domingo, 31 de janeiro de 2010

Relicário





Quando meus olhos foram cruzar os teus
Algo além de um medo
Sutil e delicado
Me assaltou

Quando minha pele foi tocar a tua
Algo além de uma insegurança
Intensa e inesperada
Me decifrou

Quando meus lábios foram misturar-se aos teus
Algo além de uma tempestade
Bela e rara
Me encontrou

Quando meu corpo foi pousar suavemente sobre o teu
Algo além de um prazer
Verdadeiro e guardado
Me reconheceu

Quando os dias foram se acumulando
Algo além de uma serenidade
Companheira e iluminada
Me acalmou

Quando minhas lembranças foram visitar as tuas
Algo além de um relicário
Precioso e sagrado
Me trouxe de volta o que de outra vida ficou

Quando o dia amanheceu
Algo além do fim da noite
Crepuscular e denso
Me completou

Quando eu achei que tinhas ido
Algo além de um desespero ensandecido
Efêmero e profundo
Me guardou

Quando eu achei que era tarde
Algo além de uma história
Nua e muda
Me contou

Que o encanto desse amor,
O tempo apenas preservou...


Ele vai te encontrar
Incerto como uma brisa
Ele vai te acordar
Inconstante como o tempo
Ele vai decifrar sua alma
Misterioso como a lua
Ele vai te proteger
Quieto como o silêncio
Ele vai te entender
Devagar como a calma
Ele vai te assustar
Louco como um drama
Ele vai te arrepiar
Fascinante como a liberdade
Ele vai te curar
Delicado como as pétalas de uma flor
Ele vai te tocar
Afinado como as notas de uma canção
Ele vai te recortar
Firme como um muro
Ele vai te escrever
Lindo como um poema
Ele vai te esperar
Ansioso como um sonho
Ele vai te alucinar
Quente feito brasa
Ele vai te beijar
Suave e doce feito mel
Ele vai te tranqulizar
Grande e encantado feito árvore
Ele vai te completar
Denso e generoso como o céu
Ele vai dizer que te ama
Naquilo que houver de mais belo e eterno
E Ele vai repetir que te ama
Mudo e absurdo
Como um rio a correr livre e profundo

Sem margens que o limitem
Nem medos que o tirem do caminho
Ele vai desaguar no mar
E, com um leve sorriso,
Ele vai despir-se do mundo e te amar
Em um simples sussurro do olhar

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O soluçar do silêncio - Um homem extraordinário e outras histórias, de Tchekhov

Da arte de extrair do cotidiano as coisas simples e construir belíssimas obras de arte, da maestria ao usar as palavras, da habilidade em construir descrições atentas e cuidadosas, do encantamento e carinho ao esculpir cada frase, na sensibilidade em relação à vida humana, na sagacidade, perspicácia e talento literário em enxergar o outro, em curar ou revelar as dores da alma, em fazer da investigação psicológica densa e, ao mesmo tempo, singela a história mais perturbadora dentre todas as suas histórias. Da criatividade que surpreende, do enredo que prende a atenção, faz rir, angustia, revira a memória, cutuca a própria alma, dá forma ao inconsciente, cor ao medo, cheiro ao mistério, beleza à vida humana que em sua obra desfila tão docemente.
Da arte de escrever histórias curtas, que carregam toda sutileza necessária a um conto, de construir personagens reais, produtos de uma mistura tão bem dosada de sentimentos, contradições, medos, ilusões, recordações e sonhos, às vezes, confusos, desiguais e prolongados. Da simplicidade e sensibilidade estética e ética de ser Anton Tchekhov, um presente literário, um provocador de lágrimas, um pequeno milagre destes que, de vez em quando, aparecem por este mundo para algo de realmente lindo nos legar.
Já citado aqui no Impressões, no post “O cochicho do nada” que falava sobre o livro de contos de Tchekhov, “O Beijo e outras histórias”, o Impressões volta, mais uma vez, a falar deste escritor russo que soube, como poucos, iluminar a vida por meio da sua palavra. Em mais uma reunião de contos de Tchekhov, o livro “Um homem extraordinário e outras histórias” reúne contos exemplares do estilo do autor, histórias atmosféricas, cheias de um sentimento de sabedoria e compaixão, além de uma infinita generosidade para com o homem e sua alma multifacetada, taciturna, entrecortada por dramas, vazia de sentido, saciada por ilusões, desejosa de completude, urgente e angustiosamente fascinante.



Conservando a sua linguagem esculpida, poética, simples e, ao mesmo tempo, minuciosa, Tchekhov se revela, mais uma vez, nesta reunião de algumas de suas melhores histórias, um escritor que se afunda na caracterização psicológica de seus personagens e reproduz com isso tipos reais e comuns ao nosso cotidiano, que às vezes passam despercebidos ou andam por aí disfarçados, impostores deles mesmos, acima de tudo, o escritor reproduz a nós mesmos e talvez seja por isso que fascina tanto. Suas páginas, o preto sobre o branco, as entrelinhas mudas e alucinadas, são como espelhos esfumaçados de nossas feições imperfeitas, posto que humanas. Além da maestria na profunda investigação psicológica, Tchekhov abusa das descrições entremeadas por ações, do olhar atento sobre a natureza, sobre a beleza das coisas e do universo estático, tingido de um colorido tão bem enaltecido por ele e por aqueles que sabem de fato fazer arte. É uma combinação de psicologia e suave sensibilidade simplesmente linda! Tchekhov atingiu em sua obra a beleza literária e a beleza das coisas que tantos homens buscam pela vida sem nunca conseguirem encontrá-la ou enxergá-la de fato, sem, muitas vezes, nunca serem dignos dela e, por ser tão belo, por ser transpassado pela beleza, é talvez um enigma, um escritor além das críticas e análises literárias, um escritor que apenas se sente, se impregna, se liberta, um mistério insinuante e solitário, regado por uma réstia de tristeza, iluminado por um sopro de lucidez, sentido e alegria.

Avançando pelas páginas deste livro, encontramos contos como “O homem no estojo”, simplesmente genial, que nos revela de forma sonora e surpreendente, por meio de uma metáfora inteligente e sutil, a vida de um homem que se isolava do próprio mundo, das suas sensações, tomado por medo, invadido por um natural sentimento de solidão, um homem cujo sonho maior sempre fora esconder-se dentro de um estojo, protegido do frio, dos olhares, das vozes, do amor, por toda a eternidade. A construção desse personagem, em toda sua loucura e casmurrice, é plena, perfeita, um momento literário que paira acima da simples e efêmera finitude das coisas, uma obra de raro encanto, sublime e, ao mesmo tempo, tão próxima do cotidiano.

