segunda-feira, 30 de março de 2009

CONTO: 1º PARTE - O CORREDOR



Lá os dias eram mais longos, as horas mais subjetivas, os sons mais nítidos. O calor era constante, sufocante, parecia dilacerar as emoções, aumentar as dores. A calma trazia nítido o som do vento e do rio, que corria calmo, sábio, sem desviar-se do curso certo de seu destino, entregue lindamente a ele. Neste sítio ainda encontrava-se certo verde, restos de uma natureza morta, mais de morte matada que de morte morrida. Era um pedaço de chão pra lá do fim do mundo, onde a terra falava sozinha, andava à noite, movia estradas e cercas, roubava um pouco da vida dos que nela caminhavam todos os dias, desde o nascer do sol, até o cair sereno da noite.
Emma vivia neste lugar, ou esse lugar vivia nela. Nada mais que uma menina de 17 anos, de pele morena, lábios vermelhos e doces, rosto redondo tal como uma lua-cheia, gestos firmes, seguros, precisos, falas prontas, hábeis e certo narizinho empinado como se fosse dona de um mundo que ela mal conhecia. Mas, nesta camponesa que de camponesa parecia ter pouca coisa, o que mais chamava atenção eram os olhos. Pareciam distantes, demasiado tristes e melancólicos. Davam a impressão de que queriam e efetivamente carregavam o mundo, aquele mesmo mundo do qual Emma parecia ser dona. Ela trazia em si uma dualidade fascinante e misteriosa. Uma paixão que transbordava em seus atos e omissões. Era mulher e menina posto que nela coexistiam a maturidade da primeira e os encantos e traços juvenis da segunda.
Emma vivia em uma casa simples na encosta de um morro vivo de cores e cheiros. Para ela, a casa cheirava a leite fresco, daqueles ainda quentes, tirados pelo homem que cuidava da casa e se dizia seu pai, embora ela sentisse que ele não o fosse. Os quartos eram pequenos e aconchegantes. Também nada precisava ser muito grande em uma casa onde viviam apenas três pessoas: Emma, o homem e a mulher do homem, todos incrivelmente estranhos a ela. No entanto, a casa tinha suas partes grandes. Era grande a varanda, com vista para as impressões da paisagem possível ou inventada, e o corredor. O corredor era muito longo e Emma sempre tivera medo dele. Quando adentrava por seu espaço tinha absoluta certeza de que ele não tinha fim. Era escuro, tão longo e tão escuro. Vozes pareciam sair das paredes, tão marcantes, diáfanas e provocadoras que Emma tinha com elas pesadelos todas as noites. Mas ela não podia fugir do corredor, porque se pudesse já o teria feito. O fato é que depois de seu longo trajeto o corredor levava a uma sala simples, mal iluminada, tomada por um inebriante silêncio e por um característico cheiro de páginas compostas por letras e gastas pelo tempo. As paredes da sala eram carregadas de livros, transbordavam conhecimento.
Emma amava aquele lugar de todas as formas que alguém pode amar o outro, seja pessoa ou coisa, hábito ou ambiente. Na sala do final do corredor era como se todos escutassem apenas Emma. Ali, o mundo girava em torno dela em uma atmosfera na qual ela era a protagonista de tantas outras histórias. E entre as paredes daquela sala e o cheiro daqueles objetos quadrados e aparentemente frios, Emma conhecera o amor e todas as suas possibilidades, incoerências, desafios, tentações. Aprendera a lógica dos olhares, a dinâmica dos beijos intermináveis, a tentação do cheiro. Maravilhara-se com as intrigas, a trama do ciúme, a armadilha do desejo.
Também ali, no final do corredor, Emma fora apresentada a toda sociedade organizada sobre muita loucura, contradição, ambição, dramas, excessos, desorientações. Conheceu seus conflitos, a teia de relações que a condiciona e a aprisiona ao mesmo tempo. Leu sobre o poder que pra essa mesma sociedade se volta, movendo os homens, justificando os meios em nome do fim. Emma se assustou com crimes, profundezas, histórias de morte e glória, vida e miséria. Refletiu sobre as ideias de justiça, sobre a estética do belo, da arte, saiu do maniqueísmo simplista e superficial para conhecer o pluralismo complexo, decorrente da ausência de verdades absolutas.
Emma conheceu homens e mulheres atemporais, símbolos de medos e traumas. Redutos de abismos nascentes do sonho, dos mistérios do inconsciente, das vozes eternas e insistentes da alma. Mas Emma tinha consciência de que ainda havia muito por aprender, ela olhava para um livro sem desviar os olhos do resto da sala, ainda tomada por páginas que por ela ainda não haviam se deixado tocar.
O fato é que aquela sala pequena, lá no fim do corredor, já era parte de Emma. Ela passara tanto tempo dentro daquelas paredes que era como se cada uma delas fizesse parte de seu corpo, ajudando a compor a matéria de seu coração. Mas Emma não gostava do corredor e não havia livro capaz de fazê-la se ver livre dos seus fantasmas e das vozes a povoar seus sonhos.
O corredor era escuro demais e Emma nos seus devaneios mais remotos sempre tivera medo de ser engolida pelas arestas invisíveis e exatas da escuridão. No mundo em que ela vivia, nada ficava tão próximo do prazer de tomar em suas mãos um livro, com a sua bem contada história, quanto o terror para chegar até ele. Às vezes Emma se pegava pensando em como seria possível uma sensação tão boa decorrer de um medo tão provocante. E a menina perguntava com sua postura de dona deste e do outro mundo por que tinha que passar por aquele corredor angustiantemente longo para alcançar seu reduto da sobrevivência emocional de todos os dias.
Esta resposta, os livros ainda não haviam lhe dado.

M.V

domingo, 29 de março de 2009

A glória de um revolucionário


Acabo de assistir ao filme Che, do diretor Steven Soderbergh com Benicio Del Toro, Catalina Sandino Moreno, Rodrigo Santoro, dentre outros. O filme faz e muito bem o que se propõe a fazer: contar um pouco da história deste argentino que foi, antes de tudo, um revolucionário. A todo o momento, o filme confronta o mito e o homem. Ernesto Guevara é visto como o seu tempo o enxergou, um jovem intrépido, idealista, inteligente, acima da própria pátria que ele tanto defendia. Um revolucionário por excelência.
As questões estéticas também não são deixadas de lado no filme. São belas as imagens, dinâmica a forma de contar a história, intercalando passado, presente e futuro e emocionantes as falas de um Che que parece nunca ter se dado conta da dimensão que ele alcançou. A sensação que se tem ao ver o filme é que somos transportados desta nossa realidade, onde o espírito de revolução e mudança parece carecer de qualquer espécie de sentido, para outro tempo onde a revolução e sua lógica existiam, onde o clamor popular era ouvido, onde o sentido de tantas vidas estava em defender com inteligência uma causa. Além de tudo o filme também não deixa de ser um desafio para vários tabus hollywoodianos já que conta um pouco da história de um líder contrário aos EUA e cerca-se de atores latinos sendo filmado na língua certa, o espanhol, como não poderia deixar de ser.
Um acerto do filme é que ele se concentra na figura de Che, nas suas atitudes tão autênticas e surpreendentes, na sua forma de pensar a vida, nos seus valores, naquilo que pra ele era certo e errado. E por se concentrar na figura de Che, o filme não discute se o certo é o capitalismo ou o socialismo, se a revolução cubana foi legítima e justa ou não, se a luta deve ser armada ou pacífica, enfim, o filme não dá sequer margem para que o espectador pense nisso. O que o filme faz pensar e o que ele nos mostra é que sempre há justiça na busca de um sonho ou ideal, seja ele qual for, há justiça e glória na coerência dos atos, na sinceridade das palavras. Um dos momentos que dizem muito no filme é quando a jornalista que entrevista Che lhe pergunta qual é a principal característica que um revolucionário deve ter. Como quem sabe o que diz e como diz, Che responde, simplesmente, que um verdadeiro revolucionário se faz com amor. A jornalista pergunta novamente, incrédula. Amor? E Che com a mesma firmeza e categoria diz que não imagina um revolucionário que não tenha amor pela justiça, pela verdade, pela causa defendida por ele. É este amor do revolucionário o grande sentido de suas vidas. Sem ele não há porque continuar. E este amor fica mais do que claro no decorrer do filme, transborda em cada um dos guerrilheiros, em cada um dos pensamentos e movimentos, em cada um dos sonhos.
Talvez, essa seja a grande mensagem do filme, mostrar através da história do mito que se fez maior que o homem, a glória e a justiça que existe em lutar por um sonho, seja ele qual for. Aqui existe justiça, nos sonhos não há lugar para o certo ou errado, como nas posições ideológicas e geopolíticas. No caso de Che, ele ainda luta pelo que acredita sem abandonar seus princípios, sua moral, mantendo-se coerente até o final - principalmente quando ele se torna ministro e responsável por defender Cuba na ONU - em oposição não só ao capitalismo, mas a todo o resto de um mundo que não caminhou mais pra frente do que a própria Cuba pós-Revolução Cubana. Se Cuba não se fez o paraíso, o restante do mundo também não está tão longe do inferno assim. Neste sentido em que tanto capitalismo como socialismo têm suas falhas e injustiças, fiquemos com a verdade dos nossos sonhos e inspiremo-nos na força e na incrível irreverência de Che para saber lutar por eles e torná-los realidade.
Este é o mérito do filme, falar de Che mais como homem do que como mito, da glória de uma época, da coerência de um sonho, da verdade de uma revolução para os que de fato acreditaram nela. E mais ainda, este é um daqueles filmes que nos transporta, involuntariamente, para a sua história e que nos muda e perturba já que quando voltamos da viagem, carregamos a nostalgia e a inspiração para lutar por uma sociedade mais justa, ainda que capitalista!

