segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O soluçar do silêncio - Um homem extraordinário e outras histórias, de Tchekhov

Da arte de extrair do cotidiano as coisas simples e construir belíssimas obras de arte, da maestria ao usar as palavras, da habilidade em construir descrições atentas e cuidadosas, do encantamento e carinho ao esculpir cada frase, na sensibilidade em relação à vida humana, na sagacidade, perspicácia e talento literário em enxergar o outro, em curar ou revelar as dores da alma, em fazer da investigação psicológica densa e, ao mesmo tempo, singela a história mais perturbadora dentre todas as suas histórias. Da criatividade que surpreende, do enredo que prende a atenção, faz rir, angustia, revira a memória, cutuca a própria alma, dá forma ao inconsciente, cor ao medo, cheiro ao mistério, beleza à vida humana que em sua obra desfila tão docemente.
Da arte de escrever histórias curtas, que carregam toda sutileza necessária a um conto, de construir personagens reais, produtos de uma mistura tão bem dosada de sentimentos, contradições, medos, ilusões, recordações e sonhos, às vezes, confusos, desiguais e prolongados. Da simplicidade e sensibilidade estética e ética de ser Anton Tchekhov, um presente literário, um provocador de lágrimas, um pequeno milagre destes que, de vez em quando, aparecem por este mundo para algo de realmente lindo nos legar.
Já citado aqui no Impressões, no post “O cochicho do nada” que falava sobre o livro de contos de Tchekhov, “O Beijo e outras histórias”, o Impressões volta, mais uma vez, a falar deste escritor russo que soube, como poucos, iluminar a vida por meio da sua palavra. Em mais uma reunião de contos de Tchekhov, o livro “Um homem extraordinário e outras histórias” reúne contos exemplares do estilo do autor, histórias atmosféricas, cheias de um sentimento de sabedoria e compaixão, além de uma infinita generosidade para com o homem e sua alma multifacetada, taciturna, entrecortada por dramas, vazia de sentido, saciada por ilusões, desejosa de completude, urgente e angustiosamente fascinante.



Conservando a sua linguagem esculpida, poética, simples e, ao mesmo tempo, minuciosa, Tchekhov se revela, mais uma vez, nesta reunião de algumas de suas melhores histórias, um escritor que se afunda na caracterização psicológica de seus personagens e reproduz com isso tipos reais e comuns ao nosso cotidiano, que às vezes passam despercebidos ou andam por aí disfarçados, impostores deles mesmos, acima de tudo, o escritor reproduz a nós mesmos e talvez seja por isso que fascina tanto. Suas páginas, o preto sobre o branco, as entrelinhas mudas e alucinadas, são como espelhos esfumaçados de nossas feições imperfeitas, posto que humanas. Além da maestria na profunda investigação psicológica, Tchekhov abusa das descrições entremeadas por ações, do olhar atento sobre a natureza, sobre a beleza das coisas e do universo estático, tingido de um colorido tão bem enaltecido por ele e por aqueles que sabem de fato fazer arte. É uma combinação de psicologia e suave sensibilidade simplesmente linda! Tchekhov atingiu em sua obra a beleza literária e a beleza das coisas que tantos homens buscam pela vida sem nunca conseguirem encontrá-la ou enxergá-la de fato, sem, muitas vezes, nunca serem dignos dela e, por ser tão belo, por ser transpassado pela beleza, é talvez um enigma, um escritor além das críticas e análises literárias, um escritor que apenas se sente, se impregna, se liberta, um mistério insinuante e solitário, regado por uma réstia de tristeza, iluminado por um sopro de lucidez, sentido e alegria.

Avançando pelas páginas deste livro, encontramos contos como “O homem no estojo”, simplesmente genial, que nos revela de forma sonora e surpreendente, por meio de uma metáfora inteligente e sutil, a vida de um homem que se isolava do próprio mundo, das suas sensações, tomado por medo, invadido por um natural sentimento de solidão, um homem cujo sonho maior sempre fora esconder-se dentro de um estojo, protegido do frio, dos olhares, das vozes, do amor, por toda a eternidade. A construção desse personagem, em toda sua loucura e casmurrice, é plena, perfeita, um momento literário que paira acima da simples e efêmera finitude das coisas, uma obra de raro encanto, sublime e, ao mesmo tempo, tão próxima do cotidiano.

Em “Um homem extraordinário”, o escritor russo aposta novamente na construção esmerada e investigação psicológica de um personagem realmente extraordinário, extraordinário em sua frieza diante da vida, em seu caráter planificado, em seu pensamento burocraticamente e economicamente organizado, um homem que, nas palavras do próprio Tchekhov, torna o próprio ar pesado e faz ruir as paredes tal o medo e a sensação de ódio e desconforto que nos outros provoca. Este conto é particularmente sutil e fascinante, não só pela construção do personagem, mas também pelos detalhes da narrativa que, sabiamente colocados na hora e lugares corretos, fazem com que o leitor esboce um leve sorriso e tenha nos olhos uma expressão de surpresa e espanto, causados por tamanha maestria e talento narrativo.