Em “Um homem extraordinário”, o escritor russo aposta novamente na construção esmerada e investigação psicológica de um personagem realmente extraordinário, extraordinário em sua frieza diante da vida, em seu caráter planificado, em seu pensamento burocraticamente e economicamente organizado, um homem que, nas palavras do próprio Tchekhov, torna o próprio ar pesado e faz ruir as paredes tal o medo e a sensação de ódio e desconforto que nos outros provoca. Este conto é particularmente sutil e fascinante, não só pela construção do personagem, mas também pelos detalhes da narrativa que, sabiamente colocados na hora e lugares corretos, fazem com que o leitor esboce um leve sorriso e tenha nos olhos uma expressão de surpresa e espanto, causados por tamanha maestria e talento narrativo.

No conto “Um dia no campo – Ceninha”, Tchekhov emociona pela simplicidade da história, pela bondade e generosidade de alguns personagens que aparecem neste e em outros contos deste livro e, faz os olhos ficarem de repente marejados de lágrimas ao se depararem com a simplicidade e gratuidade dos amores que não são vistos, daqueles que vivem em silêncio, dos quais apenas a lua é testemunha.



Em outra história retirada do cotidiano, “O relado do jardineiro-chefe”, Tchekhov utiliza da memória e do relato de um homem considerado sábio e quieto, para contar uma bela história da qual o personagem principal é um homem generoso, também sábio, que curava as dores do corpo e da alma, sem por isso cobrar nada em troca. Um homem que vivia ensimesmado em leituras, afundado em reflexões e contemplações, considerando o resto de tudo vulgaridades e tolices fabricadas. Neste relato do jardineiro, a mensagem principal é a de que se deve sempre acreditar na dignidade dos homens, conservar uma fé na espécie humana ainda que esta mostre, repetidas vezes que, a exemplo do que um dia disse Shakespeare, “no nosso século perverso e devasso, até a virtude tem de pedir perdão ao vício”.

E assim segue Tchekhov, em “Trapaceiros à força – Historinha de Ano-Novo”, neste conto, o escritor lança mão de toda sua ironia e constante perspicácia para construir uma história divertida e, ao mesmo tempo, de intensa capacidade reflexiva. Nela, motivado cada um por seus interesses, vícios, angústias, vontades e vaidades, os personagens decidem enganar o próprio tempo mexendo nos ponteiros do relógio e, com isso, ora adiantam a chegada do ano-novo, ora recuperam mais um tempo para o ano-velho em um jogo de enganar o tempo no qual eles acabam enganando a si mesmos. Nas entrelinhas, diz Tchekhov da irreversibilidade do passar do tempo, se uns os adiantam, outros o atrasam e ele volta ao correr habitual, os vício e vaidades que esperem...

Outro belíssimo conto dessa coletânea leva o nome de “Criançada”. Nesta história, o escritor reúne toda graça, naturalidade e espontaneidade das crianças aos sentimentos que aos poucos estas vão adquirindo com o passar do tempo e as diversas influências recebidas, que na história vêm à tona durante um jogo no qual se apostam alguns copeques. O genial deste conto é a maneira como o escritor mostra que para as crianças as brigas, ambições, sentimentos de amor-próprio e outras coisinhas mais, logo desaparecem e tudo volta a ficar bem de novo. Nada mais ilustrativo para falar da verdadeira essência da infância, permeada pela inexistência daquele sentimento de mágoa, ódio, inveja, frustração e tédio conservados e regados por muitos adultos ao longo da vida. Talvez por isso a infância seja linda de ser ver, como linda se faz neste conto de Tchekhov.

E as histórias seguem com situações incríveis como a de um peixe enamorado por uma moça que todos os fins de tarde ia se banhar na lagoa em que ele morava, a de um homem solitário que a anos vivia em uma estação de trem apenas com a sua esposa que ele há muito já não amava, descrente de que em sua vida algo de novo ou qualquer desgraça ainda pudesse lhe acontecer posto que para ele tudo de mal já lhe havia acontecido, até que o destino lança mão de suas teias ardilosas e enfeitiçadas e o surpreende com um novo amor e uma nova morada. Há também fragmentos da velhice, recortados por lembranças, por arrependimentos, por lágrimas escondidas porque envergonhadas, por visitas não tão sinceras, por abandonos múltiplos e miseráveis. Há atitudes confusas diante da desgraça alheia, um sentimento de pena que, como todo sentimento de pena, é mesquinho e preguiçoso, tão inútil quanto acovardado.
E, terminando o livro, nos preenche os olhos uma história belíssima tanto pelo enredo como pela delicadeza e esmero na escolha de cada palavra, na descrição de cada sentimento, na cor de cada lembrança, na confusão de cada momento. Tudo isso nos chega por meio de um olhar inumano, de uma inteligente e pensativa cachorrinha, “Cachtánca”, que dá nome ao conto. Por meio deste olhar inumano, aparentemente distante, Tchekhov revela todo fascínio e mesquinhez da alma humana. Traduz como ninguém a falta, o sentimento de angústia, de perda, de saudade, que chega sorrateiro, devagar e, de repente, preenche e perturba a cachorrinha. Também mostra o sentimento de indiferença em relação à vida, de conformismo, uma atitude indolente e desdenhosa em relação a tudo, um enfado permanente, um bufar eterno que na história se revela na figura de um gato, mas que na vida se reflete em muitas pessoas. Com sutileza e maestria, neste conto Tchekhov também pincela a visita da morte, a inquietação e o medo que essa figura sem cor e formas causa em animais ou homens, para depois deixar apenas um rastro de falta e mistério.
De todo o mais que possa ser dito, as palavras não serão tão belas e precisas quanto as dele, é preciso ler e ler-se a si mesmo...

