terça-feira, 28 de julho de 2009

Anticristo, de Lars von Trier estreia no Brasil dia 28 de agosto e já gera polêmica


Cena do filme Anticristo


O filme Anticristo, do diretor dinamarquês Lars von Trier estreia no Brasil dia 28 de agosto e já vem gerando uma série de discussões e polêmicas, algo comum em se tratando deste mestre da sétima arte. Mas, Anticristo realmente parece ir mais além do que outros filmes do diretor e os apreciadores da sua forma particular e inteligente de fazer cinema não perdem por esperar. Tanta expectativa em relação a Anticristo pode ser explicada por alguns fatores. O primeiro deles diz respeito ao fato de o filme ter sido produzido quando Lars von Trier passava por grave depressão. Segundo ele, a única maneira de sair da cama era escrever dez páginas de roteiro por dia. O segundo tem relação com o filme, para ser mais específica com o horror do filme, que pode ser visto como horror ou não, já que em Lars von Trier é tudo uma questão de ponto de vista. E o terceiro se refere à repercussão que o filme teve no Festival de Cannes, onde a crítica ficou dividida entre aplausos e vaias. Alguns acharam o filme ousado, mas a maioria o viu apenas como um horror, de maneira simplista, como dito acima. Von Trier não se importou com as críticas, ignorou tudo que foi dito e deixou bem claro que ele não tem que se justificar.

O fato é que o filme traz cenas como a de um pênis jorrando sangue, a automutilação genital feminina, o close de um poético ato sexual que inicia o longa ao mesmo tempo em que um bebê cai para a morte de uma janela, dentre outras demonstrações de coragem e capacidade perturbadora.
Os filmes de Von Trier não têm um significado claro, eles fogem do maniqueísmo simplista e por isso mesmo restrito e limitado. Permitem que quem os assiste tome contato com pontos frágeis, com linhas tênues da existência humana. Ao mesmo tempo em que há uma densidade psicológica admirável, também existe um cuidado com a técnica, com a preservação e ampliação do fazer criativo em seus filmes. Um claro exemplo desta realidade é o filme Dogville, lançado em 2003, que transborda criatividade, inteligência e qualidade de interpretação, além de trazer uma poética elevada na linguagem utilizada para contar a história.

Von Trier não é um sujeito comum e por isso é fascinante, dentre suas características marcantes está a ansiedade exagerada, a capacidade de mostrar a ele mesmo em seus filmes e a fama de provocador. Ele ficou famoso com o filme Ondas da Paixão de 1996, e com Dançando no Escuro de 2000, viu serem associadas a ele acusações de misoginia, ou seja, o ódio contra as mulheres, a tendência de fazer com que elas sofram em seus filmes e sejam frequentemente arrastadas para um mundo mau.

Anticristo é dedicado por Von Trier à memória de Andrei Tarkovsky - um dos mais criativos e inovadores cineastas do cinema soviético - e é considerado por ele o seu melhor filme. Sem medo de errar arrisco dizendo que o filme deve ser louco e brilhante, assim como Lars von Trier e a maioria dos seres humanos que insistem em esconder sua loucura sob capas de falso moralismo e de aparências banais. Von Trier nos permite ser humanos em toda densidade e complexidade desta vida que se insinua com tanta facilidade em sua obra.

O diretor dinamarquês Lars von Trier

sábado, 25 de julho de 2009

Coisas dela

Falta espaço pro meu passo

pro meu canto

pro meu sonho

pro meu denso encanto


Falta espaço pro meu amor

pra uma dor

pra uma lágrima

pra uma cor


Falta espaço pro meu eu

pro meu pensar

pro meu querer

pro meu viver


Falta-me a mim mesma

Onde estarei eu?

