sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Contadora de histórias



Ela sempre usava um xale, às vezes, eu notava que ele era colorido, bastante estampado com algumas flores ou desenhos de forma familiar, que, aos nossos olhos, parecem estar presentes em todos os lugares. Outras vezes, ele era apenas de uma cor, branco, vermelho ou negro. Quando era negro dava a ela um ar de superioridade, quase de coisa inalcançável, sublime, fria e distante, levemente pensativa, detentora da ponta da eternidade ou do prazer efêmero do mais envolvente dos instantes. Vestida com um xale negro ela estava da última vez que a vi e vestia apenas isso: um xale negro. A brancura límpida, diáfana, do restante do corpo contrastava com a negritude do tecido, ela figurava de um tom enegrecido na claridade, quase como uma vertigem, sua imagem fugia aos meus olhos, adormecida e doce, tal como sua voz que falava. Era um dia de chuva, frio, com ventos acelerados, almas agitadas, tons e ritmos misturados, se parecia com uma receita de melancolia sem saudade, cheirava a abacate maduro, esperando algo, esperando alguém, esperando alguma palavra, a derradeira história. E ela veio. Quase que escondida, foi aos poucos desfazendo-se do seu véu empoeirado e despejou-se no tecido das almas ali presentes.
Lembro que naquele dia éramos quatro mais a contadora de histórias. Coberta pela escuridão do xale, ela contou de um rei, bastante sábio e nobre, demasiadamente poderoso e que se tornara também, em virtude da vida e das coisas do destino, demasiadamente humano. Seu reino era o mais extenso de toda idade antiga, abrigava povos de variadas cores e vozes, terras de inúmeras plantas e solos, árvores de incontáveis formas e frutos, rios de múltiplas margens e velocidades, mulheres de todas as belezas e idades, homens de inacreditáveis forças e vaidades, crianças de incríveis sonhos e curiosidades, velhos de todas as dores e saudades. O rei assim se tornara rei aos quinze anos quando já era um bom lutador, hábil na guerra, rápido nas emboscadas, inteligente nas negociatas, embora nesse tempo ainda fosse bastante convencido de si mesmo. Sem o perceber, o rei já estava cansado e aborrecido de si mesmo, apenas se iludia com vitórias sem trégua, com louvações sem verdade, com promessas sem dignidade. Seu mundo era festa, milagres, conquistas, seu poder parecia não ter fim, sua glória e força, típicas da juventude, faziam-no pensar que viveria mil anos, apenas a sua consciência alertava de vez em quando, sutilmente, que tanta certeza resvalava na soberba e vaidade, não deixando de tangenciar a estupidez e mediocridade. Até que um dia, o rei com um mundo todo a seu dispor, cheio de vitórias e promessas pela frente, descobriu que não chegaria aos trinta anos de idade. Ele começava a ser lentamente devorado. Por um lance do destino ou castigo dos deuses, sua pele até então fina, macia e delicada, passou a ser consumida pouco a pouco, castigada por feridas que vinham de dentro pra fora, deformada por fantasmas, queimada por chamas impiedosas, estupidamente comida e mastigada por ratos da escuridão. O rei era agora leproso aos vinte e dois anos de idade. Para que seu vasto reino não se assustasse com sua desintegração e deformação em vida, cobriu as mãos com panos brancos, revestiu a face com uma máscara prateada de formas bastante perfeitas, harmônicas e delicadas imitando um rosto que parecia ser o da mais bela das mulheres já existentes neste mundo e disfarçando o horror do mais nobre dos reis. Lançou-se uma sombra sobre a sua própria existência cada vez mais fraca e, ao esmo tempo, nobre. Doente, o rei se tornou maduro, pensativo, demorava-se nas questões sobre coisas do dia-a-dia que antes sequer se debruçava, esquecia por mais tempo seus olhos nas terras que conquistara, terras que até então ele sequer parara para admirar. Sua voz, sempre macia e antes recortada por um fino tom autoritário, agora era marcada pela mesma maciez, mas por uma doçura e temperança próprias daqueles que perderam a beleza do corpo e encontraram as respostas na visão de suas almas, posto que a visão do primeiro seria por demais insuportável, intolerável.