“Tchekhov é um daqueles autores cuja inteligência é tão poderosa que por um momento somos seduzidos pelo prazer de acreditar no progresso humano, na evolução moral da espécie; então, em seguida, vemos que na verdade ele nada mais é que um gigante, uma anomalia, talvez um anjo, e que é bem possível que não tenhamos outro igual nos próximos mil anos”.
Russell Banks

domingo, 24 de janeiro de 2010

Só letras, letras só

O tempo me empurra
algo me perturba
A vida me atiça
algo me arruma
As linhas me contam
algo me disfarça
O mundo me desmaia
algo me abraça
O espaço me aperta
algo me liberta
A lógica me confunde
algo me alucina
A estrada me leva
algo me espera
A saudade me olha
algo me conserta
A volta me perde
algo me diz que a cor dela é verde
mas a data paira incerta


danço-me
na cor da sua alma
balanço-me
nas cordas do teu desejo
reviro-me
quanto te viro do avesso


ferir tuas frases, feitas
deitar em teu colo, mal feita
esboçar teus gestos, inteiros
decorar tuas papalvras, traiçoeiras
traduzir teus mistérios, sem erros
invadir o teu sonho, desfeita
negar tuas noites, perfeitas



vejo tua falta
de perfil no espelho
a refletir minha alma
do invisível agora vejo
a cor e o cheiro


deixa eu pedir
pra que me escreva
deixa eu falar
pra que nunca me esqueça
deixa eu queta ficar
pra que não te aborreça
deixa eu assim te amar
pra que com o meu jeito nenhum outro se pareça
deixa eu sussurrar a eternidade
pra que do meu fascínio
brote a tua liberdade


escutei aquela música
tombei o pescoço de leve
bati os dedos na perna
inundei minha visão de sonhos
forrei meu peito de alegria
senti uma primitiva vontade de dançar
selvagem movimento de corpo
sozinha dançei no meio da sala
não pensei no que o espelho de mim poderia pensar
nem no vizinho mais ou menos chato
e assim me deixei ficar
até o dia se levantar
quando junto da noite resolvi deitar
em um lugar que era de fato uma cama de gato
quando terminar
vou colocar de novo pra tocar
só falta você aqui
vem depressa ser meu par
antes que a vida pare de tocar
e fique apenas a noite a reparar
pelas frestas abertas do telhado
um amor que você não ouve cantar



e aos amores que existem no silêncio
e aos amores que vivem pelos cantos
e aos amores que escorregam pelo tempo
e aos amores que sonham regados pelo vento
e aos amores que esperam a eternidade
e aos amores que pousam sublimes e raros
e aos amores que são como brasa sem idade
e aos amores que aceitam a dor
e aos amores que entendem o próprio amor

na incoerência daquilo que não se entende
aos amores que não são vistos
aos carinhos que sequer são percebidos no recorte das madrugadas
aos beijos mudos e inertes entrecortados por sonos encantados
aos amores que sentem saudade e esperam sem morada
aos amores dos quais a única testemunha é a lua no céu colada
com suas luzes risonhas e ternas a banhar a terra gelada e pálida
com sua graça majestosa e diáfana a iluminar as almas que amam serenas e disfarçadas
a estes o que há de mais belo
a eternidade do presente
desenhada na visão das cores da pessoa amada


