segunda-feira, 28 de julho de 2008

"No mar estava escrita a história de uma cidade."

Recentemente fiz uma viagem ao Rio de Janeiro e trouxe dela inúmeras impressões e lembranças de momentos, sensações e reflexões que vivi e fiz. Encantou-me a vontade e a alegria de viver de pessoas que carregam em si uma energia e simpatia espontâneas, inebriei meus olhos com a belíssima paisagem de um mar que parece não ter fim, cortado por montanhas e formas que dão a impressão de terem sido desenhadas. Visitei lugares que marcaram uma época não vivida por mim, mas que pude reconhecer por terem feito história e estarem presentes como símbolos da antiga capital da república. Entre esses lugares estão o Paço Imperial, antiga residência da família real, que hoje funciona como Museu da República. De uma de suas janelas D.Pedro disse a famosa frase: " Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico." Surpreendeu-me a beleza, o luxo e a sofisticação do Teatro Municipal, o cheiro de livro e o ar de conhecimento que paira sobre a Biblioteca Nacional, as cores e formas da arte e a imagem da cultura que marca o Museu Nacional de Belas Artes.
Admirei o fato de o Rio de Janeiro ser uma cidade que homenageia por toda parte aqueles que buscaram inspiração na sua gente e na sua beleza e, de alguma forma, fizeram história no Brasil e no mundo. No bairro do Flamengo há uma região chamada Largo do Machado, onde morava o Escritor (digno da letra maiúscula) Machado de Assis, em uma casa que hoje já não existe mais. No Jardim Botânico há um espaço homenageando Tom Jobim, que buscava conforto e inspiração para suas canções na paz e na beleza do lugar. José Alencar também ganhou um monumento em sua homenagem, e os bustos de D.João espalham-se pela cidade que ele preparou para ser digna de abrigar a corte portuguesa. Tive o imenso prazer de me sentar ao lado de Carlos Drummond de Andrade nas ondas do calçadão da praia de Copacabana. O Poeta, que também é digno da letra maiúscula, estava sem os óculos arrancados pela sétima vez, se não me engano, mas conservava o ar pensativo e simples que marcou toda sua vida na cidade, que como ele mesmo descreveu, teve sua história escrita no mar.
Foi uma viagem que valeu a pena por ter me proporcionado aquela felicidade gratuita, que vem naturalmente, marcando-nos de alguma forma, e também porque dela levo muitas coisas que vi e aprendi. Termino este texto e resumo minhas impressões desta vigem, com uma poesia daquele que ainda habita imóvel o coração desta cidade.


Memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.


Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.


As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão


Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade


sexta-feira, 11 de julho de 2008

Palavras que valem mais do que o silêncio

O livro As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano é uma ótima opção para quem quer entender de fato como se deu a história de um continente que já nasceu explorado. Eduardo Galenao consegue trazer dados curiosos e interessantes utilizando uma linguagem simples e acessível. O livro tem um tom crítico evidente mas muito bem sustentado por argumentos sólidos e dados verídicos, além disso, possui componentes essencias para que se conheça de fato uma história peculiar e esclarecedora de nossa própria condição atual. A América Latina é desvendada como um continente que empobreceu por causa de suas riquezas, que sempre produziu para atender às necessidades européias, nunca visando o seu mercado interno, uma região que exporta o barato e consome o caro, um lugar fragmentado, dividido, frente a uma Europa forte e desenvolvida. Grande ironia esta que nos apresenta o livro e a própria realidade, ironia que corresponde ao fato de as matérias primas, tão cobiçadas, insistirem em estar no terçeiro-mundo. A impressão é de que rebemos um presente que determinou nossa própria exploração e como conseqüência, nosso próprio subdesenvolvimento.
Um bom livro nos faz pensar, refletir sobre nossa própria condição e também nos provoca sentimentos de indignação. Ao ler As Veias Abertas da América Latina me senti perturbada ao constatar que ao longo de nossa história um continente que sempre teve tanto se contentou com tão pouco. Parte de nossa miséria e inferioridade tecnológica, humana, política e econômica são frutos de uma cordialidade revoltante para com aqueles que nos exploraram de todas as formas com que se pode explorar um continente.
Os mecanismos de poder, os modos de produção e os sistemas de expropriação, que nos são comumente apresentados como produtos do destino, enfrentam o confronto dos fatos na história deste continente e são claramente desmistificados. Como resultados da criação humana, eles podem ser modificados. Mas a mudança exige ciência e consciência. Daí a importância da leitura deste livro.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Uma história