Assim, o rei aparecia aos olhos do mundo, cada vez mais fraco e, no mesmo movimento, cada vez mais autônomo, amoral, livre de vaidades, corroído de corpo, adormecido e engrandecido de alma.
Nos anos ligeiramente reclusos da doença ninguém nunca via seu rosto. Quando o rei morreu, ao tirarem sua máscara prateada, apenas um som mudo, um contorcer dolorido de lábios, um umedecer repentino de olhos desenhou-se nas expressões de alguns. Aquilo não era o rei, outrora tão lindo, jovem e saudável, era apenas um rosto de monstro, devorado em algumas partes, desfeito em sua perfeição, deformado por uma doença que lhe atacou a casca, mas conversou um fruto eterno e delicioso. Sobre seu corpo morto, docemente colocado, esquecia-se um xale negro, bastante perfumado a exalar um cheiro de lírios e abacates.
Foi quando o xale deslizou suavemente pelos seus ombros, sem pressa, ela os recolocou no lugar com um simples e lento movimento de braço e continuou, agora já era outra a história...
Em um dos cantos do extenso reino de um belo e valente rei, havia uma menina. Tinha lá os seus dezesseis anos, para os outros era ela uma menina, para ela mesma, já era uma mulher. Na verdade, ela era uma daquelas pedras preciosas, cujas condições de existência fizeram os anos pesarem mais, tornando-as joias maduras e delicadamente lapidadas. De olhos pequenos, tentadores, envergonhadamente decifradores, tingidos por um tom castanho e emoldurados por longos cílios bastante enegrecidos, a menina sempre tivera uma olhar perturbador combinado a uma alma revestida de névoa bastante espessa e densa, temperada com incertezas e mistérios. Aos olhos do mundo, ela pairava como uma alma suspensa, que infligia penas e castigos com um simples olhar. Muitos já haviam sido os que naquela aldeia se debruçaram sobre o segredo daqueles olhos que ora pareciam generosos, ora pareciam mesquinhos e egoístas, às vezes eram perdidos e vagos, como suspiros desencontrados, em outras, eram certeiros e retos, como seta mirada e cravada. De todo sempre eram belos, como um desmaio doce de fim de inverno e começo da primavera, como um desabrochar tímido e suave da mais bela das flores do campo, como um aroma sem nome, sentimento sem dono, palavra de repente muda e eterna. Os olhos lhe preenchiam o rosto, davam a ele equilíbrio e formas perfeitas, combinando com a boca de lábios nem tão finos, nem tão grossos e com o nariz altivo e onipotente, destes que exalam o desejo e a certeza de que com a beleza podem dominar o mundo, deitarem as almas, subverterem o próprio destino e, por fim, regarem a terra com lágrimas semeadas no vento de um excesso de perfeição.
A menina se chamava Helena, tal como Helena de Tróia, a mulher que ocupou docemente e detalhadamente dois corações inimigos na política que, por interesses econômicos, provocaram uma guerra de dez longos anos. As bocas dizem que, além dos interesses comerciais, entranhado e pregado como feitiço nos seus corações, gritava o amor pela mesma mulher, a durar, soberanamente, uma vida toda. Os pais da menina da nossa história adoravam o nome Helena e, principalmente, admiravam a mulher que o portara em outros tempos, assim não hesitaram em dar à sua filha o mesmo nome, desejosos de que ela também conservasse ao menos um pouco da graça e majestade da primeira. A beleza seria demais, esta os pais honestamente não almejavam, queriam apenas a alma altiva e parecida com a de uma heroína de um belo romance. Mas, quando a menina nasceu, viram que a beleza a escolhera, ainda não sabiam da alma, dos seus desejos e das suas insatisfações, mas a beleza já estava à mostra, uma beleza tão grande que desde o começo já incomodava.