M.V

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

As Folhas da Amizade



O morro se estendia alto e ligeiramente embaçado naquele final de tarde de mais um domingo fragmentado. Nele, as casas se penduravam feito bolas em uma imensa árvore de natal, que durante o dia permanecia apagada e à noite era decorada com luzes que podiam turvar a visão de quem olhasse ou torná-la mais ilusoriamente confortada. Mas, geralmente, nos fins de tarde de domingo, o morro ganhava um aspecto melancólico, quase triste, um tanto prolongado, extraviado. As pessoas vagavam sem rumo, arrastadas pelo tempo, por algumas dores, por escondidas saudades, por ambições sublimadas, por sonhos distantes, por promessas falsas e fascinantes. Tentavam disfarçar as sombras de suas almas um tanto quanto esburacadas, de suas paixões e intensidades irremediáveis, buscavam viver - pura e simplesmente - e se os olhares lançados pelos que por ali passassem se fizessem, por vezes, mais atentos, veriam no contorno daquelas vidas pintadas pelo infinito uma alegria ainda fresca, uma luz delicada e discreta no fundo dos olhos, um sentimento próprio daqueles que mesmo reclamando da vida, lutando e sendo derrubados por esta, a amam demais para simplesmente desistir dela, não a odeiam o bastante que não a amem ainda que por instantes.
Mas essa história começa em uma das típicas e costumeiras conversas de domingo, quando os homens rascunham momentos de calma e derradeira distração antes da volta sempre certa da segunda-feira. Em frente ao bar de D. Fátima, tradicional ponto de encontro no morro de que falamos, conversavam quatro mulheres e um homem. As mulheres aparentavam todas mais de cinquenta anos, iam na vida já avançadas o que se revelava não só pelas marcas do tempo, como também pelas marcas dos vícios e pecados que acumulamos ao longo da existência. O homem também deixava transparecer mais ou menos uns cinquenta e cinco anos, um pouco mais seria provável, dificilmente um pouco menos. Eles conversavam animadamente, esboçavam algumas risadas, desenhavam alguns olhares, prolongavam alguma história curiosa, escavavam vez ou outra a memória e, em movimentos coordenados, iam tecendo a teia de uma conversa agradável e divertida pelo que ela tinha de irônico, equivocado, superficial, medíocre, e também pelo que tinha de belo, espontâneo, original e místico.
Falando em um tom de voz tranquilo, levemente debochado, o homem de nossa roda de bar, um tipo quase bonito que não chegava a ser tido como feio, com olhos claros, de um tom esverdeado, pele morena, boca vermelha, nariz arredondado, um queixo sutilmente levantado que lhe dava um ar malandro e, ao mesmo tempo, um pouco desconfiado, iniciou assim sua contribuição à conversação que há um tempo já se dava quando viu que o assunto de que as mulheres falavam resvalava e transbordava no tema amizade.
- Eu tenho um sério problema em relação às amizades. Não consigo mantê-las, confesso que até tento, mas no final nunca consigo. Sou ótimo para fazer amizade – disse ele com um ar amplamente convencido de si mesmo – quando chego a um lugar já converso com todos, tenho uma facilidade incrível para iniciar uma amizade, mas para manter qualquer uma delas, de fato posso me considerar um homem horroroso, não consigo – concluiu ele com um ar de quem termina um raciocínio longo e complicado.
Completando a fala do homem, uma das mulheres bastante loira, com pele bronzeada, roupas decotadas e uma sensualidade provocativa, mas extremamente original que contrastava com os traços finos e delicados de seu rosto, olhos castanhos e boca delicada, falou em tom de êxtase prolongado da sua experiência no quesito manter as amizades.
- Eu já não tenho este problema. Aqui, na academia do morro, a academia do Sérgio “saradão”, vocês já devem ter ouvido falar, muitos aqui do morro frequentam. Bom, o fato é que na academia, conheci há algum tempo, lá se vão uns dezoito anos, um grupo de vinte pessoas que eu nunca mais deixei de ver. Nem todas são aqui do morro, algumas inclusive são senhoras finas, do asfalto, que decidem vir gastar suas energias e manter a forma em uma academia de periferia pra depois se dizerem sem preconceitos, socialmente engajadas, antropologicamente corretas e outros termos complicados que aprendi justamente da convivência com elas. O fato é que todo mês nós nos reunimos na casa de alguém para mantermos o contato e, como eu disse, lá se vão dezoito anos. Algumas delas viram minhas filhas crescerem e me ajudaram muito quando precisei.
Ao que o homem do início prontamente acrescentou, como a enfatizar o que tinha acabado de dizer ou convencer-se a si mesmo do seu caráter em relação à amizade.
- Eu já não mantenho, sou horroroso, mas é uma coisa! Chego em um lugar e converso com todos, mas não mantenho as amizades, fico de ligar e depois não ligo, realmente não sei o que acontece comigo – respirou longamente com um aspecto de inconformismo barato, típico daqueles que não se importam de fato, mas querem se importar ainda que o inconsciente negue essa pretensão e ela se revele falsa nas sutilezas das frases, nas pausas e detalhes das expressões.
A segunda mulher que participava da conversa tinha cabelos ruivos, pele clara, olhar fundo, mãos extremamente compridas e voz quase sonolenta, exalando ares um tanto quanto místicos que combinavam com suas roupas e jóias coloridas, assim falou ela sobre a amizade:
- A amizade é algo complicado e, ao mesmo tempo, sutil e delicado. Só sei de uma coisa, no começo deste ano fiz meu mapa astral com a cartomante Cecília aqui do morro. Todo ano ela faz meu mapa astral e sobre o ano de 2010, ela disse ser esse um ano para vencer medos e inseguranças e cultivar as amizades, algo assim ou parecido com isso.
Ao que o homem do início novamente acrescentou:
- Pois é, mas eu não conservo, ai como sou horroroso – dizia sem exprimir um real sentimento de culpa – não sei o porquê, eu realmente não mantenho.
A conversa ia por esse rumo quando D. Fátima, a dona do bar, mulher incrivelmente culta, afeita às letras e aos livros, cujo sonho sempre fora ser professora ou quem sabe escritora. Mas o mundo, a vida, as coisas do tempo e as entrelinhas do destino a fizeram moradora do morro de que falamos e dona do bar onde a história e a conversa se passam. Morena, de cabelos negros, olhos nostálgicos e quase infinitos com ares típicos da mocidade, voz rouca e dentes amarelos, reflexos de anos a fumar quase que desesperadamente sem cessar e terceira mulher a participar da conversa falou, na realidade, quase cantou, com a cultura de quem sabe das coisas, menos porque leu muitos livros e mais porque viveu muita coisa, perdeu-se em momentos de contemplação do mundo e aprendeu a jogar com os ponteiros do tempo:
- Vocês aí a falar de amizade! Cutucaram-me algumas lembranças que emergem agora do fundo de algum lugar que não sei ao certo onde começa nem por onde vai a terminar. Em outros dias e outras noites, sob um céu salpicado por mais estrelas que o dos dias que agora correm, algumas amigas iam sempre à minha casa, há tempos não as vejo, sentávamos à noite ou, quando as coisas queriam, durante o dia em uma mesa de plástico branca repousada no canto de minha cozinha e ficávamos horas a relembrar dores e amores de outros tempos, a repartir sonhos, despejar medos e angústias, frustrações e ilusões, coisas que inventamos para nós mesmos e que de repente fogem de nós. A conversa não tinha barreiras, era como se corresse livre feito um rio transparente e calmo que apenas se agita lindamente no desmanchar de uma cachoeira, para depois voltar ao seu curso manso e discreto e enfim desaguar abertamente no mar. Adorava aquelas conversas e como ríamos, como éramos felizes gratuitamente e espontaneamente naquelas horas. A conversação, não raras vezes, resvalava por besteiras, loucuras, desesperos. Nela, expúnhamos nossas traições e, repetidas horas, eu sentia como se meu inconsciente se despejasse na mesa e as formas nele disformes fossem ganhando vida e as palavras nele absurdas e mudas fossem adquirindo força e nitidez e era como se as fronteiras entre vida e morte, concreto e abstrato, tempo e espaço se diluíssem, se rompessem de vez. Dizíamos que a nossa amizade era feita sob a estética da penumbra porque todos os dias, quando nos reuníamos, era no escuro, com uma luz quase imperceptível que apenas turvava o ambiente, iluminando-o fracamente. Uma das minhas amigas dizia que no escuro poderíamos imaginar mais e definir a força de nossas palavras ao contar cada detalhe de nossa história. Às vezes, o jogo era difícil, embaraçoso, mas o resultado era sempre estimulante, verdadeiro, legítimo, feito de pura alma, esculpido de essencial memória e amor.
D. Fátima continuava a cantar suas lembranças já com lágrimas a brotarem de seus olhos depois de um tempo escondidas sob a fina parede que os separa do rosto. Este molhado somado a um brilho quase infantil e inocente no olhar, a tornaram singularmente bela e sua palavras, claras, de tamanha força e veracidade, prendiam os olhares vazios de todos os outros integrantes da roda.
- No fim, a vida acabou nos separando, cada um foi para um lado, como pássaros livres que voam longe e alto, não raro para terras distantes, mares profundos, florestas densas, céus de veludo. Fomos como pássaros que outrora se encontraram em um verão doce e suave nos trópicos, onde compartilharam momentos para sempre guardados até que migraram para outras paragens quando o inverno se levantou irremediável e certo, guardando momentos pousados no canto de um coração que sabe conservar certas coisas que não passam. Ao contrário de ti – falava dirigindo-se à mulher que anteriormente falara – não conseguimos nos ver mais, talvez porque algumas fossem almas muito grandes, pássaros com penas tão lindas e ofuscantes que brilham demais para viverem presos em um instante. No entanto, às vezes penso que se as almas não fossem tão brilhantes, a amizade não teria sido como foi, seres pequenos dificilmente são capazes de coisas tão belas, tão espontâneas, não são todas as almas que vivem, que se despejam, que se molham na água da vida, que mordem o veneno da noite, que beliscam os ponteiros do infinito, que se escondem atrás das árvores e rolam nuas pelas areias de um coração amigo e não raro amante. O melhor da vida às vezes dura pouco na finitude e nos limites do tempo para conservar-se eterno na vastidão dos sentidos e nos mistérios da memória a perfurar insistente os anos e os dramas. Manter contato pode ser apenas um detalhe, que não define uma amizade, acho que o contato estragaria nossos dias de penumbra de outrora na branca mesa de plástico que ainda guardo em casa. O tempo muda, as coisas e as pessoas acabam mudando com ele, o importante são as boas recordações, as boas ações, que definem os bons momentos.
Ao que o homem, insistente e reticente, acrescentou:
- É, lindas palavras, belas, mas eu não conservo, sou horrível com essas coisas, como posso ser assim? Não mantenho, sou HO-RRO-RO-SO.
A quarta mulher que ainda nessa história não apareceu, também morena, de pele escura, ombros largos, gestos amplos e bem marcados, visivelmente irritada com o homem que ou pensava dos outros serem surdos ou precisava repetir suas declarações mil vezes a si mesmo como que para preencher o vazio cavado pela soberba e superficialidade de seu caráter assim declarou:
- Não cansas de falar que não conservas suas amizades caro senhor! Pois se a terra não o ajuda quem sabe os deuses não intercederão por ti. Nossa querida Cecília, cartomante do bairro, como nesta conversa já foi apresentada, disse-me certa vez de ótima simpatia para conservar amores ou amizades. Faz o seguinte, coloca, em frente à casa de alguém que outrora foi seu amigo e agora não é mais, por uma razão ou outra, ou porque você não consegue mais procurá-lo ou porque com você o outro brigou e não quer mais ver sua cara, uma garrafa de champanhe rosé com rosas vermelhas dentro. Ao lado da garrafa uma vela, também vermelha, acesa. Deixe lá por uns dias e veja o resultado.
O anúncio da simpatia e a fala visivelmente irritada da mulher deram um fim a conversa deste fim de tarde de domingo. Todos pareciam meio emocionados com a fala de D. Fátima e se emocionados não estavam, ao menos pareciam taciturnos e longamente pensativos, como a refletir sobre a intensidade e brevidade das coisas, de alguns momentos pintados pelo destino com cores nem sempre pálidas e cinzas.
Depois de alguns dias, D. Fátima, a dona do bar, passava distraidamente em frente à casa do homem que dizia não conseguir conservar as amizades, que outro dia mesmo esteve em uma das mesas de seu bar, em longa e acalorada conversa. Foi quando viu, já esboçando uma expressão de surpresa e iluminada compreensão, uma garrafa de champanhe rosé, nem tão grande nem tão pequena, com rosas vermelhas dentro e uma bela vela vermelha acesa bem ao lado da garrafa em frente à casa do tal homem que ela sabia onde morava posto que no morro, mesmo sem conversar com algumas pessoas, todos sabem da vida de quase todos, não por fofoca ou falação desnecessária, mas porque nesses lugares o abandono, a dor, a melancolia ou as simples alegrias aproximam as pessoas quase que automaticamente.
Diante da visão da simpatia, tomada por ares místicos e espiritualizados, pensou D. Fátima, taciturna e misteriosa, consigo mesma:
- É, talvez realmente o que ele precisasse era aprender a conservar a si mesmo – e, com uma liberdade maravilhosa típica daqueles que guardam e conservam boas recordações de dias em mesas de plástico sob penumbras misteriosas, concluiu a dona do bar - às simpatias e sortilégios do destino a loucura insana e irresistivelmente ordinária dos homens.
M.V


segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Rosas Verdes plantadas no mar



Sinto a vida densa
amadurecida
inconstante
tal como a infância desencontrada

Sinto as vozes salientes
sutis
mudas
tal como se fossem silenciosamente contentes

Sinto o mar quase transparente
quente
brilhante
tal como rua salpicada de gente

Sinto a areia delicada
recortada pela praia
desafiada pelas ondas
pisada pelos homens
enfim,
seduzida pelo sol

Sinto o tempo se diluindo
o sol queimando forte
a brisa semeando ventos
ventos a pentear os corpos
quase sem memória do que sentem

E me sinto eu esmagada pelos dias
intensa
fluída
tal como um céu que se torna tempestuoso

Sinto acariciar meu peito o barulho das ondas
a insistência do sol
os sorrisos expressivos
a gratuidade da vida
que pulsa, grita
também ela a abraçar infinitamente o mar

Sinto o barulho teimoso se recortar
saltar como camada
na memória talhada
só quando me conhecer ele voltará
meu medo é que não volte
e, caprichoso
minha saudade alimente
monstruosamente fascinante
feito cor e barulho de mar

e sinto que ainda que do resto não se saiba
no que empresta o fim da terra
aprende-se derradeiramente
a sutileza perspicaz e reticente do que é amar




busco a concha na areia encravada
levo-a pra casa
concha que encobre a esperança deslizante
de o mar nela guardar

pouso-a no meu ouvido
sorrateiro sortilégio de imaginar
escuto deliciosamente o eterno dançar das ondas a quebrar
não escuto o abraço infinito entre céu e mar

meu coração desfez-se em pedaços
misturou-se aos restos de areia pregados na concha
às impressões tão vagas do passado
e refletiu-se na impaciência do teu olhar




A vista do mar é turva
as diferenças seguem a desfilar
quase a navegar

A vida se faz múltipla
ainda que muitas dignas não sejam
de que o sol lhes bata no rosto sem cessar

de que a areia lhes acaricie os pés
de que a água lhes molhe a alma
de que o vento lhes contorne os cabelos

No fim dos dramas
nos recebem a calma e o começo
de uma eterna imensidão
onde os que sentem se inventam
os medíocres apenas erram em vão
seguem desviando
contemplando sem admirar
boiando sem mergulhar
pisando sem caminhar

eu, talvez, apenas goste de sonhar
ansiosa por inventar
uma cena para amar
e quando o sol fechar meus olhos
já não verei o mar
se antes a vista era turva
vista já não há mais
apenas um ar denso
vozes confusas
cores cinzentas
texturas ásperas
cheiros sombrios
sufocantes calafrios
espelhos desafiados

te beijo entre sons alucinados
na tua boca um gosto salgado
na minha um segredo guardado



Selo do meu coração
confuso
provocas em mim tanta alucinação
horizonte turvo de minha vista falha
embaçado
desenha sombras a repousar na praia
fugacidade derradeira de meus dias
certa
torna-me intensa e sedenta por rimas
sol que agora queima as minhas costas
ardente
escava meu abismo sem formas
de tantas ideias desencontradas e inexistentes

dedos a remexer doces e constantes a areia
sutis
quebram as cordas do tempo
alheio
olhos que curam as aflições da alma
infinitos
ancorados estamos no fim dos mundos
mudos
no oceanos dos tempos
absurdos



olho
medito
sonho
o mar é reto
recortado pelas formas enegrecidas de meu chinelo
você, apenas quieto
por quanto tempo
não se sabe ao certo



vai começar a armadilha do tempo
o inferno prolongado dos dias
o deitar preguiçoso das horas
a falta do que fazer da moça pousada ali na esquina
meu peito já abre as portas pra minha ordinária agonia
às vezes acho o tempo cruel demais
mas penso que pra todos deve ser assim
só queria sumir por uns dias
dormir
e só acordar
quando seus olhos estiverem olhando pra mim



pessoas vêm e vão
meus olhos as seguem e as esquecem
meu peito se aperta e se abre
tua voz some e enlouquece
teu riso confunde e esclarece
minhas lágrimas não sabem se
se escondem ou se aparecem