Pra onde fores eu irei



Ela acordou e sabia que aquela manhã não seria fácil, já que as mais recentes tampouco lhe haviam sido. Ao ouvir as primeiras palavras se sentiu como que esmagada, sufocada, parecia que ia explodir em lágrimas, gritos e ilusões já perdidas. Passou a sofrer de uma espécie de tortura interna, a mente era um permanente conflito, o corpo queria ver solta sua alma, inebriar-se de luz e sentir-se como um cego quando volta a ver as luzes e as cores da vida. Tentava inutilmente se acalmar, entregou-se por fim ao choro descontrolado e incontido, como uma criança que chora mais para que os outros a notem e menos pelo brinquedo não possuído. Ela não chegava a conclusão a respeito de nada, tinha vontade de brigar com todo mundo, quebrar a casa toda, bagunçar o meio em que se encontrava para que a sua bagunça interior não estivesse mais sozinha, encontrando-se refletida à sua volta. Sentia que estava frio, isso a acalmava um pouco, todos pareciam de repente estar um pouco tristes como ela. Pensou na morte, sentiu que ela a visitava, densa e invisível. Assumiu sua fraqueza perto de sua treva, treva que a atormentava desde criança. A morte para ela era escura, como a escuridão que se vê assim que fechamos os olhos e nos entregamos às trevas do sono. Escuro era seu mundo naquela hora, não sabia o que fazer, o que pensar, articulava discursos, formulava frases que se desintegravam no ar, nada fazia mais sentido. No fundo, ela tinha apenas uma única certeza, aquela dor, mesmo tão pungente e incompreensível iria passar, ela o sabia por experiência própria.

Decidiu levantar, o que queria mesmo era arrancar aquela angústia que sentia, aquela insegurança, aquela falta de sentido. Ela estava sozinha, sabia que o estava, como tantas outras vezes, não ouvia nada além do som do próprio choro. Desesperado. Fez algumas coisas, tentou comer, andar esperando que aquela crise passasse, que dentro de si as coisas se resolvessem, as respostas aparecessem, mas ela esperava em vão. Se arrumou, colocou uma boa roupa, penteou os cabelos, queria se ver bem diante do espelho, precisava pelo menos de uma boa imagem de si mesma, ainda que insincera. Revestida por uma camada de força quase extinta saiu sem rumo nem motivo. Ela queria simplesmente sair, precisava sair, não aguentava mais a visão material das paredes, queria a liberdade das ruas porque acreditava que estas pudessem libertar do sofrimento a sua alma. Olhou as pessoas enquanto andava, sempre foi afeita às pessoas, gostava de imaginar a história que habita por trás de cada corpo, sem julgar, apenas imaginava e no íntimo se perguntava se alguém sentia ou sofria da mesma crise que ela. Continuou a andar sem rumo, não tinha objetivos nesta sua saída, o objetivo ela alheio à sua racionalidade sempre tão precária.

Quando voltou esperava algo novo, mas tudo estava igual, o mesmo silêncio, a mesma solidão. Ela ficou pior, não chorou porque as águas nunca gostaram de frequentar o seu rosto com frequencia, talvez porque elas já tivessem escorrido por ele demais. Ela queria falar tanta coisa, queria sumir, ir embora, queria ela mesma de volta. Tinha se perdido em um caminho difícil demais para ela, as pessoas não a entendiam e continuariam sem entender, as pessoas eram más aquela hora. Ela, no entanto, continuaria a lutar, lembrando-se que certa vez uma amiga lhe dissera “porque o mundo é muito maior pra você!” A frase ecoou no silêncio de seus devaneios, a crise começava a passar, mas afloraria cedo ou tarde em uma espiral imprevisível, em alma tão nova e já tão cansada.