À medida que o tempo ia passando, Helena mostrava um certo pendor para as artes do corpo, dentre elas, a dança. Dançava lindamente! Seus movimentos eram coordenados, verdadeiros, intensos, era como se em cada um deles sentisse a mais gloriosa das alegrias ou a mais pungente e dilacerante das dores. A sincronia de seu corpo era perfeita, os cabelos dançavam e se penteavam no mesmo movimento do restante do corpo. Dançando, ela era simplesmente insuportável, não só pela leveza e exatidão com que se fazia uma bailarina sobre o palco, isso muitas outras tinham, mas, acima de tudo, pela beleza de seu rosto, pela harmonia do seu corpo, pela seda esvoaçante a confundir-se com seu cabelo que, combinados aos passos da dança e ao ressoar da música, faziam-na testemunho do sortilégio despejado pelos deuses sobre essa terra habitada por homens tão vis, tão cheios de si, e tão estupidamente pequenos. Se as mulheres sentiam inveja, os homens enlouqueciam ao vê-la. No início, tratava-se apenas daquela loucura própria dos arrebatadamente apaixonados, depois tornava-se insanidade mental, os homens deixavam casa, esposa, filhos, gatos e cachorros e vagavam pelas ruas nus gritando o seu nome, deitavam sob a janela do seu quarto, uivavam como cães abandonados, assim viviam dias e dias, esperando ao menos um daqueles olhares, ah o prazer de decifrar aquele segredo navegava na alma suspensa de cada um daqueles homens, loucos eles ficavam, era como se a beleza da dançarina não pudesse conviver com a razão e moralidade mesquinhas a tornar o homem dependente e fraco. Sua beleza só colhia lírios, lírios que como já dizia um poeta, existem apenas no osso da fala dos loucos. E enquanto os homens perdiam a razão, Helena continuava linda e silenciosa, falando pouco, reparando demais, dançando e vertendo vendavais.
Foi quando na pequena aldeia em que vivia, não demorou muito para que os boatos corressem soltos, como plumas despregadas de um travesseiro e lançadas ao vento indo cada uma para um lado, perdendo-se levianamente para sempre. Todos falavam que a menina Helena visitava o rei, dono e senhor de todas as terras próximas da aldeia em que ele vivia, e ainda diziam que ela fazia suas visitas no seio de todas as madrugadas e com ele, vinha tendo já há algum tempo, uma tórrida história de amor.
De fato, Helena saía todas as noites de sua casa, vestindo apenas um xale negro, mais nada, e dirigia seus passos coreografados para o castelo onde vivia o rei. Entrava por uma porta secreta que ia dar diretamente no quarto deste último. O rei já notara desde muito a beleza daquela menina que aos seus olhos sempre fora uma mulher, muitos dela falavam, outros tantos por ela enlouqueciam, seu exército, inclusive, já tivera uma baixa considerável no número de homens em razão da loucura que acometia muitos dos que a viam. Todos esse poder a emanar de uma mulher o fascinava, para ele era como um desafio novo e empolgante que fugia um pouco daquela acomodação e mesmice cotidiana de sempre ter em sua cama mulheres comuns, medianamente belas, estupidamente frescas e totalmente vazias. O rei queria mais, Helena parecia ser mais. Ela, por sua vez, sempre o achara belo, altivo, imponente, forte, com mil anos de vida pela frente. Acima de tudo, ela o achava bom, honesto, nobre, um verdadeiro rei, destes que defendem o seu povo e não perdem a sua dignidade.
O primeiro encontro foi simplesmente mudo. Quando os olhos do rei pousaram naqueles olhos misteriosos de Helena, eles docemente se esqueceram ali. Não conseguiam desviar-se, não podiam suportar-se de tanta beleza, lágrimas explodiram insossas e já apaixonadas, o rei a tomou em seus braços, a beijou longa e deliciosamente. Depois, esquivou-se, a olhou por inteiro, pediu, sedutoramente, para que ela dançasse pra ele, só pra ele. Combinando o movimento do seu corpo com os movimentos de mão com que fazia bailar o seu negro xale, Helena dançou como um imenso campo de girassóis, iluminada, uniforme, harmônica, petulante, misteriosa, mutante e, se fez, em um só movimento, mulher e criança, sua dança tinha a graça pueril da infância e também a sensualidade branca do fruto levemente amargo e já maduro.