Já tenho de ti tanta saudade
que a solidão já plantou sua sombra sobre mim
os ponteiros já me desafiaram
os olhares já me atordoaram
os dias já estão insuportáveis
meu caso é perdido
disso muitos já me avisaram



sei que me ama
é disso que preciso saber
para não me recortar em dramas
e terminar sem você
na minha cama



Um nó na garganta
calou-me a voz
tornou muda minha palavra
escondeu angustiosamente uma lágrima
com estes versos
não rima mais nada


M.v

a dias infinitos em uma bela praia

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Coração em fuga

corações em fuga, de António Manuel Pinto da Silva


Às vezes penso onde estaria você agora
E penso demais
Já vou confessando sem demora
E penso inutilmente
Pois sei que a resposta pode vir ou não
E se vier pode andar entre o verdadeiro ou o falso
Então já não depende de mim
Pra que pensar assim
Mas penso
Inconscientemente
Sei que no fundo o que eu preciso
É confiar mais em mim
Literalmente


Sutilmente, abrangente, descontente,
Moralmente, inadvertidamente,
Contente, enlouquecedoramente,
Irritantemente, agressivamente, maravilhosamente,
Velozmente, calmamente, devastadoramente,
Imaginativamente, demoradamente,
Passivamente, assustadoramente, maliciosamente,
Sabiamente, disfarçadamente, inexoravelmente,
Despudoradamente, facilmente, inquietantemente,
Nebulosamente, fascinantemente, provocativamente,
Sedutoramente, eroticamente, sexualmente,
Casualmente, intencionalmente, deslavadamente
Às vezes não sei ao certo o que você sente


Quando estou perto, inquieta
Quando estou inquieta, longe
Quando estou longe, saudade,
Quando estou com saudade, fome
Quando estou com fome, vazia
Quando estou vazia, sonho
Quando sonho, te vejo
Quando te vejo, me escondo
Quando me escondo, te acho
Quando te acho, me assombro
Quando me assombro, te toco
Quando te toco, me deito
Quando me deito, te beijo
Quando te beijo, me toma
Quando me toma, te desejo
Quando te desejo, me arrepia
Quando me arrepia, te escrevo
Quando te escrevo, te amo
Quando te amo, te escrevo


Lembro de quando te vi primeiro
De como era lindo e inteiro
Lembro de tua voz sedutora
De como era impossível teu cheiro
Lembro de teu olhar tristonho
De como era sutil e certeiro
Lembro de tuas idéias tão belas
De como me conquistaram faceiras
Lembro de quando toquei seu pescoço
De como reagistes de primeiro
Lembro do toque do telefone
De como me ligava sem rodeio
Lembro de nós dois nos desejando
De como pedia por um beijo
Lembro de minha vontade de dá-lo
De como queria que fosses meu por inteiro
Lembro do dia em que me escolheste
De como pra mim veio sem falsete
Lembro daquela primeira viagem
De como sobre nós pairavam belas luzes acesas
Lembro de cada momento
De como tudo aconteceu sorrateiramente
Lembro agora de outras vidas
De como nos uniu o destino
Fazendo-nos belos e eternos
Pousados nas costas desta última rima


Silêncio
Alguns movimentos
Olhares disfarçados
Suspiros de sofrimento
A primeira palavra
A tua aparece de repente
Cara virada
Teus beijos pousam levemente
Olhos molhados
Sussurra que me ama pra sempre
Meu peito se aperta
Meu corpo treme
Minha pele se arrepia
Minha alma se espreme
Em instantes me toma
Penso em ir embora
Cansada de mim mesma
Te beijo quando dizes que me adora
O desejo nos distrai
Enlouquecemos alisando a madrugada
A essa altura já esqueci a mágoa
Sem medo nos amamos
de porta aberta
luz apagada


no escuro consigo ver teus olhos
iluminados por uma fresta de luz
a irromper do seio da madrugada
madrugada que ama,
disfarçada



acho que não mereces
muitas de minhas letras
mesmo assim elas te escolhem
antes que eu escreva
quando escrevo
fico quieta a escutar meus dedos
eles repetem loucamente o que já sei
nas entrelinhas de minha literatura
insistem em dizer
que dela a melhor página
é definitivamente você
um dia o porquê ainda descobrirei
de tamanha atração
entre minha letra
e aquele que sempre amarei

M.V

terça-feira, 5 de janeiro de 2010



Acho que estou mais ou menos bem
tirando os dias que não passam
ou passam e eu nem vejo
tirando o calor de hora em hora
e a praia que demora
tirando a saudade dos teus cheiros
e do gosto dos teus beijos
meus dias são iguais
diferenças banais
as letras me ocupam demais
às vezes passeio fora delas sem nada a mais
quero te encontrar depressa
e mandar que recato, moral,
pesquisa, timidez, medo ou insegurança
descansem em paz.
mas acho que estou bem
não direi palavras criadas para definir
são signos soltos a dissolver-se no ar
prefiro esperar que a verdade de tudo
e a saudade de muito
seja dita e saciada
quando deitar-me no teu olhar

M.V


não quero saber quantas namoradas
que eu não descobri
silêncios e desvios que não percebi
nem quero saber
sobre aquele fim de semana que não te vi
do teu pouco caso com o meu sofrimento
de nenhum movimento a meu favor
de nenhum amor que eu me lembre

não quero saber
quantas mentiras pra me acalmar
quantos mares a navegar sem mim
que fim deram aqueles retratos
se aquele abraço era mesmo assim

não quero saber
quantos meses você me deixou
a delirar e quantos presentes me deu
sem escolher e quantos beijos foram dados
por dar

não quero saber dos requintes
de crueldade nem do momento
fatal

o que não se sabe
não faz mal

Martha Medeiros

O Retrato de uma Alma

"Não podia acreditar nessa mudança; entretanto, era um fato. Haveria, acaso, alguma afinidade sutil entre os átomos químicos, que se aglutinavam em forma de cor na tela, e a alma que ele levava dentro de si? Seria possível que eles concretizassem o que a alma imaginava, que lhe convertesse os sonhos em realidade? Ou haveria outra razão mais terrível? Dorian estremeceu transido de pavor e voltou ao divã. Dali espreitava o retrato, com uma expressão horrorizada". (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

