sábado, 28 de março de 2009

A cor do silêncio

Qual seria o bom filme? Aquele que nos perturba com uma história bem contada? Aquele que reflete nossa vida, medos, sonhos? Aquele que faz pensar sobre isto ou aquilo? Aquele que muda nossa forma de ver as contradições e particularidades da realidade? Aquele que nos irrita, nos faz torcer? Enfim, um bom filme bebe de muitas fontes e traz muitos elementos para se constituir como tal. Nem sempre todos esses elementos se explicam, porque os melhores filmes não são um simples conjunto de elementos, eles são a construção de um novo conjunto de elementos.

Divago sobre essas questões, pois acabo de assistir a um filme que já deve ser do conhecimento de muitos dos caros navegantes. Seu nome, Cidade do Silêncio (Bodertown). Sua história forte. Sua lição elementar e, aparentemente, cada vez mais distante. De forma resumida, o filme é uma espécie de denúncia aos casos de violência, estupros seguidos de morte, contra mulheres mexicanas funcionárias de uma fábrica que produz computadores e é financiada por capitais norte-americanos. Como é comum na fronteira do México com os EUA, espalham-se as fábricas que usam mão-de-obra barata, explorando-a de modo a alavancar seus lucros e disseminar a miséria, não apenas econômica como também, e mais dolorosas, a miséria humana e moral. A história se passa na cidade de Juarez, no México, e os casos de estupro vão aumentando dia após dia. São sempre funcionárias da fábrica vítimas de uma escuridão que as perde de qualquer espécie de sentido ou reação. A suspeita é de que os crimes sejam cometidos não só por um único assassino, mas por vários, e os métodos são os mais variados e assustadoramente inacreditáveis. Uma jornalista de Chicago, Lauren Adrian, é enviada a Juarez para cobrir os crimes por lá cometidos. O fato é que, se no início ela é apenas uma jornalista interessada em um cargo de correspondente internacional, no final do filme somos apresentados a uma mulher totalmente transformada, marcada por uma história que se confunde com a sua própria história, com seus dramas, traumas e lembranças. Ela conta com a ajuda de um jornalista local, Alfonso Diaz, que insiste em falar sobre os crimes cometidos, mesmo vendo seus jornais serem arrancados todos os dias das ruas, mesmo lutando a cada segundo para que seu jornal não seja fechado. Ele assume seu compromisso com a verdade e ajuda a jornalista, antes de tudo, por amor.


Cena do filme Cidade do Silêncio

Mas o caminho não é fácil e por trás de todo drama, pode-se enxergar uma discussão a respeito do papel do jornalismo. Daqueles que podem contar certas histórias com coragem e responsabilidade, assumindo todos os riscos, perseguindo a verdade mesmo que esta se encontre tão perto da própria morte. Em meio às cenas fortes, somos defrontados com uma conversa de Lauren com o editor do jornal em que ela trabalha em Chicago. Esta cena diz tudo a respeito da desvantagem da verdade na lógica do jornalismo comercial. A matéria de Lauren por ter ido fundo demais, por ter apurado com toda fidelidade uma história, por ter trazido a tona o perfil de uma das vítimas da violência da região - Eva Jimenez, de apenas 16 anos, que sobrevive e vive para ver sua história contada e seus agressores punidos da forma mais humana possível - não pode ser publicada porque afeta interesses comerciais. Porque toca nas feridas sociais de casos que custam menos quando ignorados do que quando denunciados. Lauren não aceita se vender por um cargo que no começo ela tanto queria. E não se conforma que um homem que ela tanto admirava se curve ao interesse econômico com tanta naturalidade traindo a verdade, traindo a história, deixando que outros deem as ordens que só podem ser ditadas pela ética e consciência de cada um. Mas sabemos que essa é uma situação cada vez mais rara atualmente. A maioria dos jornalistas se vende. A maioria não tem coragem para assumir o peso e a responsabilidade da verdade, a maioria não gosta de enfrentar, se omite, carrega o silêncio. São poucos os que dão a vida pela verdade dos fatos, como acontece com Diaz - morto porque falou o que não deveria ter sido dito - porque são poucos os jornalistas que têm firmeza e responsabilidade com o outro. Lauren não permite que a história daquelas mulheres se perca. Para ela, são mulheres que não podem continuar esquecidas e renegadas apenas porque mexicanas consideradas irrelevantes, mesmo porque a própria Lauren começa a se ver como uma delas.
Passeata em protesto contra as mortes de mulheres em Juarez, México

Talvez, toda a insistência e firmeza de Lauren se expliquem em determinada cena do filme em que ela diz a Eva que abdicou da construção de uma vida pessoal em nome de uma carreira. Ela queria construir sua carreira e encontrava nisso todo o sentido para a sua vida. Não poderia deixar de acreditar nela porque se esse dia chegasse sua vida não teria mais sentido. Assim são os verdadeiros jornalistas, se a causa em que acreditam não faz mais sentido, também não faz mais sentido a sua própria existência. São raros, mas que estão por aí, denunciando, enfrentando, cobrando, dando voz àqueles que não têm voz, dando sentido a causas que se perdem na rede promíscua de nossos interesses podres. Só para citar um exemplo recente, estamos aí com o caso da empreiteira Camargo Corrêa sendo denunciado e exposto pelos jornalistas. Um caso grave que merece uma investigação séria e comprometida, atenta à verdade, sem medo de atrasos e autoritarismos dos mais variados.


Cena do filme Cidade do Silêncio


Sempre há o que denunciar, sempre há o que mostrar. Pessoas e fatos precisam de representação. A lógica comercial e os interesses são fortes, com certeza, é difícil fugir deles, mas ser difícil não é ser impossível. No fim, o que realmente importa é o que você quer fazer com a sua profissão. Há sempre duas opções: o caminho fácil e mais cômodo do silêncio, da conivência, que não traz glórias nem verdades, apenas mais do mesmo. E o caminho dos que exercitam cotidianamente o caráter e a inteligência, dos que encontram brechas aqui e ali para contarem a sua história, aquela que vale a pena. Aquela que ao menos legitima a luta de milhares de homens e mulheres que não podem terminar na frustração do esquecimento. E não me venham com os limites de nossa lógica capitalista ou com estrutura hierarquizada e jornalista iludido dizendo que vai mudar o mundo. Não se trata de mudar o mundo, muito menos de ilusão, é tudo uma questão de princípios, habilidade para dizer o que pensa e coragem, muita coragem. Mas isto já vem da história de cada um, dos valores de cada um, do significado e do sentido que cada jornalista quer dar a cada uma das suas palavras.


“Não há fortalezas que não puderam ser vencidas ao longo da história com o uso da inteligência e da perspicácia. Elas perdem parte de seu isolamento com o impacto da razão não com a violência de uma espada. A glória e a satisfação não nascem do silêncio do conformismo, mas das vozes coerentes e eternas da verdade.” (Maura Voltarelli)


*Filme: Cidade do Silêncio (Bodertown)
Gênero: drama
País: EUA
Ano: 2007
Direção: Gregory Nava
Com: Jennifer Lopez, Antonio Banderas, Sonia Braga

*A atriz e cantora Jennifer Lopez recebeu o prêmio da Anistia Internacional por ter produzido e atuado no filme. O prêmio, chamado "Artistas pela Anistia", foi entregue pelo Primeiro Ministro de Timor Leste, Jose Ramos-Horta.

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