Aviso aos navegantes: “A Guerrilha”, segunda parte de “Che” que trata dos 341 dias passados pelo guerrilheiro na selva boliviana, onde ele é capturado e morto, ainda não tem data fixada para estreia no Brasil. Mas vale a pena esperar!

Em Busca da Pintura Perdida

A Revista Bravo! , do presente mês de março, traz uma reportagem sensacional e sugestiva a respeito da presença de mais de cem obras de arte em Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, obra-prima lançada entre 1913 e 1927. Ao longo da reportagem nos deparamos com um Proust que largamente influenciado pelas obras de arte - algumas vistas apenas através de reproduções e fotografias - carrega-as de sentimentos, interpretações e associações com seus personagens mais emblemáticos de Em Busca do Tempo Perdido. Quando pensamos, por exemplo, no personagem mais conhecido da saga literária de sete volumes, Charles Swann, vemos que ele tinha dois interesses na vida: o pintor holandês Johannes Vermeer - um gênio da pintura já esquecido na época em que se passa o romance, início do século XX - e as mulheres. Até que ele se apaixona por um furação chamado Odette de Crécy que faz com que todas as mulheres para ele pareçam irrelevantes. O fato é que Swann entende e fala muito de arte na história por ele vivida, deixando clara uma correspondência com o próprio Proust, sempre muito antenado em matéria de arte. É de todo muito interessante trazer a pintura para as páginas de um livro, relacionar cenas tão subjetivas à história de personagens igualmente subjetivos, refletindo assim o próprio espírito da literatura de seu tempo. Mas o desafio não é apenas descrever uma obra de arte nas páginas de um livro e sim adaptá-la à literatura, ao desenrolar da história, ao drama dos personagens, dentro daquilo que Proust tem como essência: a semelhança e a aparência. Ainda não li Em Busca do Tempo Perdido, espero um fôlego quase eterno e uma ampla disposição de tempo, mas vou ler com absoluta certeza. Mesmo assim, pelo que já conheço da obra, sei que ela traz consigo verdadeiros manifestos sobre a arte. E que o próprio tema central do livro, a memória, é também o elemento principal que governa a relação de Proust com esta manifestação por ele tão citada.

Coloco aqui à disposição dos navegantes um trecho de Em Busca do Tempo Perdido citado na revista Bravo! , que dá um exemplo da costumeira comparação que Proust fazia entre seus personagens e os de telas famosas, relacionando obras de arte com situações, lembranças e momentos da sua obra literária, uma obra que poderia ser vista como uma busca da pintura perdida, não apenas de um tempo perdido!

A mulher pintada e a real

As Provações de Moisés, Botticelli


Detalhe de Séfora em As Provações de Moisés

“Essa semelhança conferia a ela uma beleza, tornava-a mais preciosa. Swann se acusou de ter desconhecido o valor de um ser que teria parecido adorável ao grande Sandro, e felicitou-se pelo fato de que o prazer que ele tinha ao ver Odette encontrasse uma justificação na sua própria cultura estética”

Proust neste trecho compara Odette de Crécy, paixão de Charles Swann, e Séfora, a moça de cabelos loiros e rosto visível na esquerda da tela As Provações de Moisés, do pintor italiano Botticelli.

“Para Proust, a arte é a relação contínua entre a imagem da tela e as lembranças pessoais que ela evoca em nossa mente.”
Jorge Coli, crítico de arte e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

sábado, 28 de março de 2009

Medo



Medo
E como explicá-lo
Não sei
Não posso saber de nada
Estou sozinha
Como na maior parte do tempo
Sinto tanto a sua falta
E sei que esse tempo não volta
Medo
De sair
Ir embora
Pra onde?
Agora?
Mas vou
Como quem chora
Vou muda
E assim permaneço
Como quem aprende
Que pra tudo se demora
Que pra tudo há de se ter a hora
Recebo minha liberdade
Mas antes de tudo meu conhecimento
Que anos de solidão me emprestaram
Sem prazo de entrega
Com marcas de sorrisos
E lágrimas
Medo
Do que me escapa
Do que me trai
Da irritação efêmera e desonesta
Do abismo
Do nada
Medo de me olhar
E não ver mais
O que fizeram de mim
A vida
Os livros
As paixões
As ausências
Tenho medo dela

Da escuridão

M.V

Leviano


Como te metes
Como te repetes
Como te entonteces
De preces
Faz como se quisesse
Faz como se soubesse
Faz como se voasse
Alto pelo oeste
Penso em como me perdes
Penso em como me esperas
Penso em como me olhas
Pelos disfarces de outrora
Acabo irritada
Amarga
Ansiosa
Esticada nas cordas
De teu ritmo
Nas notas do meu destino
No tempo
Infinito

M.V

A cor do silêncio

Qual seria o bom filme? Aquele que nos perturba com uma história bem contada? Aquele que reflete nossa vida, medos, sonhos? Aquele que faz pensar sobre isto ou aquilo? Aquele que muda nossa forma de ver as contradições e particularidades da realidade? Aquele que nos irrita, nos faz torcer? Enfim, um bom filme bebe de muitas fontes e traz muitos elementos para se constituir como tal. Nem sempre todos esses elementos se explicam, porque os melhores filmes não são um simples conjunto de elementos, eles são a construção de um novo conjunto de elementos.

Divago sobre essas questões, pois acabo de assistir a um filme que já deve ser do conhecimento de muitos dos caros navegantes. Seu nome, Cidade do Silêncio (Bodertown). Sua história forte. Sua lição elementar e, aparentemente, cada vez mais distante. De forma resumida, o filme é uma espécie de denúncia aos casos de violência, estupros seguidos de morte, contra mulheres mexicanas funcionárias de uma fábrica que produz computadores e é financiada por capitais norte-americanos. Como é comum na fronteira do México com os EUA, espalham-se as fábricas que usam mão-de-obra barata, explorando-a de modo a alavancar seus lucros e disseminar a miséria, não apenas econômica como também, e mais dolorosas, a miséria humana e moral. A história se passa na cidade de Juarez, no México, e os casos de estupro vão aumentando dia após dia. São sempre funcionárias da fábrica vítimas de uma escuridão que as perde de qualquer espécie de sentido ou reação. A suspeita é de que os crimes sejam cometidos não só por um único assassino, mas por vários, e os métodos são os mais variados e assustadoramente inacreditáveis. Uma jornalista de Chicago, Lauren Adrian, é enviada a Juarez para cobrir os crimes por lá cometidos. O fato é que, se no início ela é apenas uma jornalista interessada em um cargo de correspondente internacional, no final do filme somos apresentados a uma mulher totalmente transformada, marcada por uma história que se confunde com a sua própria história, com seus dramas, traumas e lembranças. Ela conta com a ajuda de um jornalista local, Alfonso Diaz, que insiste em falar sobre os crimes cometidos, mesmo vendo seus jornais serem arrancados todos os dias das ruas, mesmo lutando a cada segundo para que seu jornal não seja fechado. Ele assume seu compromisso com a verdade e ajuda a jornalista, antes de tudo, por amor.


Cena do filme Cidade do Silêncio

Mas o caminho não é fácil e por trás de todo drama, pode-se enxergar uma discussão a respeito do papel do jornalismo. Daqueles que podem contar certas histórias com coragem e responsabilidade, assumindo todos os riscos, perseguindo a verdade mesmo que esta se encontre tão perto da própria morte. Em meio às cenas fortes, somos defrontados com uma conversa de Lauren com o editor do jornal em que ela trabalha em Chicago. Esta cena diz tudo a respeito da desvantagem da verdade na lógica do jornalismo comercial. A matéria de Lauren por ter ido fundo demais, por ter apurado com toda fidelidade uma história, por ter trazido a tona o perfil de uma das vítimas da violência da região - Eva Jimenez, de apenas 16 anos, que sobrevive e vive para ver sua história contada e seus agressores punidos da forma mais humana possível - não pode ser publicada porque afeta interesses comerciais. Porque toca nas feridas sociais de casos que custam menos quando ignorados do que quando denunciados. Lauren não aceita se vender por um cargo que no começo ela tanto queria. E não se conforma que um homem que ela tanto admirava se curve ao interesse econômico com tanta naturalidade traindo a verdade, traindo a história, deixando que outros deem as ordens que só podem ser ditadas pela ética e consciência de cada um. Mas sabemos que essa é uma situação cada vez mais rara atualmente. A maioria dos jornalistas se vende. A maioria não tem coragem para assumir o peso e a responsabilidade da verdade, a maioria não gosta de enfrentar, se omite, carrega o silêncio. São poucos os que dão a vida pela verdade dos fatos, como acontece com Diaz - morto porque falou o que não deveria ter sido dito - porque são poucos os jornalistas que têm firmeza e responsabilidade com o outro. Lauren não permite que a história daquelas mulheres se perca. Para ela, são mulheres que não podem continuar esquecidas e renegadas apenas porque mexicanas consideradas irrelevantes, mesmo porque a própria Lauren começa a se ver como uma delas.
Passeata em protesto contra as mortes de mulheres em Juarez, México

Talvez, toda a insistência e firmeza de Lauren se expliquem em determinada cena do filme em que ela diz a Eva que abdicou da construção de uma vida pessoal em nome de uma carreira. Ela queria construir sua carreira e encontrava nisso todo o sentido para a sua vida. Não poderia deixar de acreditar nela porque se esse dia chegasse sua vida não teria mais sentido. Assim são os verdadeiros jornalistas, se a causa em que acreditam não faz mais sentido, também não faz mais sentido a sua própria existência. São raros, mas que estão por aí, denunciando, enfrentando, cobrando, dando voz àqueles que não têm voz, dando sentido a causas que se perdem na rede promíscua de nossos interesses podres. Só para citar um exemplo recente, estamos aí com o caso da empreiteira Camargo Corrêa sendo denunciado e exposto pelos jornalistas. Um caso grave que merece uma investigação séria e comprometida, atenta à verdade, sem medo de atrasos e autoritarismos dos mais variados.