Um homem de rara e sedutora beleza, de nome Dorian Gray, portador de um caráter ingênuo, de uma alma pura e sonhadora. Um pintor, Basil Hallward, em busca de um ideal estético, da harmonia e perfeição de formas, da combinação perfeita entre arte e expressão, vida e representação, de algo perfeito e irresistivelmente belo, capaz de ser alimento e inspiração da sua arte. Um aristocrático, Lorde Henry, cheio de teorias, conceitos prontos, munidos de certa dose de preconceito e hipocrisia, formulados para explicar a vida por meio de visões simplistas, maniqueístas, dicotômicas, olhares superficiais lançados sobre a teia tão complexa da existência humana, não raro dupla, múltipla ou, muitas vezes, nula. De todas as ideias de Lorde Henry, o ponto principal seria tirar da vida o máximo de prazer e vivenciar as mais diferentes e improváveis experiências, não importando de que natureza fossem estas últimas. Ter como principal teoria nada mais do que a própria vida e fazer dela uma busca frenética por prazer na direção de um novo hedonismo baseado, acima de tudo, no prazer e culto aos sentidos. Como finalidade suprema de sua pregação, musical e melancólica, estava a espiritualização dos sentidos. “Curar a alma por meio dos sentidos, e os sentidos por meio da alma”, com esta frase e alguns livros, Lorde Henry seduzira e envenenara em doses lentas e incendiárias Dorian Gray, extinguindo aos poucos a beleza de sua juventude, a bondade primitiva de seu coração, a ponto de que este último chegasse a considerar o pecado como um simples meio de realizar o conceito de belo.
É, basicamente, em torno desses três personagens que o escritor inglês Oscar Wilde constrói com sensibilidade, perspicácia e uma linguagem extremamente lapidada, o enredo de uma de suas mais famosas obras, O Retrato de Dorian Gray.
Ao deitar os olhos sobre as primeiras linhas do livro e, aos poucos, ir avançando pelas suas páginas, o que primeiro salta aos olhos é o estilo do autor, um estilo que se faz simples e, ao mesmo tempo, denso, reflexivo, a tal ponto que se chega a demorar um tempo em apenas uma página, na ânsia de apreender a riqueza de detalhes que ela apresenta de maneira sutil e inteligente em descrições constantes, entremeadas por ações, diáfanas e belas. Complementando o estilo denso e reflexivo de Oscar Wilde, a linguagem do livro mostra-se portadora de uma aguçada e sensível veia poética, de uma escolha minuciosa das palavras e expressões, de um cuidado e esmero na construção das frases. A linguagem é fascinante, tão perfeita em provocar o efeito que o autor busca que, em certas linhas, chega a angustiar o leitor.
Em alguns momentos, era como se quisesse penetrar nas entrelinhas deste livro e pousar meu corpo sobre as letras escritas em uma tentativa de que elas passassem das páginas brancas escritas para minha pele sedenta por letras e vazia.
Estilo e linguagem dão forma a uma obra que une as duas pontas da arte e da beleza. O Retrato de Dorian Gray mostra que a arte, como diz o próprio Oscar Wilde, muitas vezes é absolutamente inútil, mas, neste caso, a inutilidade de uma obra de arte se legitima pela intensidade e constante admiração que dela se faz. A arte aparece como, ao contrário do que se pensa, nem sempre um meio de revelar os sentimentos de quem a produz, mas também um meio de escondê-los ao mesmo tempo em que a paixão com que escrevemos um texto ou pintamos um quadro resvala, inevitavelmente, na obra produzida e pode fazer desta uma obra-prima, o mais terrível dos sortilégios, o repugnante ou maravilhoso espelho de uma alma.
Na esteira das discussões sobre a arte, Oscar Wilde traz em O Retrato de Dorian Gray, diversas reflexões sobre a vida, o amor, as mulheres, as relações amorosas, o prazer, a busca e o conhecimento dos sentidos, a existência da alma e a lógica ilógica da beleza. Uma beleza que, se para Dostoiévski é capaz de salvar o mundo e deitá-lo aos seus pés, revela-se em outro ângulo para Oscar Wilde. Este último traz em sua obra o outro lado da beleza, aquele que retoma a tragédia grega de Narciso, apaixonado e enlouquecido pela própria imagem refletida sobre a água. Na obra, por meio dos dramas e fraquezas de Dorian Gray, o personagem principal, a beleza se mostra ardilosa, repugnante e traiçoeira quando resvala na soberba, quando cega os sentidos, quando desafia a própria alma. Dorian tem um belo retrato pintado por Basil e, no momento em que o vê pela primeira vez, fascinado pela própria beleza e pureza da juventude pede, em um acesso de ilusão e prepotência, que para sempre sua aparência se conserve jovem, sem as marcas trazidas pelo tempo, pela idade e pelos vícios e vulgaridades que alguns homens acumulam ao longo da vida.


Em um sábio e inteligente jogo onde quem dá as cartas é o destino e a arte literária, Oscar Wilde constrói um enredo no qual, Dorian de fato tem seu pedido atendido, sua aparência segue jovem, sem os vincos do tempo, intacta, com o mesmo ar puro e ingênuo da mocidade, mas, à medida que ele entrega sua vida aos prazeres mais vulgares, às ações mais vis e cruéis, à destruição da alma de outros, ele vê, ao poucos, a sua imagem pintada por Basil de forma perfeita e magistral, adquirir um aspecto cada vez mais assustado, terrível, repugnante. É como se ao olhar o quadro fosse possível ler a alma de Dorian, ver como os vícios, mais do que a idade, haviam destruído sua beleza, tornado-a apagada, quase que imperceptível.
Nesse lance que revela uma grande sensibilidade e um indiscutível talento literário, Oscar Wilde mostra que a beleza é tremendamente efêmera e não se sustenta quando junto com ela não existem a coragem para ser bom, o talento para ser humano, a sensibilidade para guardar eternamente boas recordações. Em poucas palavras, ele revela que a beleza de fato deve ser contemplada, o mundo deve buscar o belo, mas este, por ser fascinante e enigmático, precisa, acima de tudo, saber existir para conservar-se original nas paredes da essência sutil de cada um, aquela que chamamos de alma. As duas faces da beleza são, de fato, a de Dostoiévski e de Oscar Wilde, em um movimento ela salva o mundo, em outro, também pode destruir uma alma.
Ao revelar os abismos da beleza, o escritor inglês também consegue na sua história revelar ao mundo a existência da alma. Na sua história, ele materializa o conceito de alma na forma de uma obra de arte. Esta deixa de habitar o campo do abstrato humano e passa a habitar, de forma material, o que de mais abstrato um ser humano pode produzir – a arte, conferindo a ela um caráter de vida própria, a arte que vive na alma, ou a alma que vive na arte.
Uma das chaves interpretativas do livro pode ser a psicológica, Dorian Gray sucumbe aos seus dramas, tenta escapar de seus medos, é envenenado por um livro e seduzido pelas teorias de Lorde Henry no mesmo movimento em que seduzia o mundo com sua beleza, entrega-se às drogas e aos prazeres mais mundanos, escapa da morte salvo pela máscara da mocidade, mas não escapa dela quando tenta extinguir a própria alma. Ao longo de toda a história, seus dramas são o drama do leitor, as descrições belíssimas do romance dividem-se com um mergulho profundo na escuridão da alma humana e na estética da arte.
Para citar Oscar Wilde, este diz dos livros que não existe livro moral nem imoral, eles são bem ou mal escritos. Sem dúvida alguma, O Retrato de Dorian Gray paira acima da moral e aparece como uma preciosidade ou pérola literária, muito bem escrita, exalando o cheiro de pétalas de rosas que perpassa e transcende toda a narrativa.


