamente esquecido e desejoso de teus olhos, revoltado por uma saudade incontrolável, angustiado por um tempo longo, tão longo...
Vício de minha alma, canto do meu mais profundo ser, sonho do meu passado, brilho de meu futuro, sentido de meus sonhos, condutor de meus passos, te amo, inconscientemente, talvez assim não pudesse ser, as coisas fora de mim me culpam, me julgam, eu mesma me espreito na solidão de meus loucos devaneios, eu mesma me condeno até que seus braços me absolvam e neles eu pouse leve e docemente, tal como folha a cair sobre os campos verdes extensos, embalada pelas notas tocadas pelo vento, parecendo trocar com a paz que procuro um terno e doce abraço. Esquecida em teu olhar, mergulhada dentro da sua alma, contemplo a mim mesma, um tanto esfumaçada, um tanto lenta, longa, intensa, assim como os beijos que trocamos, infinitos, pueris, sinceros, ardentes, regados por um fina réstia de ternura a selar com uma perfeição rara a afinidade de dois espíritos eternos a se reencontrarem no oceano sublime dos tempos. De resto apenas me faço muda, entrego-me à vida como vencida, ficamos tais como dois seres suspensos, pairando acima do próprio céu, recolhidos dos olhares do mundo, dos sentimentos alheios, revestidos de pétalas de rosa e poesia, onde encontro enfim a minha paz.
E de repente, esta lembrança de outrora se junta, sutilmente e como que tomada por uma graciosidade gratuita, a esse lindo sonho que agora me parece como uma despedida desse mundo. Uma última imagem de minha vida solitária e ausente, uma imagem linda, na qual ao recanto e paz infinita de uma casa de campo, se unem a grandeza e a simplicidade do mar. Um mar que entra deliciosamente a desafiar as montanhas, montanhas que cedem, gentilmente, passagem para as águas derradeiras e infinitas nas quais elas mergulham com uma sensualidade primitiva e rara. Um lugar que no meu sonho reuniu todas as possibilidade de perfeição, no qual eu prometia a ele, de costas para a casa de janeles azuis e paredes amarelas e de frente para a plenitude brilhante do mar, um amor mais bonito...
Uma lembrança sublime, intacta, suspensa, a sustentar minha vida, uma promessa, um lugar, um pano branco estendido em pleno ar.
Um silêncio tomou conta daquele ar umedecido de lágrimas, cortado por uma grave densidade, esfumaçado, cheirando a saudade, estilhaçado por memórias, dores e perdas, pela vida vivida e melancolicamente lamentada.
O menino de repente se viu ali, envolto por aquela fumaça, confuso e amedrontado por aquelas palavras tão doloridas, desperto de uma espécie de anestesiamento que envolvera seu corpo durante o momento em que saboreara e mordera o fruto proibido. Seus olhos e seu medo o lembraram de que durante aquele espaço de tempo no qual uma voz doce e pálida parecia implorar sua atenção, ele violara a palavra daquela primeira senhora que para ele abrira a velha grade de ferro, mandando que pela primeira porta, ele não olhasse, apenas pegasse a pipa e fosse embora.
Saiu correndo, dominado por um sentimento de medo e náusea, ao abrir o portão não conseguiu conter o mesmo barulho feito pelas dobradiças da grade já bastante velha e isso lhe deu de repente a sensação de que tudo ali era tremendamente velho. A casa da qual ele sempre tivera medo lhe pareceu assustadoramente envelhecida, recortada e preenchida por pessoas também envelhecidas a tecer considerações sobre a vida, a render-se diante dos fatos e da malícia e tortuosidade de um destino ao qual todos nós teremos que responder um dia.
Enquanto andava, lhe voltavam feito sombras perfuradas as palavras que saíram daquele lábios que agora ele recordava enrugados e vulgarmente vermelhos. Quando já havia andando um bom pedaço, o menino lembrou-se da pipa. Caída naquele chão enfeitiçado, solitária, colorida, com seu ar espontâneo, livre e jovial, em meio a toda aquela casa ausente de cores, antiga cinzenta, amargamente triste. Ao sair da casa, com a alma agitada e ligeiramente amadurecida, ele nem sequer se lembrara da pipa, como se tivesse sido tocado por um sortilégio que advém dos detalhes do passado, da própria vida desintegrada diante de seus olhos atentos, ainda ingênuos, pueris e fascinados.
Em meio a confusões e imagens disformes e quentes, o menino fez um movimento sutil com o corpo para voltar, mas, lembrou-se daqueles pés, e, com um leve cair de braços combinado a um suspiro de forçada aceitação, continuou a caminhar.

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