segunda-feira, 30 de março de 2009

CONTO: 1º PARTE - O CORREDOR



Lá os dias eram mais longos, as horas mais subjetivas, os sons mais nítidos. O calor era constante, sufocante, parecia dilacerar as emoções, aumentar as dores. A calma trazia nítido o som do vento e do rio, que corria calmo, sábio, sem desviar-se do curso certo de seu destino, entregue lindamente a ele. Neste sítio ainda encontrava-se certo verde, restos de uma natureza morta, mais de morte matada que de morte morrida. Era um pedaço de chão pra lá do fim do mundo, onde a terra falava sozinha, andava à noite, movia estradas e cercas, roubava um pouco da vida dos que nela caminhavam todos os dias, desde o nascer do sol, até o cair sereno da noite.
Emma vivia neste lugar, ou esse lugar vivia nela. Nada mais que uma menina de 17 anos, de pele morena, lábios vermelhos e doces, rosto redondo tal como uma lua-cheia, gestos firmes, seguros, precisos, falas prontas, hábeis e certo narizinho empinado como se fosse dona de um mundo que ela mal conhecia. Mas, nesta camponesa que de camponesa parecia ter pouca coisa, o que mais chamava atenção eram os olhos. Pareciam distantes, demasiado tristes e melancólicos. Davam a impressão de que queriam e efetivamente carregavam o mundo, aquele mesmo mundo do qual Emma parecia ser dona. Ela trazia em si uma dualidade fascinante e misteriosa. Uma paixão que transbordava em seus atos e omissões. Era mulher e menina posto que nela coexistiam a maturidade da primeira e os encantos e traços juvenis da segunda.
Emma vivia em uma casa simples na encosta de um morro vivo de cores e cheiros. Para ela, a casa cheirava a leite fresco, daqueles ainda quentes, tirados pelo homem que cuidava da casa e se dizia seu pai, embora ela sentisse que ele não o fosse. Os quartos eram pequenos e aconchegantes. Também nada precisava ser muito grande em uma casa onde viviam apenas três pessoas: Emma, o homem e a mulher do homem, todos incrivelmente estranhos a ela. No entanto, a casa tinha suas partes grandes. Era grande a varanda, com vista para as impressões da paisagem possível ou inventada, e o corredor. O corredor era muito longo e Emma sempre tivera medo dele. Quando adentrava por seu espaço tinha absoluta certeza de que ele não tinha fim. Era escuro, tão longo e tão escuro. Vozes pareciam sair das paredes, tão marcantes, diáfanas e provocadoras que Emma tinha com elas pesadelos todas as noites. Mas ela não podia fugir do corredor, porque se pudesse já o teria feito. O fato é que depois de seu longo trajeto o corredor levava a uma sala simples, mal iluminada, tomada por um inebriante silêncio e por um característico cheiro de páginas compostas por letras e gastas pelo tempo. As paredes da sala eram carregadas de livros, transbordavam conhecimento.
Emma amava aquele lugar de todas as formas que alguém pode amar o outro, seja pessoa ou coisa, hábito ou ambiente. Na sala do final do corredor era como se todos escutassem apenas Emma. Ali, o mundo girava em torno dela em uma atmosfera na qual ela era a protagonista de tantas outras histórias. E entre as paredes daquela sala e o cheiro daqueles objetos quadrados e aparentemente frios, Emma conhecera o amor e todas as suas possibilidades, incoerências, desafios, tentações. Aprendera a lógica dos olhares, a dinâmica dos beijos intermináveis, a tentação do cheiro. Maravilhara-se com as intrigas, a trama do ciúme, a armadilha do desejo.
Também ali, no final do corredor, Emma fora apresentada a toda sociedade organizada sobre muita loucura, contradição, ambição, dramas, excessos, desorientações. Conheceu seus conflitos, a teia de relações que a condiciona e a aprisiona ao mesmo tempo. Leu sobre o poder que pra essa mesma sociedade se volta, movendo os homens, justificando os meios em nome do fim. Emma se assustou com crimes, profundezas, histórias de morte e glória, vida e miséria. Refletiu sobre as ideias de justiça, sobre a estética do belo, da arte, saiu do maniqueísmo simplista e superficial para conhecer o pluralismo complexo, decorrente da ausência de verdades absolutas.
Emma conheceu homens e mulheres atemporais, símbolos de medos e traumas. Redutos de abismos nascentes do sonho, dos mistérios do inconsciente, das vozes eternas e insistentes da alma. Mas Emma tinha consciência de que ainda havia muito por aprender, ela olhava para um livro sem desviar os olhos do resto da sala, ainda tomada por páginas que por ela ainda não haviam se deixado tocar.
O fato é que aquela sala pequena, lá no fim do corredor, já era parte de Emma. Ela passara tanto tempo dentro daquelas paredes que era como se cada uma delas fizesse parte de seu corpo, ajudando a compor a matéria de seu coração. Mas Emma não gostava do corredor e não havia livro capaz de fazê-la se ver livre dos seus fantasmas e das vozes a povoar seus sonhos.
O corredor era escuro demais e Emma nos seus devaneios mais remotos sempre tivera medo de ser engolida pelas arestas invisíveis e exatas da escuridão. No mundo em que ela vivia, nada ficava tão próximo do prazer de tomar em suas mãos um livro, com a sua bem contada história, quanto o terror para chegar até ele. Às vezes Emma se pegava pensando em como seria possível uma sensação tão boa decorrer de um medo tão provocante. E a menina perguntava com sua postura de dona deste e do outro mundo por que tinha que passar por aquele corredor angustiantemente longo para alcançar seu reduto da sobrevivência emocional de todos os dias.
Esta resposta, os livros ainda não haviam lhe dado.

M.V

4 comentários:

Anônimo disse...

Nossa Má! Que lindo!
Terá Emma medo do desconhecido como muitos de nós?!


Beijo

Rogerio Stopa disse...

Gostei do conto e do comentário da Fernanda.

Maura Voltarelli disse...

Fer querida obrigada pelo comentário! Bom, em relação ao medo de Emma, aguarde o restante do conto! Surpresas virão! Beijos

Maura Voltarelli disse...

Obrigada Rogério! Já que você gostou do comentário da Fernanda digo pra você a mesma coisa que eu disse pra ela: aguarde o restante da história!