Cena do filme Cidade do Silêncio


Sempre há o que denunciar, sempre há o que mostrar. Pessoas e fatos precisam de representação. A lógica comercial e os interesses são fortes, com certeza, é difícil fugir deles, mas ser difícil não é ser impossível. No fim, o que realmente importa é o que você quer fazer com a sua profissão. Há sempre duas opções: o caminho fácil e mais cômodo do silêncio, da conivência, que não traz glórias nem verdades, apenas mais do mesmo. E o caminho dos que exercitam cotidianamente o caráter e a inteligência, dos que encontram brechas aqui e ali para contarem a sua história, aquela que vale a pena. Aquela que ao menos legitima a luta de milhares de homens e mulheres que não podem terminar na frustração do esquecimento. E não me venham com os limites de nossa lógica capitalista ou com estrutura hierarquizada e jornalista iludido dizendo que vai mudar o mundo. Não se trata de mudar o mundo, muito menos de ilusão, é tudo uma questão de princípios, habilidade para dizer o que pensa e coragem, muita coragem. Mas isto já vem da história de cada um, dos valores de cada um, do significado e do sentido que cada jornalista quer dar a cada uma das suas palavras.


“Não há fortalezas que não puderam ser vencidas ao longo da história com o uso da inteligência e da perspicácia. Elas perdem parte de seu isolamento com o impacto da razão não com a violência de uma espada. A glória e a satisfação não nascem do silêncio do conformismo, mas das vozes coerentes e eternas da verdade.” (Maura Voltarelli)


*Filme: Cidade do Silêncio (Bodertown)
Gênero: drama
País: EUA
Ano: 2007
Direção: Gregory Nava
Com: Jennifer Lopez, Antonio Banderas, Sonia Braga

*A atriz e cantora Jennifer Lopez recebeu o prêmio da Anistia Internacional por ter produzido e atuado no filme. O prêmio, chamado "Artistas pela Anistia", foi entregue pelo Primeiro Ministro de Timor Leste, Jose Ramos-Horta.

sexta-feira, 27 de março de 2009

A medida de todas as coisas



"Dai, e dar-se-vos-á, no seio nos será lançada uma medida boa, e cheia, e recalcada, e acogulada. Porque com a mesma medida com que medirdes para os outros será medido para vós."

Evangelho de São Lucas, cap.6, versículo 38.


Neste meu espaço coloco a frase acima visando fazer uma reflexão sobre o homem - suas ilusões e relações - e também uma referência ao texto ousado e polêmico de William Shakespeare, escrito em 1604, Medida por Medida. Um texto que aborda temas como poder, corrupção e erros de conduta, ou seja, temas que permanecem atuais quatro séculos depois, reafirmando o espírito visionário e atemporal de Shakespeare. Trata-se de uma comédia de intrigas, mas com um terno desdém pelas misérias humanas em um mundo de tiranos que reprimem, mas que ao se depararem com seus abismos (e todos os têm) são transformados em meros objetos de pavor e fecham os olhos.
A construção da peça também mostra que há algo de servil no rigor e na coerência em uma realidade onde certas atitudes podem até se justificar de mil maneiras, mas nunca são de fato perdoadas porque vis. Com toda sutileza e intensidade shakespeariana, a peça aborda o fato de que, muitas vezes, o drama a que chegamos em nossa vida é tanto e tamanho, que imploramos pela morte. E quando esperamos já ter encontrado tudo, vemos que nossa própria morte por vezes nos é negada, e aí nos traem nossos mais pulsantes desejos.
O texto de Shakespeare nos ajuda a perceber que seguimos medindo uns aos outros, medimos a nós mesmos e seguiremos medindo porque ao ser humano parece que medir seja, de fato, a medida de todas as coisas. Embora medir seja inevitável, só lembro aos navegantes, com meu tradicional aviso, que não esqueçam de que também serão medidos na mesma medida em que medirem os outros, como nos lembra a frase que fica lá em cima. Neste sentido, esta postagem serve mais como um alerta. Não quer explicar o texto de Shakespeare - por si só um tanto distante e alheio a explicações – já que este não é o ponto central dela, falo da peça aqui como um objeto de referência à mensagem trazida no início. Tampouco a postagem quer dar lição de moral -posto que esta pretensão não me agrada nem um pouco - é mais, como dito, um alerta e uma constatação de nossos vícios e eternos companheiros desta passagem efêmera e inexplicável por esta que mede e é medida: a vida!
Complementaria - fazendo uso dessa relação frase, reflexão, teatro - dizendo que a nós medidores e medidos resta a sensibilidade de reconhecer a melancolia, a cumplicidade e a paixão próprias do teatro. A mensagem e a individualidade de uma música que traz a gratuidade e a exclusividade da lembrança. A intensidade e a satisfação pela espera de coisas pelas quais vale a pena esperar.
Enfim, nosso consolo é a ilusão de acreditar-nos capaz de medir o que não tem medida, porque se a vida é a medida o que a constitui no seu inexplicável é incapaz de qualquer forma de mensurabilidade. Eis o limite de nossas medidas, as coisas que medem, mas não têm medida, como um belo texto de teatro, tal como o de Shakespeare, como uma sugestiva música carregada de harmonia, tal como uma história que dos livros se revela bem contada. Tal como todas as formas de arte, em toda sua manifestação e mistério, irreverência e atrevimento, contemplação e deciframento. Eis o invisível, que existe mesmo sem ser visto, porque mede com a dignidade e a astúcia daquele que não tem medida. É justamente tudo o que não explicamos, tudo o que sentimos antes de pensar, tudo que nos toca antes de simplesmente influenciar. Não é a toa que o homem explica apenas aquilo que tem uma medida, é só isso que ele mede. Mas todo o resto, o resto que ele não mede, ele não consegue explicar, acaba explicado e medido. E assim, revela-se o diáfano rio de nossas limitações, de seres que medem bem menos do que são medidos pelos mistérios do outro lado da sua margem, pelas medidas infinitas e intocadas e, por isso mesmo, as mais fascinantes e ardentemente desejadas.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Passos


Ando
Sem saber
Sem sentir
Ando pra onde eu quiser
Pra onde você me levar
Sei que ando só não sei o porquê
De meu andar perdido
Quase mudo
Distraído
Mas ando
E como ando
Ando como quem quer tudo
E nada
Ando na velocidade de uma tempestade
Ou no movimento de uma brisa
Ando com a postura de quem sabe o que é
Com orgulho
Firmeza
Embora às vezes ande baixa
Triste
Pensativa
Mas ando
Mudo de lado
Recorto e colo meus passos
Até que vejo os teus
E anulo os meus
Seguindo a inconstância destes que
Se me guiam
Também me perdem
M.V

terça-feira, 24 de março de 2009

Toda essa intensidade...


Olho para dentro de mim mesma
procuro a experimentação
originalidade
Do que não quer ser o diferente
mas o novo
porque o busca dentro de si
Assim unir vida e arte
aonde está a vida se não está
a arte
Nenhum
lugar nenhum
e quando me volto
não sei mais de mim
Minha luz guarda
a sombra minha
não a tua
A tua
Não a minha
Meu espaço é a
medida
do sonho
do torto
desgosto
Desse tempo ansioso
perdi-me de ti
perdeu-se tu
de mim
E não voltaremos
a não ser fora daqui
onde não exista eu e tu
mas a
imensidão
de mim e ti
Enquanto isso
sussurre em meu ouvido
atrapalhe minha calma
me faça promessas
toda essa intensidade
é só o que me interessa
M.V

segunda-feira, 23 de março de 2009

Ver sem reparar

Nestes tempos corridos e cansativos tenho feito uma análise digamos mais atenta e minuciosa ao jornal Folha de S. Paulo em decorrência de trabalhos e mais trabalhos acadêmicos. Acabo de fazer a análise de um artigo publicado hoje, 23 de março de 2009, pela presente Folha de que vos falo e corri para cá este meu espaço dividir com os caros navegantes um pouco de minha, eu diria, irritação com um artigo, que na minha modesta opinião - e ela é só minha, enfim, algo que acredito possuir de fato - perdeu todas as chances que tinha de ser um bom artigo, como de fato poderia sê-lo.
O artigo do jornalista José Maria e Silva que pode ser lido aqui toca em um ponto polêmico: a legalização das drogas e a política de redução de danos - que gera discussões das mais variadas e por envolver questões complexas deveria ser analisado com mais cautela - o que, definitivamente, não se faz notar no presente artigo. José Maria defende e sustenta sua opinião com base em seus argumentos, até aí nada de novo em se tratando de um artigo. O problema começa no "como" ele defende e sustenta a sua opinião. José Maria faz uso de comparações absurdas, mistura temas como o "Manifesto Comunista" com a legalização das drogas e a política de redução de danos, comparando-o a uma "Declaração dos Direitos dos Usuários de Drogas", que ele critica de maneira enfática. Fácil ver que uma coisa não tem nada a ver com a outra, não servem para serem usadas a título de comparação. Seguindo a lógica, contrapõe "arauto de ciência de ponta" com "entulhos do Maio de 68".
Em meio a essas comparações vazias de lógica e critério, senti no texto uma falta de humanidade e uma imensidão de preconceitos. Não se trata de defender o usuário de drogas, eles não estão totalmente livres de culpa, mas também não precisam ser atacados de maneira generalizada e um tanto quanto equivocada. Nossos problemas imploram por entendimento e não por atitudes que os reprimam. O autor limita consideravelmente sua capacidade de análise a respeito do tema, pois comete um pecado mortal ao se perder daquela que contempla a quem sabe encontrá-la com mais equilíbrio e perspicácia: a simples capacidade e sensibilidade de perceber que tudo tem um outro lado e antes de tomar partido de um ou de outro, em uma situação específica, é preciso analisar muito bem todas as variáveis que compõem esta dada situação. Variáveis tão multiplas e tão inexatas.
Termino citando meu querido Saramago - "Se podes olhar, vê, se podes ver, repara”. Minha impressão é de que José Maria viu, mas não reparou e assim ficou apenas no dito pelo não dito.