A cada noite pareciam mais apaixonados. Helena mostrava-se diferente aos olhos da família e dos habitantes de sua aldeia, sua dança já era menos petulante e mais natural, seus modos menos desesperados e mais doces, sua voz menos entrecortada e mais completa, seus dias menos longos e com mais sentido. O rei continuava, como sempre fora, conquistador e generoso, com a gota pingada pelo verdadeiro amor, parecia ainda mais lúcido e coerente, mas continuava levemente arrogante, agora então, que conquistara a mulher mais fascinante de todas as terras próximas, não cabia dentro de sua vaidade e grandeza, para alguns dizia que não viveria apenas mil, e sim dois mil anos, quiçá por toda a eternidade!
Até que em uma das madrugadas, o destino se apressou em não dormir depois que os homens. Naquela noite, Helena dançou como nunca antes havia dançado, o rei a beijou de forma tão interminável que ela julgou estar em um deserto lindamente longo, com um céu tingido de vermelho, salpicado por algumas manchas róseas, perfumado por um cheiro de eternidade, de perfeição, cantado por vozes afinadas e melancólicas. Acordando daquela espécie de vertigem, Helena, sem querer, no mais profundo e inexplicável instinto, sentiu que o xale queimava sobre a sua pele, ardia feito brasa incontida e esfomeada, pronta para devorar e morder a própria noite. Em um impulso frenético, atirou o xale enegrecido na claridade derramada pela lua, sobre os ombros nus do rei. Assustada, Helena correu em direção à saída, sem entender, o rei a seguiu e gritou seu nome desesperadamente, como pressentindo um mal que ainda não conseguia distinguir. Pode vê-la afastar-se pelo corredor cinzento, toda nua, grande, muda. Foi a última vez que a viu.
No outro dia, Helena descobriu que o rei fora acometido por uma das doenças mais terríveis de todas as eras e épocas. Segundo soube, ao acordar pela manhã, ele viu suas mãos já inteiramente deformadas, sua pele a verter feridas em carne viva, em breve, ele todo seria uma sombra monstruosa do que um dia foi. Inutilmente tentou visitá-lo, o rei não queria vê-la. Elas apenas o via de longe, quando este não podia vê-la no meio da multidão. Nestas ocasiões, notava que ele sempre aparecia escondido sob uma máscara prateada quando já não era mais o homem que ela tanto amara e que, dolorosamente tinha consciência, ela castigara não com a loucura da mente e sim com a desintegração do corpo, de toda e qualquer vaidade, em uma jogada na qual a razão se faria cada vez mais lúcida, não mais arrogante, apenas nobre, consciente de seus limites, não mais seduzida pela ilusão da eternidade do corpo, perecível e efêmero, e sim condutora de uma alma que se conservaria bela, serena, como um diáfano rio que se desprende das suas margens correndo livremente, sem moralidades que o prendam.
Depois da última vez que o viu, Helena olhou-se refletida nas águas de um rio próximo à sua casa. Odiou toda a sua beleza, rasgou com fúria o reflexo do seu olhar, e, em meio a tanta angústia e dor, descobriu que a máscara prateada usada pelo rei imitava exatamente as formas e traços da sua face. No entanto, não levava os seus olhos, apenas não pesava nela aquele segredo. Era como se o rei combinasse, na agonia da sua doença, a perfeição do rosto da mulher amada à generosidade gratuita que sempre se refletira no seu olhar. Confusa e quase que enlouquecida, Helena correu em direção a algo que não tinha nome, a um nada no infinito, procurando fugir daquela imagem que esfumaçava sua mente, seu rosto nos olhos dele, seus olhos na alma dele, sua dança como expressão perpendicular de um desejo horizontal. Nunca mais ela dançou, a maldição de seus olhos a condenaram à solidão, perdida, algumas pessoas ainda contam que ela vagava chamando por um nome, usando apenas um xale preto a ouvir as vozes mudas do universo em um vácuo de poesia e recordação.
Com um breve e dolorido suspiro, ela terminou a história daquela noite. Novamente, deixou cair o xale que cobria um dos ombros revelando a mesma pele branca e profunda de todas as madrugadas.

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