terça-feira, 21 de julho de 2009

"O jornalismo tem que ter literatura", diz Gay Talese

O jornalista e escritor Gay Talese



O jornalista e escritor norte-americano Gay Talese foi o entrevistado do programa Roda Viva da TV Cultura exibido nesta segunda-feira, 20 de julho de 2009. Gay Talese se tornou um dos expoentes do gênero literário mais conhecido como New Journalism – uma inovação de origem um tanto incerta, surgida principalmente nas revistas Esquire, Haper’s, e The New Yorker, ao lado de outros nomes como Truman Capote e Tom Wolf. O New Journalism é um jornalismo de não-ficção, ou seja, ele se baseia em fatos da realidade, do cotidiano, mas os relata de uma forma um pouco diferente do modelo tradicional, dando aos acontecimentos um toque literário, um olhar mais amplo, profundo e humano.
Muitos críticos ao New Journalism dizem que os autores deste gênero deturpam os fatos para conseguir um maior efeito dramático, afirmação que o próprio Talese contesta em seu livro Fama e Anonimato. Neste, Talese afirma que embora, muitas vezes, o novo jornalismo seja lido como ficção, ele não é ficção. Segundo o jornalista e escritor, ele é, ou pelo menos deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais a moda antiga. Ainda segundo Talese, o novo jornalismo permite uma abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando que o narrador se insira na narrativa ou assuma uma postura mais neutra diante dos fatos e dos personagens que compõem uma história a ser contada.
Mas, New Journalism a parte, a entrevista de Talese no Roda Viva teve muitos pontos positivos. O jornalista mostrou em cada pergunta sua facilidade com as palavras, sua fala natural e articulada, seu raciocínio lógico, seus valores morais e pessoais. Ele falou do jornalismo como alguém que realmente vive e é apaixonado pelo que faz. Enumerou os princípios básicos que devem orientar o jornalista em sua profissão. Segundo Talese seriam eles: curiosidade, busca pela exatidão e precisão e, o que ele considera o mais importante, capacidade de produzir um bom texto, se possível com literatura. Ao falar de exatidão e precisão, o jornalista ressaltou que estas são mais importantes que a velocidade ou a rapidez na apuração de um fato. Não concorda com os jornalistas que são obcecados por furos. Segundo Talese, um bom jornalismo se faz com precisão, responsabilidade e isenção. Ele não se importa de passar meses pesquisando um tema, mergulhado na vida de algum personagem, nos cenários de algum lugar. O importante é reunir dados suficientes para que no final você possa produzir uma boa reportagem, diz Talese. E aí entra o ponto mais interessante de sua entrevista: o texto jornalístico. Ele disse que de nada adianta curiosidade, apuração ou precisão se o jornalista não for capaz de elaborar um bom texto, de saber distribuir as palavras, equilibrar as impressões e transmitir para um pedaço de papel a realidade por ele vista da forma mais clara e harmoniosa possível, o que só se consegue com um conhecimento profundo da língua com a qual se escreve. É necessário compreender suas regras e seus recursos literários. Por isso, em sua opinião, um bom texto tem que ter literatura.
A literatura, quando bem utilizada, enriquece o relato, tornando-o mais interessante e rico. Talese lembra que quando lemos um romance de ficção nos interessamos pela história, nos identificamos com personagens ali retratados e somos envolvidos pelo correto e sedutor uso da linguagem, ou seja, somos seduzidos pela literatura. Um texto de não-ficção deveria ser tão bem escrito a ponto de provocar o mesmo efeito, envolvendo o leitor nos fatos da realidade, não nas espirais da imaginação e da fantasia, mas envolvendo-o a ponto de tornar a realidade algo tão interessante e importante quanto um bom romance. O essencial é perceber que a literatura pode estar presente no jornalismo de maneiras muito sutis, em textos puramente informativos, que visam a objetividade, ou em textos como crônicas e perfis, que já adotam e admitem um tom mais poético.
Além de defender a literatura como forma de enriquecer o texto jornalístico sem que este perca sua função originalmente informativa, Talese falou da importância de estar com as pessoas, de manter uma boa relação com as fontes, tornar-se quase que íntimo delas, ganhando a sua confiança. Defendeu o contato humano, real, em detrimento da mediação tecnológica, cada vez mais freqüente e comum no jornalismo atual.
Quando perguntado a respeito da formação necessária para se tornar um bom jornalista, Talese disse que não acredita que alguém se forme jornalista, para ele, o jornalista de verdade precisa ter algo dentro dele que o chame para o jornalismo, algo que vai muito além de técnicas, aparências, furos e passa muito perto da determinação, vontade, persistência, paixão pelas pessoas, pelas histórias e pela palavra escrita.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Sombras da cidade - Parte 3