"Um grito de terror e indignação irrompeu-lhe dos lábios. Não se operara mudança visível, salvo nos olhos, onde Luzia uma expressão nova de astúcia, e na boca vincada, um trejeito hipócrita. A imagem odiosa tornara-se, se ainda era possível, mais repulsiva. O orvalho rubro continuava a porejar, mais vivo, como sangue recém-vertido... [...] E ele estaria livre, livre dessa tela monstruosa dotada de alma, livre de suas admoestações hediondas. Viveria finalmente em paz. Empunhou, pois, a faca e trespassou o retrato. Ecoou um grito, seguido de estrépito. O grito pavoroso, na sua agonia, fora tão lancinante, que a criadagem acordou e acudiu alarmada. [...] Ao entrarem na sala, viram na parede o magnífico retrato do amo, como eles o tinham conhecido, em pleno apogeu da sua esplêndida mocidade e beleza. No chão, jazia o cadáver de um homem em traje de rigor, com uma faca cravada no peito. Ele estava lívido, enrugado e repugnante. Só pelos anéis é que seus criados conseguiram identificá-lo". (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Fios despenteados




Quero rabiscar alguma coisa,
mas não sei ao certo o que
registrar nessas linhas confusas
tão ausentes e sedentas de você.

Ontem, alheia e sonhadora,
vinha olhando a noite
tremendamente escura.
Tudo simplesmente passeava e,
meus olhos pareciam verter securas.

Como estava linda a cena do mundo
enquadrada pela minha janela esfumaçada.
E eu era apenas um fio de lembranças
a deitarem sutis sobre meu corpo arrepiado.

Pousei meus olhos no céu
tal como outrora os havia na tua boca pousado.
Ele estava maquiado de estrelas,
brilhante e suado, tal como teu corpo
a delirar no meu feito louco, levemente insensato.

Aos poucos, meus olhos turvaram-se.
As luzes da vida se embaçaram.
Em uma confusão de percepções,
eu sabia que apenas morria de saudade.
Uma morte em que não havia dor,
apenas tons de um amor que me abraçavam.

E como um corpo transviado em alma,
deitei meus olhos sobre aquela parte do céu
onde estrelas não mais se encontram.
Há apenas uma insondável escuridão
a insinuar-se sob um negro e reticente véu.




tenho os cabelos molhados
desencontrados
despenteados
naturalmente jogados
nem um pouco amassados

tenho o corpo cansado
o silêncio enxugado
na boca um gosto torto de mel
um tanto amargo
pouco e levemente adocicado

tenho na consciência
planos absurdos amontoados
esbarrados na demência
eu e você escondidos
no meio do nada
na beira da praia
vivendo só de amor
não precisamos de mais nada

ah como tenho em mim
múltiplas mulheres
tantas trivialidades
algumas de rosto pálido
boca trêmula
outras com faces ruborizadas
boca sensual e densa

tenho uma espera lenta
uma promessa que entra
emudece
entontece
e vai embora ligeira
por um caminho

onde já não mais se faz inteira

às vezes vai não tão ligeira
de mim ela sai
e aí só lembro de ti
de como em instantes se vai
deixando no teu lugar
uma mulher
que agora só pode ser uma
invadida pela saudade
invadida pelo som
de uma porta que bate
ou de um carro que parte

levanto
me olho no espelho
meu cabelo está tremendamente embaraçado
mas parece lindo
com novos tons dourados
misturados à cor mais escura do passado
assim me faço inteira
reunindo minhas partes
em uma espera que
no mesmo movimento que divide
em mim também reparte




Chamo o lugar que nos espera,
o lugar onde viveremos de amor
banhos de mar
ventos de matas
beijos do céu
sombras deitadas.

Chamo o lugar que nos abraça,
o lugar onde viveremos de sol
a bater em nossos rostos
a acalmar nossos passos
a tornar sublime nosso olhar
a erotizar nosso corpos
a fantasiar nossos momentos
a diluir nosso tempo
a dividir o céu com o luar.

Chamo o lugar que nos interroga,
o lugar que possui um romance com nossas almas,
e com elas tem a maior afinidade
sabe refleti-las
sabe enaltecê-las
sabe emoldurá-las
nos cantos puros da curiosidade,
nos recortes aflitivos da vaidade.


Chamo o lugar que cuidará do nosso amor,
que o envolverá em milhares de pétalas de flores
de todas as cores
e o fará tão fascinante
como o mais doce e suave dos perfumes,
dissolvido no suor de nossos corpos amantes

no espaço de breves e palpáveis instantes.

Chamo o lugar que não se chama pelo nome.
Ainda descobrirei como o chamo.
Enquanto isso,
te amo...

M.V

domingo, 3 de janeiro de 2010

Fragmento

"Dizem que há diversas maneiras de mentir; mas a mais repugnante de todas é dizer a verdade, a verdade inteira, ocultando a alma dos fatos. Porque os fatos são sempre vazios, são recipientes que vão tomar a forma do sentimento que os preencha".

"O amor é algo maravilhoso demais para que a gente fique se preocupando com o destino de duas pessoas que não fizeram nada mais do que sentí-lo, de maneira inexplicável".

Juan Carlos Onetti, O Poço