Os pontos de Elio Gaspari e os "des" de nosso Brasil

O texto de Elio Gaspari deste domingo, 22 de março de 2009, na Folha de S. Paulo, está como sempre criativo e especialmente irônico. Faz rir e pensar, com a mesma sinceridade desconcertante que alguns acontecimentos recentes acontecem na crônica, especialmente original, de nosssa realidade, que consegue se superar em absurdos para os quais só mesmo recorrendo ao riso e à ironia. Por isso, fica aqui desde já minha contribuição ao amigo navegante com alguns trechos do, como sempre inteligente e perpicaz, Elio Gaspari.

Entra e sai

Pode-se entender melhor a qualidade da base de apoio do governo quando se vê que em menos de um mês aconteceram duas coisas:
1) O deputado Eduardo Cunha, um parlamentar de real grandeza, defendeu a saída do senador Jarbas Vasconcelos do PMDB porque ele disse que uma banda do partido gosta do alheio.
2) Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, o lord keynes do mensalão, foi a Brasília para cabalar o seu retorno ao partido, do qual foi expulso.
O melhor seria chamar Jarbas para o PT, mandando Delúbio para o PMDB. Pode até dar na mesma, mas anima o bailado.

Ponto para Elio Gaspari. Já que o bailado está realmente animado e especialmente alterado, eu acrescentaria que vivemos no tempo da "farinha do mesmo saco" com algumas excessões é claro, não seremos levianos e generalizadores, Elio Gaspari não o seria.

El Deportador

Negociando com o arrozeiros de Roraima, o comissário Tarso Genro deve perguntar quantos deles gostariam de ir para Cuba.

Ponto para Elio Gaspari novamente já que nosso Ministro da Justiça, Tarso Genro, sempre consegue um jeito excêntrico e contraditório de resolver questões essenciais, como se apresenta o problema dos arrozeiros que, na minha opinião, demoraram pra sair. Cadê a definição de prazo? De nada adianta defender os interesses dos índios se na prática não há definição de "pesos e medidas" porque apenas essas parecem surtir efeito em alguns casos e com algumas pessoas. Agora, pra isso, precisamos de um pouco mais de coerência e senso de realidade daqueles que nos representam. Coerência já!

E falando em coerência o Ministro da Fazenda, Guido Mantega, pronunciando-se na semana que passou a respeito da contração do PIB no último trimestre, disse que o cenário para este ano é razoável, pois "ficaremos distantes de um déficit técnico".
Citando Gaspari:

Meu leitor o termo déficit técnico não existe. O que existe é o termo recessão, que ocorre tecnicamente quando há dois trimestres seguidos de crescimento negativo. Natasha* acredita que o doutor Mantega está com déficit técnico. De que, ainda não sabe.
Seu colega Eremildo, de quem ela não gosta porque é um idiota, suspeita que o Banco Central passou a remarcar as previsões de crescimento do PIB pela técnica das liquidações do varejão. Baixou uma previsão feita por seus sábios de 1,2% para 0,59%. O cretino acredita que daqui a pouco o BC anunciará um PIB de 5, 99% em oito prestações anuais.

Ponto duplo para Elio Gaspari. Esta que traça estas mal traçadas linhas dispensa comentários neste ponto. Para resumir o absurdo o caracterizarei com algumas palavras tais como desserviço, desrespeito, desumanização, descalabro e quantos mais "des" couberem nesses contantes deslocamentos morais. Haja "des" para tanto desprepararo e descaramento.

* Natasha é uma personagem criada por Elio Gaspari nos textos em que este fala de economia. Assim como Eremildo, o idiota. Ambos representam um pouco dos brasileiros que acabam enganados e ludibriados com os números, dados e termos de uma economia que não se explica para a maioria.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Tempestade...


A LIBERDADE DO SONHO
O DESCANSO DO PENSAMENTO
A ATRAÇÃO DO PROIBIDO
A LATÊNCIA DO DESEJO
A PROMESSA DO TEU BEIJO
A ANSIEDADE DO HOJE
O MEDO DO AMANHÃ
A NOSTALGIA DO VIVIDO
O ENCANTO DO INESESPERADO
A FRAGILIDADE DO INSTANTE
O CANSAÇO DOS DIAS
A BRUTALIDADE DOS SENTIDOS
A TRIVIALIDADE DO COTIDIANO
A EFEMERIDADE DO TEMPO
O DESAFIO DA CONQUISTA
A EMOÇÃO DA PALAVRA
A INSATISFAÇÃO DA ALMA
A VONTADE DO DIFERENTE
A ARTE DA EXCEÇÃO
A CULTURA DA REGRA
A ILUSÃO DO MESMO
A DINÂMICA DO OLHAR
A VONTADE DE MERGULHAR
O ÍMPETO DE EMUDECER
A LÓGICA SEM LÓGICA DE AMA
R
M.V

DitaDURA e ditaBRANDA

Recentemente, o termo “ditabranda”, trocadilho proveniente de ditadura, ganhou espaço na mídia brasileira em decorrência de um editorial publicado pelo jornal Folha de S. Paulo. O uso do termo provoca uma discussão sobre o grau totalitário que perdurou durante o Regime Militar no Brasil (1964-1985). O trocadilho não é de todo errado, muito menos se faz desinteressante, carrega um sentido de originalidade, mas deve ser visto com cuidado. A ditadura que se instalou no Brasil foi gradual, assim como muitas outras que semearam o horror pelo mundo afora. Só para citar alguns exemplos, o Nazismo começou de maneira tímida e só depois se fez conhecer como um dos regimes mais abomináveis da história. A Revolução Francesa foi uma em várias, realizou-se em fases e uma delas ficou efetivamente conhecida como “Período do Terror”, sob o comando dos Jacobinos, onde a crueldade era mais visível e a guilhotina ocupava seu lugar de protagonista no festival de cabeças cortadas.
A ditadura no Brasil começou, para usar a ótima sequência e caracterização de Elio Gaspari, de forma envergonhada. No seu início, algumas garantias democráticas ainda persistiam em meio às tentações autoritárias. Era como se a dureza da ditadura estivesse com vergonha de se impor, daí ditadura envergonhada. Mas em 1968, com o AI-5, a ditadura deixa de ser envergonhada e passa a ser a ditadura escancarada. Ela mostra toda a sua crueldade, desrespeito à dignidade humana, cerceamento das liberdades individuais e de expressão, bem como a abolição de todas as garantias democráticas. Depois desta fase destes que a história decidiu chamar de “Anos de Chumbo”, tivemos uma ditadura encurralada, cercada por ameaças nem sempre visíveis e por uma oposição que começava a tomar forma novamente, mas mesmo assim uma ditadura que continuava firme na sua desumanidade, de início - é bom lembrar já que a boa história agradece - patrocinada por boa parte da sociedade civil (não esqueçamos, o golpe foi um Golpe Cívico Militar). No entanto, como tudo que começa tem um fim, a ditadura de encurralada passou a derrotada! Eis nossa gradual ditadura política, com suas fases, suas peculiaridades, sua variações que, no entanto, não diminuem, muito menos justificam todo seu horror!
De todo esse pensamento a respeito de parte de nossa história, concluí que nenhuma ditadura pode ser considerada branda. Por definição não há brandura nas ditaduras, assim como não há explicação razoável para os efeitos de uma guerra que mata aos milhares. São coisas para as quais não cabe um meio termo, tão buscado em muitas de nossas relações sociais. Veja bem meu caro navegante! Ser gradual é uma coisa, faz parte do próprio processo histórico- político dos fatos, de suas causas e conseqüências. A história é gradual, mas dentro dessa gradualidade existe o justo e o injusto, o duro e o brando. Não vejo problemas no uso do termo “ditabranda”, como disse no início, achei-o original e sugestivo, apropriado para comparações entre a época de lá e de cá, ilustrando eventos de cerceamento e autoritarismo parecidos com os da ditadura, mas que acontecem em plena vigência da democracia (ou do que acreditamos ser a plena vigência da democracia). Mas, com respeito à história e às suas sutilezas e verdades naturais, acho de todo necessário olhar para o termo com cuidado e com a amplitude de pensamento daqueles que percebem que a gradualidade de uma ditadura não a redime de seu horror.
Em poucas palavras uma ditadura é sempre dura, a diferença é que às vezes esta dureza está vestindo roupagens de vergonha, de escancaramento, de encurralamento ou de derrota! Mas é tudo uma questão de ponto de vista, um pouco de história e uma dose de criatividade. Esta última nosso último refúgio para tratar de tantos absurdos e barbaridades, como a transformação de um ministro em censor e todas as decorrentes feridas desta transformação na liberdade de imprensa e na liberdade individual.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Letras


Gosto dos teus olhos
E por isso não resisto em olhá-los
Gosto da tua palavra
E por isso faço-me lê-la e escutá-la
Gosto da tua voz
E por isso deixo que ela me cale
Gosto do teu cuidado
Da tua timidez
Da tua sensibilidade
E não me importo em gostar
Visito-te em sonhos
Mudos
Inesperados
Onde te toco
Te imagino
Te faço meu
No encanto do inesperado
E não me assusto
Sou humana
Passível de desejos e paixões
E se não acho certo
Também não vejo o errado
O justo e o injusto são apenas o justo e o injusto
Mas vieste
Já não me reconheço enquanto causa ou efeito
E disso tudo não posso saber nada
A não ser que eu
Nos meus mais profundos delírios
Não te esperava
M.V

Convite à filosofia: Democracia e Mídia

Marilena Chauí
Marilena Chauí, filósofa, professora de filosofia moderna e contemporânea na USP (Universidade de São Paulo), secretária de cultura do governo de São Paulo durante o mandato da ex-prefeita Luiza Erundina (1988-1992) e autora de vários livros como: O convite à filosofia, O que é ideologia, A Nervura do Real, Espinosa: Uma Filosofia de Liberdade, Simulacro e Poder, dentre tantos outros, trouxe um pouco de sua fala carregada de ideias e reflexões para os alunos da PUC-Campinas em uma palestra realizada no dia 18 de março de 2009. Marilena Chauí mostrou uma constante linha de raciocínio, um pensamento ordenado e abrangente, uma visão total e, ao mesmo tempo, particular, específica. O tema de sua palestra foi: Mídia e Democracia. Sobre estas Marilena falou criticamente, valendo-se de argumentos coerentes e de exemplos presentes em nossa realidade.