E muito mais está por trás dos mistérios de uma cidade. Tanto as grandes quanto as pequenas têm sua lógica, seus personagens, seus anônimos. As cidades são o espaço da diversidade, da loucura eterna que conduz a busca pela sobrevivência nossa de cada dia. Nelas, alguns engraxam sapatos, outros entregam a correspondência, outros escrevem cartas de amor, raiva, ódio, rompimento. Alguns escrevem histórias fantásticas, outros as contam para quem interessar ouvi-las possa. Alguns escutam sem falar, outros falam sem escutar, muitos são levianos ao falar da vida alheia, poucos equilibram os lados, as emoções.
Mulheres e homens limpam escritórios, escolas, universidades, preparam o dia trabalhando durante a noite, saem às ruas quando nelas já não há mais ninguém e voltam pra suas casas antes que as ruas recebam as primeiras vozes de um novo dia. Alguns dirigem táxis, ônibus, muitos nascem, tantos outros morrem, alguns sorriem, outros choram. A dualidade da vida urbana é algo impressionante que vai além de um mero estudo das sociedades.
Alguns se matam a luz do dia saltando de uma ponte ou de um precipício, outros preferem as sombras do quarto ou a solidão gélida e material dos banheiros. Muitos outros são os que tentam tirar a própria vida, mas são impedidos antes por alguns que ainda olham para os desesperados e percebem que nos dias de sol o número de suicídios é maior que nos dias frios. Isso acontece porque nos dias de sol a maioria das pessoas se sente mais feliz, sai às ruas, passeia sozinho ou com a família. Essa felicidade do mundo aumenta a depressão dos já bastante deprimidos. Já nos dias frios, a sensação é de tristeza generalizada para os que já tão tristes vivem, o que alivia a sensação de estar triste na solidão.


Nas pequenas e grandes cidades são muitos os que vendem o corpo, muitos os que prometem salvar a alma, muitos os que rezam em templos criados pelos homens e aguardam por milagres e curas duvidosas. Algumas mulheres leem as mãos, dizem enxergar o futuro e o que está por trás da alma de cada um. Há feiticeiras que enfeitiçam os homens na boca da noite, mulheres que traem os maridos, maridos que traem as mulheres. Muitas crianças choram, muitos velhos engolem o choro que ainda lhes resta depois de tanto por esta vida chorar e, quase sempre, morrem da mesma maneira que viveram – sozinhos. Alguns tomam café da manhã juntos, outros comem cada um em um horário, muitos nem comem. Espíritos rondam as madrugadas, os mais atrevidos saem à luz do dia, todos falam aos nossos ouvidos o tempo todo, os bons nos fazem olhar para além de nós mesmos, os ruins nos enterram em um narcisismo primitivo e enlouquecedor.
As cidades estão cheias de morte e vida, convivendo ao mesmo tempo, quase que no mesmo espaço, assim como ela está repleta de luz e sombra, ódio e amor, conhecimento e ignorância, brilho e banalidade. Tudo isso faz da cidade algo único, pitoresco, uma engrenagem que gira sem parar, uma estrada que consome a si própria, um ruído de carros, um silêncio de morte, um vai e vem de passos, um fascínio pela morte, um medo da vida. As desigualdades se multiplicam nas cidades, grandes ou pequenas, a indiferença ao outro cresce na mesma proporção, as formigas, os gatos e os ratos continuam por aí. O motorista, o faxineiro, o lixeiro, o porteiro, o mendigo, o contador de histórias, os espíritos de outrora continuam sem ser vistos. Assim seguem os anônimos desta selva onde, mesmo que não se note, há vida entranhada em cada pedaço de concreto.