No conto “Um dia no campo – Ceninha”, Tchekhov emociona pela simplicidade da história, pela bondade e generosidade de alguns personagens que aparecem neste e em outros contos deste livro e, faz os olhos ficarem de repente marejados de lágrimas ao se depararem com a simplicidade e gratuidade dos amores que não são vistos, daqueles que vivem em silêncio, dos quais apenas a lua é testemunha.



Em outra história retirada do cotidiano, “O relado do jardineiro-chefe”, Tchekhov utiliza da memória e do relato de um homem considerado sábio e quieto, para contar uma bela história da qual o personagem principal é um homem generoso, também sábio, que curava as dores do corpo e da alma, sem por isso cobrar nada em troca. Um homem que vivia ensimesmado em leituras, afundado em reflexões e contemplações, considerando o resto de tudo vulgaridades e tolices fabricadas. Neste relato do jardineiro, a mensagem principal é a de que se deve sempre acreditar na dignidade dos homens, conservar uma fé na espécie humana ainda que esta mostre, repetidas vezes que, a exemplo do que um dia disse Shakespeare, “no nosso século perverso e devasso, até a virtude tem de pedir perdão ao vício”.

E assim segue Tchekhov, em “Trapaceiros à força – Historinha de Ano-Novo”, neste conto, o escritor lança mão de toda sua ironia e constante perspicácia para construir uma história divertida e, ao mesmo tempo, de intensa capacidade reflexiva. Nela, motivado cada um por seus interesses, vícios, angústias, vontades e vaidades, os personagens decidem enganar o próprio tempo mexendo nos ponteiros do relógio e, com isso, ora adiantam a chegada do ano-novo, ora recuperam mais um tempo para o ano-velho em um jogo de enganar o tempo no qual eles acabam enganando a si mesmos. Nas entrelinhas, diz Tchekhov da irreversibilidade do passar do tempo, se uns os adiantam, outros o atrasam e ele volta ao correr habitual, os vício e vaidades que esperem...

Outro belíssimo conto dessa coletânea leva o nome de “Criançada”. Nesta história, o escritor reúne toda graça, naturalidade e espontaneidade das crianças aos sentimentos que aos poucos estas vão adquirindo com o passar do tempo e as diversas influências recebidas, que na história vêm à tona durante um jogo no qual se apostam alguns copeques. O genial deste conto é a maneira como o escritor mostra que para as crianças as brigas, ambições, sentimentos de amor-próprio e outras coisinhas mais, logo desaparecem e tudo volta a ficar bem de novo. Nada mais ilustrativo para falar da verdadeira essência da infância, permeada pela inexistência daquele sentimento de mágoa, ódio, inveja, frustração e tédio conservados e regados por muitos adultos ao longo da vida. Talvez por isso a infância seja linda de ser ver, como linda se faz neste conto de Tchekhov.

E as histórias seguem com situações incríveis como a de um peixe enamorado por uma moça que todos os fins de tarde ia se banhar na lagoa em que ele morava, a de um homem solitário que a anos vivia em uma estação de trem apenas com a sua esposa que ele há muito já não amava, descrente de que em sua vida algo de novo ou qualquer desgraça ainda pudesse lhe acontecer posto que para ele tudo de mal já lhe havia acontecido, até que o destino lança mão de suas teias ardilosas e enfeitiçadas e o surpreende com um novo amor e uma nova morada. Há também fragmentos da velhice, recortados por lembranças, por arrependimentos, por lágrimas escondidas porque envergonhadas, por visitas não tão sinceras, por abandonos múltiplos e miseráveis. Há atitudes confusas diante da desgraça alheia, um sentimento de pena que, como todo sentimento de pena, é mesquinho e preguiçoso, tão inútil quanto acovardado.
E, terminando o livro, nos preenche os olhos uma história belíssima tanto pelo enredo como pela delicadeza e esmero na escolha de cada palavra, na descrição de cada sentimento, na cor de cada lembrança, na confusão de cada momento. Tudo isso nos chega por meio de um olhar inumano, de uma inteligente e pensativa cachorrinha, “Cachtánca”, que dá nome ao conto. Por meio deste olhar inumano, aparentemente distante, Tchekhov revela todo fascínio e mesquinhez da alma humana. Traduz como ninguém a falta, o sentimento de angústia, de perda, de saudade, que chega sorrateiro, devagar e, de repente, preenche e perturba a cachorrinha. Também mostra o sentimento de indiferença em relação à vida, de conformismo, uma atitude indolente e desdenhosa em relação a tudo, um enfado permanente, um bufar eterno que na história se revela na figura de um gato, mas que na vida se reflete em muitas pessoas. Com sutileza e maestria, neste conto Tchekhov também pincela a visita da morte, a inquietação e o medo que essa figura sem cor e formas causa em animais ou homens, para depois deixar apenas um rastro de falta e mistério.
De todo o mais que possa ser dito, as palavras não serão tão belas e precisas quanto as dele, é preciso ler e ler-se a si mesmo...

“Tchekhov é um daqueles autores cuja inteligência é tão poderosa que por um momento somos seduzidos pelo prazer de acreditar no progresso humano, na evolução moral da espécie; então, em seguida, vemos que na verdade ele nada mais é que um gigante, uma anomalia, talvez um anjo, e que é bem possível que não tenhamos outro igual nos próximos mil anos”.
Russell Banks

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