Dona Rosinha, uma senhora com seus setenta e quatro anos, anda, fingindo estar distraída pela Praça da Sé em São Paulo. Pára em frente a alguma vitrine, foge de lugares cheios de outras mulheres e, sem que se possa perceber, começa a conversar com um homem. O homem é, digamos, de meia-idade, aparentemente alguém livre de qualquer suspeita, muito bem vestido, tem um ar de intelectual e conversa amistosamente com Dona Rosinha. Ela parece desconfortável durante toda conversa, não parece estar simplesmente tendo uma conversa ocasional, os olhares são de um compromisso maior.
Dona Rosinha não é uma senhora como outra qualquer, ela vive sozinha em um barraco simples, de terra batida, com algumas coisas velhas amontoadas e perdidas, somente duas fotografias se destacam em meio à bagunça generalizada. Uma é do seu filho e a outra é sua de quando era moça, talvez uma época menos amarga, mais feliz e não tão solitária como se faz sua velhice. Dona Rosinha mostra as fotos a todos que visitam seu barraco com orgulho, saudade e uma pontinha de tristeza no tom de voz.
Os olhos de Dona Rosinha são cansados, conformados, muito fundos e tristes, como um rio profundo e silencioso no qual você se perde em indagações. O corpo e o rosto são envelhecidos pela idade e pelo temp0, a voz é doce, o jeito meigo e suave, parece o de uma menina frágil e desprotegida que ainda não foi apresentada a este mundo e à sua realidade. Mas voltando à conversa na praça com o homem de meia idade, depois de um tempo, Dona Rosinha sai andando em uma direção e o homem a segue com o mesmo ar de superioridade no rosto. Ela entra em um hotel simples, um local que já está acostumada a freqüentar, haja vista a intimidade que tem com seus administradores. O homem a esta altura já está atrás dela. Dona Rosinha entra no quarto e fecha a porta depois que o homem por ela passa. Ela não diz uma única palavra durante uma meia hora, neste tempo, apenas falam seus olhos tristes e humilhados através de lágrimas disfarçadas. Depois de um tempo ela diz: são trinta reais mais dez do quarto. Ela recebe e o homem sai sem dizer obrigado.
O bom jornalismo realmente é aquele feito de boas e surpreendentes histórias como esta que acabei de conhecer por meio do Profissão Repórter, um programa da Rede Globo que mostra os bastidores da notícia e todo trabalho que envolve a realização de uma reportagem, o programa é sem dúvida alguma um dos poucos redutos do bom jornalismo na televisão brasileira atualmente. Imaginar que uma senhora de 74 anos, que já viveu e passou por muita coisa na vida precisa se prostituir por trinta reais, como ela conta na reportagem, é algo triste que chega a doer em pessoas que ainda têm um mínimo de sensibilidade. Não estou encontrando palavras para expressar minha indignação e tristeza perante uma história como essa, que país é esse onde as pessoas têm que se submeter a situações tão humilhantes simplesmente porque não encontram outra forma de sobreviver a essa selva na qual vivemos, que país é esse que não respeita seus idosos, que têm homens capazes de usar e abusar de alguém que deveria estar tendo uma velhice digna e serena, como ela realmente tem que ser. A prostituição é algo conhecido pela grande maioria dos brasileiros, mas, as suas distorções são algo impressionante. Estas distorções acontecem quando ela envolve jovens e idosos, nestes casos o que já é algo degradante torna-se simplesmente indefinível, insuportável, revoltante.
Esse mundo me surpreende e me impressiona cada dia mais, não há sequer palavras pertinentes para descrever essa nossa caótica realidade. Peço que algum ser superior ou alguma divindade proteja Dona Rosinha porque nesta terra de loucos não sei mais para onde implorar por um pouco de lógica, humanidade e, principalmente, bom senso. A única certeza que tenho em relação às pessoas é que elas precisam viver com dignidade. Dona Rosinha admite no final da reportagem, com a voz meiga e os olhos cansados, que lhe são característicos, que não é feliz. Não esperava outra resposta de alguém que, além de viver sozinha, sem ter qualquer espécie de conforto e proteção familiar, tem que encarar uma realidade tão fria que chega a doer, tão degradante que deixa um vazio nos olhos de Dona Rosinha, olhos de um personagem deste mundo que teve sua vida roubada e não pode sequer desfrutar da serenidade e dignidade que qualquer ser humano merece em sua velhice.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Destinos femininos