Democracia

De maneira geral, Marilena iniciou sua fala com uma explicação sobre a democracia, enumerou suas características, apontou suas contradições, seus conflitos internos e não se esqueceu dos obstáculos reais da própria organização da sociedade que impedem a existência, de fato, da democracia em nosso país. Falou de liberdade e igualdade, democracia liberal e social, do desafio de operar conflitos na contradição de nossa sociedade, da ideia dos direitos das minorias e da necessidade que estas têm de reivindicação. Mostrou que as eleições não são, como pode parecer, um sinal da alternância do poder, mas, antes de tudo, um sinal do vazio característico deste que o torna pertencente ao povo - o grande soberano da democracia. Marilena caracterizou a sociedade em que vivemos como patriarcal, violenta – no sentido em que trata os indivíduos como coisas usáveis e descartáveis – clientelista, burocrática, hierárquica, repleta das carências de muitos e inundada dos privilégios de poucos. E depois afirmou quase que ironicamente: está difícil a democracia “hein”! Seguiu com a importância de repensar políticas sociais que assegurem os direitos dos cidadãos, com a denúncia do alargamento do espaço privado e o encolhimento do público e com a transformação da práxis política em mera técnica, reduzindo o ato político à administração e ao voto.

Mídia

Depois desta primiera introdução, Marilena inicia uma reflexão sobre a mídia na atualidade. Basicamente, segundo ela, vivemos em um mundo onde os meios de comunicação ditam as regras e exercem o controle de tudo e todos porque possuem, dentre outras coisas, os poderes econômico e ideológico. São empresas privadas, regidas pelo capital e marcadas por uma forte concentração – oligopólios que beiram o monopólio. A mídia que se nos apresenta hoje, é a mídia que fabrica e vende a ideologia da competência, na qual não é qualquer um, em qualquer lugar que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro, ou seja, é uma ideologia que dá forma a uma das mais perversas formas de opressão e divisão social entre os que sabem e por isso mandam e os que não sabem e por isso obedecem. Simples, prático e terrível, eu acrescentaria. Marilena nos conduz a uma mídia que instala o terror, na medida em que generaliza a culpa, presume os fatos, colocando todos em uma mesma situação de domínio e manipulação que chega a ser vista por alguns como uma atitude ética (tais são nossas inversões de valores como já diria Erasmo de Roterdã no seu atualíssimo Elogio da Loucura). E neste cenário, Marilena fala do profissional da mídia que se tranforma em formador de opinião, aquele que é considerado o grande especialista, que julga, manipula fatos e humilha entrevistados - tudo para fornecer a versão do ocorrido e não o seu relato por parte de um personagem diretamente envolvido neste. Mas aí é que entra um dos pontos principais da fala de Marilena Chauí: a anulação do outro, do público, da opinião pública, a destruição de seu corpo e sua alma - facilmente transformados em entretenimento e espetáculo - em meio à valorização do privado em detrimento do público. O que importa é o que você sente e não mais o que você pensa, já que a mídia não vê o outro como um ser que pensa e sim como alguém incapaz de falar sobre si ou sobre um fato, precisando se ater à versão do outro, do especialista dito acima, para aí sim formar uma opinião.

Desconstrução da opinião pública e poder desmesurado

E dessa forma Marilena diz que o jornalista destrói a opinião pública em um processo contínuo de alienação e esvaziamento de qualquer espécie de sentido e lógica, ao mesmo tempo em que o jornal vai deixando de lado a informação para aderir à opinião e o jornalista se vê tentado à proposta cada vez mais atraente de criar, ele também, a própria realidade. O noticiário vai se transformando em novela e a novela em noticiário, a TV assume a sua posição de SUJEITO que tudo sabe e controla, sentindo-se cada vez mais confortável nela, em meio ao OBJETO que fala à câmera, OBJETO que, na verdade, deveria ser o sujeito desta relação, mas que, iludido, é destituído dessa condição. Diante da destruição evidente da opinião pública, a mídia inventou a manifestação de sentimentos e fez vir à tona os gostos, as predileções, o pessoal, que como o próprio nome diz é pessoal, da pessoa, tão claro, tão descontextualizado. Sinais evidentes do poder desmesurado da mídia, da capacidade mágica dos meios de comunicação de fazer acontecer o mundo. É o famoso eu faço e aconteco! A mídia cria realidades, não só a realidade, e diante deste poder supremo ela se julga Deus, incorporando com tamanha eficiência sua onipotência, onipresença e oniciência.

Esta sociedade ainda precisa destes jornalistas?

É a sociedade imersa na cultura do narcisismo, na qual para que algo seja aceito como real não precisa ser verdadeiro, basta parecer crível por aqueles que não transmitem mais informações e sim preferências. Sociedade da destruição do que nem sabemos se temos, da lógica do descartável, da indústria cultural, do fácil, do passivo, do que anula e usurpa nosso lugar, nossa dignidade. Em meio a tudo isso, resta-nos conviver em uma sociedade que de democrática não tem nada, onde ressuscitamos o velho coronelismo dos tempos da república velha , a do café com leite, dando a ele apenas uma nova roupagem: a eletrônica. E nisso tudo onde será que fica o verdadeiro jornalismo, o verdadeiro jornalista, a relação equilibrada entre mídia e democracia na qual uma pode nutrir-se da outra de forma saudável e complementar? Será que esta sociedade, que se apresenta em constante e enlouquecido espetáculo, precisa de jornalistas que já não se sabem mais se causa ou consequência e acabam servindo como produtos desta descontrução da opinião?

Convite à filosofia

Termino com as perguntas já que a fala firme e densa de Marilena não me deu muitas respostas, no lugar delas, completou-me com dúvidas e inquietações que ficam por meu pensamento em meio às inegáveis sutilezas e provocações desse seu claro convite à filosofia, neste caso, uma filosofia da democracia e da mídia, ou melhor, da ilusão da verdadeira democracia e da coerente mídia.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Do silêncio e da grandeza de um amor


O verdadeiro amor é aquele que se guarda e espera sua realização. É aquele que te provoca as angústias mais inquietas e os prazeres mais enlouquecidos. É aquele do tédio, do conflito, da transformação. Também é o das eventuais deslealdades que se dividem com as lutas, doenças, insanidades. É o amor das cartas, das palavras que saltam tímidas ou impetuosas do coração. É o amor dos beijos intermináveis, dos sonhos arrebatadores, das emoções incomparáveis. Acima de tudo, e de maneira tão original, o verdadeiro amor é o que resiste ao tempo e não importa em existir em silêncio, em ser em silêncio, maior e mais dolorido do que todos os outros. Porque o verdadeiro amor tem os mesmos sintomas do cólera, como nos conta com tamanha perfeição e humanidade Gabriel García Márquez em O amor nos tempos do cólera. Este não é um simples livro sobre o amor, é um tratado sobre o amor e todas as suas possibilidades através da paixão do telegrafista, violinista e poeta Florentino Ariza por Fermina Daza.

O livro reconstrói os hábitos e preconceitos da sociedade colombiana de 1880 a 1930, passando pelas guerras intermináveis e pela epidemia de cólera. Mas, antes de qualquer outra coisa, ele mostra as infinitas maneiras através das quais um homem pode amar uma mulher. E tudo isso nos chega com toda riqueza de uma linguagem literária descritiva e emocionada, metafórica, rica e carregada de sutilidades. A história começa do fim e depois se faz contar desde o início, assim como o amor de Florentino Ariza e Fermina Daza que começa de fato na reta final de suas vidas físicas e mortais, mas no início de sua existência espiritual e plena, onde nada perece diante da eternidade de nossa alma e da infalibilidade de nosso destino.
Como o livro é tocante! E que lindas, sensíveis, bem descritas as noites de amor de Florentino com tantas outras e de Fermina com seu marido, Juvenal Urbino, onde os corpos não estão ali, mas permanecem pelo seu calor de sol nas trevas, onde a escuridão se amplia na mesma medida que a intensidade da respiração e torna-se inevitável desaparecer nesta mesma escuridão.
O livro nos traz uma quietude pensativa que dá muito o que pensar e nos ensina a única coisa que vale a pena saber sobre o amor: que à vida ninguém ensina. Que ele é feito de algumas felicidades tão fáceis que às vezes não podem durar muito tempo, e do qual as personagens principais são aquelas pessoas que você sente antes de ver. Entendemos, vítimas de um encanto arrasador, que segurança, ordem e felicidade, não passam de cifras imediatas que, uma vez somadas, configuram um quase amor, mas não o amor.
E o que dizer de Florentino Ariza, o homem que perde a chave para abrir o cofre do próprio amor e, por isso, o guarda só para si, negando-se a contá-lo até mesmo para a única pessoa que, ao passar pela sua vida, conquista o direito de sabê-lo. E como o define sua grande e impossível amada, Fermina Daza, um homem de passagem, que era como se fosse uma sombra de alguém que ninguém, nem mesmo ela, jamais conhecera.
O amor é uma coisa à parte à vida, no sentido que é uma outra vida, na qual se percebe que nada deste mundo pode ser mais difícil que este tão dito e buscado amor.
A história cheia de encontros e desencontros, lembranças e culpas, esperança e resignação vai se desenrolando sem que o leitor perceba, e este vai se emocionando e pensando em tudo, tão involuntariamente que se assusta, tão espontaneamente que se descobre. Pensa na própria vida, nos seus amores, ou no seu grande amor, impossível, distante, ou, próximo, real, mas pensa, acima de tudo, naquela época única da vida onde amamos melhor porque amamos sem pressa e sem excessos. Época em que algumas provas mortais desta nossa vida já não se fazem tão importantes, porque já atravessemos o rio que a desenha e nos colocamos na outra margem.