Ingrid Betancourt
Nestes últimos dias estive guardando algumas impressões e, ao mesmo tempo, aguardando o momento exato de reuni-las em um único texto. Dois acontecimentos envolvendo mulheres de nosso tempo marcaram o noticiário dos últimos dias. O primeiro deles diz respeito à morte da primeira dama, que nunca gostou de ser chamada como tal, Ruth Cardoso, e o segundo à libertação de Ingrid Betancourt, que até poucos dias atrás, era refém das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).
Esses acontecimentos aproximaram duas mulheres distintas e semelhantes, fortes e frágeis, sensíveis mas, ao mesmo tempo, decididas. Ruth Cardoso caracterizava-se pela combinação de elegância e despretensão, de sofisticação intelectual e simplicidade, uma antropóloga que se construiu como tal, no mais puro e simples sentido da profissão. Partiu dela o programa social Comunidade Solidária, do governo FHC, um verdadeiro programa social, próximo do modelo do Welfare State americano, um programa social que não só ajuda como também prepara e cria verdadeiras portas de saída. Ruth foi lembrada com respeito e admiração unânimes no momento de sua morte, talvez ela nunca tivesse tido consciência em vida de sua própria dimensão, afinal, esse tipo de certeza só se impõe claramente em sua plenitude como produto do trabalho da morte. Ruth podia não gostar mas era primeira e dama no sentido mais literal de ambas as palavras.Ingrid Betancourt parece muito com Ruth Cardoso, basta lembrar dos olhos e do semblante firme que ela nunca deixou de portar, mesmo nos momentos mais difícies de sua longa estada junto às FARC. Ingrid foi feita refém por fazer a diferença e, como uma ironia do destino, e elas são tantas, agora sua libertação também fará toda diferença. Mas discutir as questões geopolíticas do fato não é o objetivo deste texto, deixemos que outros veículos informativos se encarregem de informar esta parte da questão, muitas vezes simplificando os fatos.
Aqui, falaremos dos aspectos humanos e das características de uma mulher que se diz feliz e madura, mesmo depois de anos de toda sorte de sofrimentos possíveis e eu diria até inimagináveis. Esta é uma das peculiaridades das grandes mulheres, elas sofrem mas não se fazem de vítimas, ao invés disso, sobrevivem, agem e se afirmam, reforçando a sua luta e seus ideais. Ingrid dá uma lição a todos aqueles que se vitimizam por qualquer bobagem e é um exemplo da determinação e da luta que marca o espírito e o caráter de tantas mulheres.Dois destinos femininos, duas mulheres, uma mesma expressão serena. Ruth Cardoso e Ingrid Betancourt são um exemplo, um conforto e uma certeza de que nem tudo está perdido. A partida de Ruth e o retorno de Ingrid são uma chance para restabelecermos com urgência no Brasil e no mundo a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o correto e o maldoso, o justo e o injusto.

Ruth Cardoso

Do contemporâneo e dos limites

O mundo informatizado está cada vez mais ignorantizado.

As verdadeiras fronteiras são as do pensamento.