E os detalhes dessa linda história de amor, prefiro que o livro lhes conte, eu não os traduziria tão bem!

sábado, 14 de março de 2009

Em breve...

O amor nos tempos do cólera de Gabriel García Márquez, aqui no Impressões. Aguardem!

Uma frase para uma infinidade de pensamentos

Bertold Brecht


"Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas nao se dizem violentas as margens que o oprimem".

Bertold Brecht (dramaturgo, poeta e encenador alemão do séc. XX)

Uma vez, em muitas das maravilhosas aulas de história que tive durante o colegial, meu eterno e mais querido de todos professor de história - da vida, do amor, da filosofia, da geopolítica desse mundo confuso e desorientado, do amor e de todas as suas possibilidades - falou desta frase como sendo a primeira que ele teria pixado. Nunca esqueci a frase, tampouco a história de ela ter sido objeto de sua primeira marca urbana. O fato é que esta frase - bastante conhecida - ressoa constantemente e involuntariamente nas minhas lembranças e nos meus momentos, sempre me impressionando muito, desde a primeira vez que a ouvi ainda jovem, com muitas das ilusões e sonhos que ainda tenho.
Essa frase diz tanto...
Ela fala sobre esta relação tão tênue entre opressor e oprimido, uma realidade que marca grande parte de nossa história. Leva-nos a pensar como, muitas vezes, somos injustos com os fatos, levianos com a verdade, apressados na tomada de decisões, nos julgamentos.
É muito mais fácil ver o rio como violento, impetuoso, mas o que dizer das margens, por que não olhar as margens? Elas estão lá esmagando as águas, impondo um limite, uma fronteira, passando a ideia de controle, de posse. Quantas vezes não julgamos o rio e nos esquecemos de olhar para as margens, quantas vezes não nos confundimos em relação a quem realmente nos oprime, quem nos limita, quem nos condiciona? Essa frase mostra como tantos são injustos com outros tantos, chega a dar vergonha quando vemos que nesta realidade absurda os verdadeiros culpados são totalmente protegidos pela sua nem sempre clara visibilidade, e os inocentes sempre são os estereotipados, os agredidos, os torturados, os violentos. Como meu professor também dizia, aqueles que não passam de caso de polícia.
A cada dia percebo com mais nitidez, que para falar é preciso - antes de tudo - saber pensar alto, ver enxergando de fato, escutar ouvindo de fato, já que tantas vezes vemos sem enxergar e escutamos sem ouvir. Atentem para as margens meus caros, em alguns casos, o rio pode até ser violento por natureza - não se pode generalizar e afirmar verdades universais que às vezes acabam desmentidas pelo irrevogável passar do tempo – mas, na maioria das vezes, o rio torna-se violento e assume de forma magnífica sua impetuosidade porque as margens limitam sua extensão, anulando sua liberdade de escolha e oportunidade, e não lhe deixando outra opção!

Urgências, ausências, excessos

Desenho de José Roque Neto


Estou ficando insensata e cada vez mais apaixonada
Estou me entupindo de excessos
Estou desafogando minhas lágrimas
Estou gritando sozinha na confusão da minha casa

Escrevo o que me passa

Estou imaginando você com essa minha insistência que não para
Estou assumindo meus limites, minha sutil perversão
Estou enlouquecendo entre livros, sons, canções
Estou inebriando-me de ilusões

Escrevo o que me cala

Estou fora do meu estreito, dentro do meu quintal
Estou esperando seu reflexo no espelho do banal
Estou personificando-me em meus dramas
Estou vestindo as máscaras de minhas contradições e orações

Escrevo o que me entontece

Estou à mercê dos teus ventos, dos teus versos
Estou fora de mim, de ti, do tempo
Estou cada vez mais irritável e prolixa
Estou cada vez mais sonhadora e cheia de amor

Escrevo o que não conhece tempo, nem rotina, nem silêncio...
M.V

quinta-feira, 12 de março de 2009

E a literatura vai ganhando mais espaço

Hoje pela manhã ao acordar, como faço por hábito, liguei a televisão para ver algumas notícias do começo do dia no Bom Dia Brasil (telejornal da Rede Globo) e com muito prazer e surpresa vi uma reportagem de Jorge Pontual falando sobre os “refugiados da crise” – cidadãos americanos que desempregados se veem obrigados a abandonar sua própria casa já que não conseguem mantê-la. Mas tais refugiados não foi o que mais me chamou atenção na reportagem, e sim a comparação destes com uma situação já presente nas páginas da literatura americana e, inclusive, aqui no Impressões. Falo da menção na reportagem da obra As Vinhas da Ira, de Steinbeck, com a exibição de algumas imagens do filme, baseado no livro, e dirigido por John Ford. Demonstrando criatividade, o repórter viu todas as semelhanças encontradas entre a história dos refugiados da crise financeira atual e a história dos refugiados de sua própria terra, retratada tão bem por Steinbeck em seu livro. Gostei de ver a literatura ganhando espaço no jornalismo, que ela faça parte dele com cada vez mais frequência, trazendo a riqueza de seu texto e a sensibilidade de sua percepção!

segunda-feira, 9 de março de 2009

Uma ilha de lucidez em um oceano de descrença

A Aula Magna da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) - que abre oficialmente as atividades do ano letivo de 2009 - contou com a presença do senador Pedro Simon (PMDB-RS), um dos poucos que defendem a já tão desvalorizada e esquecida bandeira da ética no senado federal em Brasília. O senador - que se formou em Direito pela PUC-RS, foi professor na Universidade Caxias do Sul e especializou-se em Economia Política e Direito Penal na Universidade de Paris, Sorbonne, além de ter feito estudos sobre Direito na Faculdade de Direito em Roma, Itália – mostrou, ao longo de toda sua fala, um tom de preocupação e seriedade em relação ao presente e ao futuro, tom este que tanto faz falta a grande parte de nossos representantes políticos.
Ao longo da sua exposição na Aula Magna, Pedro Simon falou sobre muita coisa, deu lições, emocionou, fez-se merecedor das palmas da plateia em vários momentos; e mostrou toda sua lucidez e discernimento ético em relação ao que deve e pode ser feito. Cito aqui alguns pontos de sua fala - de muita valia a todos aqueles que ainda acreditam no Brasil - não só para que conheçam um pouco do que disse o senador, mas também e, principalmente, para que não se sintam tão enganados, desmotivados, anestesiados e descrentes com o festival de horrores a que somos apresentados todos os dias. Ainda resta alguma lucidez em toda essa falta de coerência!

Pedro Simon
Família

"A família de ontem não é mais a mesma de hoje, as coisas, as relações, mudaram muito. A forma como encaramos a vida atualmente também mudou. Hoje ela é um tanto desorientada e excessivamente televisiva. E há qualquer coisa de doloroso nisso quando vemos que a família já não é mais aquela família e a escola já não é mais aquela escola."

Escola

“Na escola atual instruir já é difícil, educar então...”

“A formação básica tem uma grande importância diante da ideia de que o cérebro se forma até os cinco anos, portanto, é nessa fase que as coisas que acontecem ou não, realmente importam no que diz respeito às consequências que virão mais a frente.”

Televisão

“Um mundo onde se janta assistindo TV ou Jornal Nacional, não sei o que é pior. O papel da televisão atualmente é o de entrar na formação da sociedade, e como tudo que é ruim se espalha, estamos diante do fenômeno da exportação de novelas brasileiras para o mundo todo. Diante disso, faço uma pergunta: qual é a formação da sociedade brasileira atualmente?”

“Eu tive uma séria discussão com o Lula em relação à criação da TV Brasil por decreto. Além do autoritarismo, não houve nenhum preparo ou planejamento. O resultado está aí na audiência da TV Brasil: zero. É o Brasil das inconsequências.”

Impunidade

“O grande problema do Brasil é a impunidade. Mas o Brasil é diferente dos outros lugares porque aqui ninguém é preso, a não ser pobre e ladrão de galinha, que não sabe nem nunca ouviu falar na justiça, só conhece a polícia. O Congresso reclama, faz um alvoroço quando a prisão de um rico - de pijama na porta de sua casa - aparece na TV, mas isso acontece todo dia com o pobre, é o que acontece todo dia.”

“Precisa-se acabar com a impunidade, vamos nos respeitar.”

“Certa vez, ocorria uma discussão no senado envolvendo um senador que, entre outras falcatruas, também estava envolvido em um roubo de galinhas, algo assim. Tive que ir à tribuna dizer que, neste caso, ele realmente precisava tomar cuidado porque roubo de galinha no Brasil é perigoso.”