Millôr Fernandes

terça-feira, 1 de julho de 2008

Passeio, família, felicidade...

No meu primeiro artigo neste blog gostaria de falar sobre uma impressão particular que tive durante um passeio agradabilíssimo, que selou o encerramento das atividades deste primeiro semestre com o pessoal da “melhor idade”, e que me fez pensar em coisas simples e um tanto quanto importantes. O lugar que nos recebeu chama-se Porto Feliz, cidade simples de pessoas que carregam o mesmo adjetivo em sua personalidade. O lugar deve se orgulhar por ter uma beleza singela, daquelas que a gente ouve falar, mas demora pra saber como é. A impressão, olha a palavra de novo aparecendo por aí, realmente é uma questão de impressão. Bom, deixemos as divagações de lado, voltemos ao centro da questão, mas aviso logo de cara que você, caro leitor, deve se acostumar com as digressões desta que vos fala. À medida que ia passeando pelas ruas desta cidade que acreditem, já fez história, senti sensações que não se podem definir, posto que por serem sensações não há como explicá-las, realmente é preciso senti-las, mas elas se pareciam muito com o conforto da casa dos pais, ou com a permanência daquilo que é certo.
Não vou descrever os lugares, este não é exatamente o objetivo deste artigo, álias, aconselho ao leitor que os conheça. Mas o que realmente me impressionou foi o contato com a família que nos recebeu. A casa era simples, pequena e um tanto quanto aconchegante, a comida era farta, saborosa, suficiente para o corpo e para a alma. A família era composta por filhos e netos de um casal que construiu uma vida juntos, baseando-se no companheirismo e no respeito, menos efêmeros que o amor, que às vezes cobra demais e quando se vê já se passa. Nem por isso o amor me pareceu ausente, pelo contrário, considerei-o algo que transbordava em cada ato de carinho ou até de punição humanamente responsável daquela família, mas era um amor natural se é que me entendem.

José Roque Neto, em seus desenhos sinais de tristeza, que está muito próxima da felicidade, se é que ambas existem de fato, como sentimentos puros e em essência


Quando cheguei em casa vi que esse passeio não foi como tantos outros que eu havia feito, em tantos outros momentos, foi um passeio aparentemente normal, simples, mas que me fez pensar sobre o que é necessário para que se encontre a tão sonhada felicidade, aquela que tantos falam e poucos têm. Dei-me conta disso quando liguei a TV, hábito esse que não sei quando vai me abandonar, e, oportunamente, bom pelo menos acho que foi oportuno, vi uma das cenas da atual novela das oito da Rede Globo, A Favorita. Confesso que sempre pensei que novelas não são capazes de acrescentar nada às pessoas, mas neste dia vi que até aquilo que não acrescenta em nada pode servir de fato para algo construtivo, deixemos o maniqueísmo de lado, assim como ninguém é bom ou mau em essência, nada é inútil ou desnecessário por completo. Mudei, em parte, minha opinião. Vi uma cena que mostrava uma família, aparentemente com os personagens centrais da trama, a casa era luxuosa e grande, ao mesmo tempo vazia e vulnerável, a comida era farta e exagerada e as relações entre pais e filhos (como já diria Renato Russo) eram um tanto quanto frágeis e desequilibradas. O amor era excessivo, as lágrimas exageradas, as dores inventadas, o importante não existia e o descartável sobrava. Não enxerguei na família da ficção, que não deixa de representar tantas famílias da realidade, o brilho e a segurança no olhar que reconheci nos olhos da família de Porto Feliz, onde eles pareciam dizer uns aos outros “eu sei que posso contar com você." Resumindo, não encontrei a felicidade da qual tive o prazer de compartilhar naquela tarde, naquele passeio, felicidadade que brota daquilo que se convencionou chamar de "família de verdade." Dormi pensando em uma frase de Tolstoi, com a qual ele começa o seu romance Anna Karenina, a frase dizia: “todas as famílias felizes se parecem." Quando finalmente peguei no sono vi que, somente naquele dia, tinha entendido o significado da frase.