“Para acabar com a impunidade é preciso, em primeiro lugar, acabar com o foro privilegiado, afinal, quantos foram condenados no Supremo? Nenhum. Depois é preciso tomar providências como diminuir o número de partidos. O Brasil não pode ter 20 partidos, isso é uma distorção. A fidelidade partidária também deve ser cobrada e não adianta dizer que vai sair do partido porque nele existe um bando de vigarista, é preciso seriedade para cobrar. A saída é marchar para um sistema democrático onde haja obrigatoriedade no que se tem que fazer. Imagine se o que aconteceu nos EUA com os assessores de Obama - que simplesmente foram destituídos dos cargos diante de acusações de sonegação fiscal – aconteceria no Brasil. Aqui isso soa como piada.”

“Eu estou apresentando um projeto de lei ao senado federal segundo o qual ficha-suja não pode ser candidato, e que aquele que tiver um processo deve ter esse processo julgado em primeiro lugar, senão antes das eleições até no máximo antes da posse. Enquanto não houver julgamento em caráter definitivo continua-se atuando na vida pública e recorre-se aqui, ali, às milhares de instâncias que fabricam a impunidade.”

Mais do mesmo

“No Brasil não conseguimos sair dos ciclos – dos usineiros, cafeicultores - os ciclos daqueles que mandam e fazem tudo por conta própria, sem que ninguém mais fale, participe ou manifeste a sua opinião. E nós continuamos assim, políticos cada vez mais isolados do restante da sociedade.”

Lula e o PT

“Com a primeira vitória do Lula quem ganhou foi o Duda Mendonça com a sua fabricação do Lulinha paz e amor e isso não pode, não se vende um candidato como se vende uma máquina, uma pasta de dente.”

“O PT era uma ótima oposição, ele foi ensinado muito bem no que diz respeito a ser oposição, mas também devia ter sido ensinado a estar no poder, do outro lado. Pegar a caneta é muito difícil.”

“Nada mais igual que o PSDB de FHC do que o PT de Lula.”

“O PT foi incoerente com a sua própria história.”

UNE

“A UNE está fazendo o quê? No máximo a meia-entrada e o movimento pela liberdade sexual. Ela caiu na mesmice, assim como muitas outras organizações. Precisa mudar, não só ocupar uma linda sede.”

PMDB

“O PMDB quer ser a noiva: dá pra quem paga mais, ou dá pros dois.”

A Mocidade

“Quando o Brasil achava que a ditadura não iria acabar, a mocidade saiu às ruas e protestou. A emenda Dante de Oliveira não foi aprovada na época, mas depois a ditadura foi acabando. Quando o Collor pediu que a juventude saísse às ruas de verde e amarelo em seu favor, ela saiu de preto e ele foi cassado dias depois. Olhem o poder da mocidade.”

“As CPIs são uma ótima saída, pena que elas não adiantem mais. Elas aparecem como um movimento incrível, importante, que mandava prender, cassava mandatos, mas isso quando o senado ainda tinha capacidade de se indignar, como fez em vários momentos. Hoje, ele perdeu essa capacidade, basta ser partidário. Por isso a saída é a mocidade.”

Realidades e possibilidades

“Estamos acostumados à vulgaridade, à rotina do escândalo, nada nos choca mais. As revistas divulgam um fato atrás do outro, mas só ficam nisso, depois de um tempo de tudo se esquece, não há continuidade.”

“Eu acredito na movimentação, conscientização, cobrança, divulgação do fato, no povo brasileiro ocupando o seu espaço. Isso pode e deve ser feito.”

“Levantar, debater, discutir, cobrar, isso é importante. Trazer a oposição - o outro lado - o que é um grande trabalho. São vocês que podem mudar, eles morrem de medo de vocês. Parlamentar morre de medo de opinião pública classificada.”

sexta-feira, 6 de março de 2009

Séculos que separam a mesma realidade

Na Idade Média, que se estendeu até meados do século XV, a igreja era a instituição mais poderosa. Era ela que ditava as regras, determinava a moral, infligia os castigos, queimava hereges nas chamas da inquisição, proibia livros, era totalmente antipática ao conhecimento, à ciência, e àquilo que estava marcado pelos rastros da razão, da observação, do pensamento. A igreja também não via com bons olhos as emoções, condenava inclusive o próprio riso. Ela comandava uma sociedade que vivia em permanente e constante estado de medo e, ao mesmo tempo, em profunda e melancólica contradição interna. Nunca deixou de esclarecer e delimitar muito bem quais eram os seus princípios e suas verdades - dogmas para ser mais exata. Em sua maioria, eram princípios pautados pela falta de liberdade, pela doutrinação pura e simples, pela distorção daquele que seria o sentido mais puro da religião – o de encará-la como um reflexo da nossa realidade, ou seja, a religião só teria algum sentido para o homem na medida em que ela refletisse a sua realidade e fosse identificada, de alguma forma, nos conflitos da sua vida.
O fato é que dentro da igreja católica, mesmo em períodos de total falta de liberdade como a Idade Média, sempre existiram grupos mais e menos conservadores, ou seja, alguns defendiam os sagrados princípios a qualquer custo, sem permitir brechas ou interpretações. Outros acreditavam que certas verdades deveriam ser sim respeitadas, mas que algumas coisas poderiam ser discutidas e relativizadas, proporcionando uma maior liberdade na construção da fé.
Bom, estamos no século XXI, o tempo passou e trouxe com ele as mudanças - tidas por alguns como totais e abrangentes - escancaradas aos olhos do mundo moderno. Na realidade, não vejo as mudanças como tão totais ou tão abrangentes, admito uma desconfiança em relação a essa espécie de senso comum, afinal, nunca achei que as coisas tivessem mudado tanto assim. Acredito que a roupagem da sociedade muda de acordo com a época, com a estação, mas sua pele continua a mesma; prova disso são atrasos e mais atrasos que volta e meia batem à nossa porta e nos confundem em meio a datas e contextos, a ponto de não nos sabermos se no século XV ou XXI, nas trevas da Idade Média ou nas luzes da modernidade, na época da justiça ou no tempo da intolerância.
Um dos atrasos mais recentes de que se tem notícia diz respeito ao caso da menina de nove anos, de Alagoinha (PE), que foi submetida a um aborto para interromper uma gravidez de gêmeos – consequência de um ato de estupro do qual o padrasto é o principal suspeito – e a reação da igreja católica em relação ao aborto e ao estupro. O arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou a mãe e a equipe médica envolvida no procedimento de aborto, mas não infligiu a mesma pena ao padrasto, que, segundo o bispo, não pode ser excomungado. Apesar de admitir que o padrasto cometeu um crime gravíssimo, Sobrinho considera o ato de interromper uma vida inocente muito mais grave. É com esse argumento, aliado ao da proteção e cumprimento dos princípios da igreja – cá estão eles novamente, os princípios – que o arcebispo de Olinda e Recife justifica a atitude da igreja em excomungar mãe e médicos e apenas dirigir ao padrasto uma crítica sem tom de crítica.

Por detrás do Santíssimo ou "princípios", o arcebispo Dom José Cardoso Sobrinho

Discutir dogmas e verdades seculares da igreja é de todo algo no mínimo complicado e indigesto, seja porque alguns setores da igreja estão a cada dia mais conservadores – fato que não deixa de sofrer certa influência do pontificado atual de Bento XVI, um papa ultraconservador que, inclusive, apoiou a decisão do arcebispo Sobrinho - ou porque, como foi dito acima, pouca coisa mudou em algumas instituições de nossa sociedade de uns séculos pra cá, e a igreja, com certeza, foi uma das que menos mudou. Ela continua proclamando seus princípios como se estes estivessem acima de qualquer suspeita e pudessem justificar uma posição tão ambígua quanto essa que a igreja acaba de tomar. Afinal, uma coisa é certa nesta história toda, a igreja condena o aborto porque este interrompe uma vida, a destrói, mas e o estupro? Será que este também não destrói a vida de uma pessoa, deixando traumas e marcas de todas as espécies possíveis? Como uma menina de nove anos pode ter uma vida normal daqui pra frente sem as lembranças que insistem em atormentar? É neste ponto que as contradições e as intolerâncias se encontram fatalmente. São tantas as formas de se destruir uma vida humana, e são tantos os princípios que não se mostram exatos!
A igreja não vai mudar, isto é fato, dogma é dogma. Se as verdades absolutas antes quando contrariadas queimavam homens, hoje elas acabam se chocando com a própria igreja, queimando-a na sua contradição, na sua irredutibilidade, na sua moral tão justa a ponto de condenar um aborto, mas deixar passar um estupro. Essa atitude da igreja, no entanto, não surpreende, vale tudo, simplesmente, para não voltar atrás e permitir o aborto quando este tem relação direta com certos casos que ameaçam a vida humana. Não, mas isso não, como a toda poderosa instituição católica pode, ela mesma, torna-se a herética de seus próprios dogmas?
É, pelo que parece as coisas realmente não mudaram tanto assim, a diferença - e talvez essa seja a mais grave de todas - é que agora, ao contrário da Idade Média, os livros circulam livremente e as bibliotecas não são mais queimadas. O conhecimento e a liberdade de expressão deste são plenos, mas as injustiças continuam acontecendo e ninguém diz nada. A Teologia da Libertação busca ganhar espaço nesta igreja dogmática e atrasada, tentando mostrar que além das questões espirituais e dos dogmas, as questões sociais também têm importância e deveriam ser tratadas com um mínimo de coerência e respeito. Mas a ação dos teóricos da Teologia da Libertação não deve ser isolada. Todos precisam de lógica e luz, de respeito à vida humana em todas as suas dimensões, e todos devem reforçar essa luta, caso contrário, corremos o risco de voltar a viver com as chamas não mais da inquisição, mas do atraso. Este que nos queima devagar, soltando uma fumaça marcada pela inversão de valores e pela permanência do mesmo.

terça-feira, 3 de março de 2009

Inspirações e divagações

Nesta postagem mostro mais algumas poesias, letras sentidas, formas pensadas, mas juntamente com elas, coloco algumas obras do pintor impressionista francês Claude Monet. As paisagens de Monet sempre me agradaram, seja por seus traços suaves, como pela sua técnica impressionista em que a imagem pintada aparenta ser, olhando de perto, apenas alguns borrões, mas ao distanciar a visão, ela e o quadro, como um todo, se formam nitidamente. A essência do movimento impressionista - que teve seu nome inspirado justamente em um quadro de Monet “Impressão, nascer do sol” (1872) – consistia em não mais se preocupar com o retrato fiel da realidade, mas com a busca dos elementos fundamentais de cada arte (para título de curiosidade daí também veio a inspiração para o nome deste blog que não pretende se limitar ao retrato exato da realidade, haja vista a minha opinião de que não há inteiros e exatos). Neste sentido, a luz e o movimento aliados às pinceladas soltas passaram a ser as marcas deste estilo artístico.
O fato é que Monet - que nos leva àquela postura contemplativa da arte, ao contrário de outros como Duchamp que nos leva a decifrá-la - faz com que na calma de uma paisagem, na sutileza da mistura de cores, na transparência do jogo de luz, apareça em nós as mais inusitadas lembranças, a mais voluntária inspiração e os mais inocentes sentimentos (o leitor que sempre está por aqui já deve ter notado minhas constantes comparações com Duchamp, desculpe a insistência mas é que ele me agrada deveras, não resisto à tentação de lembrá-lo). Decidi unir portanto, uma de minhas inspirações ao produto de minhas divagações. Prefiro produto de minhas divagações pois não digo que o que faço é arte - já que minha poesia é muito mais emoção e liberação de sentimentos do que arte enquanto técnica e intuição. O fato é que tanta inspiração e divagação, com todos estes “aõ”, ainda vão me revirar do avesso. O que me consola é que, apesar de tudo, elas não se esquecem de me trazer de volta – ou melhor, quase nunca se esquecem.


The Artist's Garden at Giverny , Claude Monet

Onde encontrei tanta
tamanha solidão?
Por que meu peito é pouco
pequeno?
Qual a origem da perplexidade
dos fantasmas?
Por que esse medo
essas perguntas?
Qual é a nascente de meus olhos molhados?
O amor?
A morte?
E esse canto doce
E essa voz alucinante
Inebria-me esse cheiro constante
Tenho vontade do tudo
e do nada
Entre sofreguidões, ensaios, recortes
Vontade de um norte distante
como você
Você que eu não posso ter
a não ser em sonho
Por um instante
Amante, cortante...
Não sei se o sonho ou o instante

M.V

Nenúfares, Claude Monet


Assumir meu caminho?
Seria de todo prosaico demais
Se tiver que assumir algo
Será o meu próprio destino

M.V

Antiquado, sensual, banal
Brota de teus olhos
O sal


M.V


Water Lily Pound, Claude Monet

Pensa que eu não via os olhares
Logo e prontamente desviados
E que prazer em desencontrar olhares
Os teus em direção aos meus
Correndo a encontrar os teus
Mas chegando sempre atrasados
Não me importa que fiquem
somente os olhares
Ocasionais e gratuitos
Não é polido esperar nada deste
Que se não for inebriante
E efêmero
Não pode ser um flerte


M.V

domingo, 1 de março de 2009

As Vinhas da Literatura

Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940

John Steinbeck nasceu em Salinas, Califórnia, EUA, a 27 de fevereiro de 1902. Ainda muito jovem, por influência dos pais, leu Dostoiévski, Flaubert, Elliot, dentre outros clássicos da literatura mundial que foram suas principais influências literárias. Trabalhou no jornal “American” de Nova York enquanto vasculhava a cidade em busca de um editor para seus livros ainda não escritos. Seus primeiros livros não lhe asseguraram a profissionalização como escritor, foi só com “Boêmios Errantes” que se firmou como um autor de prestígio. Steinbeck escreveu vários romances premiados que migraram das páginas dos livros para as telas de cinema e para os palcos de teatro, mas um deles, em particular, é considerado a sua obra-prima: “As Vinhas da Ira” (1939).

John Steinbeck

O romance conta a exploração a que são submetidos os trabalhadores itinerantes e sazonais através da história da família Joad, que migra para a Califórnia, atraída pela ilusória fartura da região. Falando assim talvez a história chegue a ser considerada banal, mas ao ler o livro descobre-se que ela pode ser interpretada como tudo, menos como banal. Steinbeck conta a história utilizando-se de uma linguagem sofisticada, poética, bonita, e, ao mesmo tempo, endurecida, seca, cortante, deixando transparecer todo sofrimento a que a família Joad é submetida.
Os personagens nos são apresentados com tamanha maestria e sensibilidade que conforme avançamos nas páginas eles vão se tornando cada vez mais próximos, mais familiares. Os seus dramas nos atingem profundamente, a sua força inacreditável nos impressiona, e suas tristezas mascaradas e contidas nos emocionam. O livro é simplesmente sensacional.
Encontrei nele algumas semelhanças com “Vidas Secas”, do nosso Graciliano Ramos. A vida dos trabalhadores em êxodo é escancarada ao nosso olhar de leitor em as “Vinhas da Ira”, assim como a vida daqueles que enfrentam o fenômeno cíclico da seca no sertão nordestino, nos é exposta de maneira fiel e arrebatadora através dos discursos monossilábicos e dos olhares perdidos em Vidas Secas. Ambos são fiéis aos fatos que narram conseguindo contá-los de uma maneira simples, triste e forte. Assim como são simples, tristes e fortes os protagonistas das duas histórias.
“As Vinhas das Ira” nos transporta para um ambiente onde as pessoas perderam tudo, muito lhes foi roubado - sua terra, sua casa, suas coisas - e com elas foram sua proteção, sua mais aconchegante morada, sua gratuita satisfação. No entanto, percebemos que os trabalhadores ainda carregam sua força, sua vontade de mudar, sua esperança e, principalmente, seus sonhos. Ah! Como os sonhos se fazem presentes na história dos Joad, como eles incrivelmente não desistem de caminhar e ter esperança, mesmo quando não sabem sequer para onde vão, mesmo quando eles sabem que, no fundo, caminham inutilmente.

Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940


E como as mulheres se mostram fortes, em meio aos homens e a toda sorte de infortúnios! Elas são como um rio, que não para, segue seu curso, arrastando tudo que tiver no seu caminho, sem pensar. O rio apenas corre - forte, majestoso, misterioso. Já os homens são como uma escada, cheia de degraus. No caminho param e pensam nos degraus que subiram, nos que desceram, nas coisas que perderam, nas que ainda podem conquistar. O pai da família Joad se agarra ao passado - a única coisa que ele diz ter – e deixa estampar em seus olhos o medo do futuro. Já a mãe da família Joad, vive um dia de cada vez, não mostra fraqueza, conserva sua força em meio a um cansaço que a disposição das palavras ao longo da história nos faz sentir e ver mentalmente. Eles são a base de uma família que sai inteira, mas vai perdendo pedaços ao longo do caminho.

Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940


E assim muitas e muitas famílias saem em êxodo, é um país em fuga, um mundo em desespero, uma porção de corpos vazios de comida em contradição e conflito com uma porção de almas carregadas de sonhos e recordações. A saga dos Joad é extensa. A história é contada em dois volumes, num total de 630 páginas, que, no entanto, são sonoras, passam rápido, mas não passam despercebidas. Elas fazem até o leitor mais incrédulo não acreditar no que lê, principalmente diante do final.
Já que se fala aqui de final, sinceramente, não sei descrevê-lo. Mesmo se soubesse não o faria aqui, mas o fato é que não o sei. Talvez não existam palavras no nosso limitado alfabeto para descrever a cena final do romance. Em meio à sensação indescritível que ela me trouxe, pude notar algo que fica claro em toda história do livro: a presença de um espírito absurdo de solidariedade. Uma solidariedade a mostrar que quando vivemos situações extremas de fome, frio, doenças, abandono e desolação, dois sentimentos ganham forma e atingem seus graus mais elevados e extremos: o amor e a ira.
Pessoas que realmente sofrem, repito, realmente sofrem, amam de maneira absurda aqueles que estão na mesma situação que elas. A família torna-se não mais uma célula isolada, mas um corpo todo em chamas. Em oposição a esse puro e sincero sentimento de amor, eles acabam por cultivar, mesmo sem querer, um sentimento de revolta, uma vontade de mudar e fazer justiça, que faz brotar a ira na direção daqueles que estão do outro lado, daqueles que lhes tiraram tudo - os tratores, as máquinas, os grandes fazendeiros – do mundo que está de fora da fina fronteira de sua humilhação e desumanização, dos homens que cultivam pomares carregados de frutas enquanto pessoas aos montes morrem de fome.
Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940

Do livro esta talvez seja a principal mensagem: das situações extremas nascem também os sentimentos e as atitudes mais extremas, o grande desafio é seguir em frente mesmo carregando mortes, mesmo engolindo lágrimas, mesmo lutando contra as lembranças, porque no final, todos buscam o mesmo lugar. Mas essas vinhas que guardam a ira são de todo muito tristes. Tão tristes que arrepiam, molham os olhos, mas não vertem lágrimas, porque a coragem logo volta. Os fortes não têm o direto de perder a coragem, cerram os olhos e sorriem misteriosamente.


*A trágica odisséia da família Joad recebeu o Prêmio Pulitzer e foi levada à tela por John Ford em 1940.