segunda-feira, 10 de maio de 2010

Da autora

Caros leitores, o Impressões agora está com um novo endereço, este aqui logo abaixo:
http://mauravoltarelli.wordpress.com/
Que as mudanças sempre venham e nos mudem para melhor. Espero que gostem do novo espaço!

sábado, 1 de maio de 2010

Instantes de lucidez para pedaços de uma loucura em cerâmica


Parte 3
Ao chegar em casa, guardei a flor entre as páginas de um romance. Romance poético. Ardente de ideais bucólicos. A flor como peça artesanal da natureza. O romance ao certo deve ter gostado muito de recebê-la entre suas páginas. Aos poucos, o cheiro da flor ia passar, no tempo certo, para o papel. Mistura essencial. Cheiro de papel velho, bem amarelo. Cheiro de flor murcha, bem singela.
Com o movimento da vida, idas e vindas, mudanças e corridas eis que o menino da flor murcha com o tempo foi sendo da minha memória diluído. Do garoto que depois tornou-se meu primeiro namorado, eu lembrava naquela época e ainda hoje me lembro apenas de uma coisa. A flor murcha.
No entanto, devo confessar pelo menos a ti minha amiga que essa história de eu ter ganhado uma flor murcha do meu primeiro namorado sempre me confundira na minha mente. No instante em que a ganhei, tentei ver o gesto pelo lado positivo. Vício incurável de mulher apaixonada. Por que achar que tudo sempre tem um outro lado. Mesmo fazendo essa cara ele deve estar gostando. Mesmo não dizendo que me ama, ele deve me amar. Mesmo não querendo sair comigo hoje, ele deve estar cansado. Muito trabalho.
Besta coleção de deves. Inevitável aderência feminina. Indisfarçável transparência dos sentimentos. Mergulho em um lago gelado. Murros na consciência. Portas abertas para jorrar torrentes de sonhos e ilusões fabricadas e remexidas no caldo traumático do inconsciente. Paixão fascinante e efêmera. O amar mais ao outro que a si mesma. Ainda quando se pensa que se ama mais a si mesma que ao outro. Doce arrebatador sentimento. O amor e seus tormentos.
Mas voltemos ao menino da flor murcha. Como já dito, o tempo suplantou minhas memórias. Tive outros namorados. Casei-me e entrei na igreja com um belo boque de rosas novinhas. Lindas. Nada murchas. Pelo menos no dia de meu casamento queria me livrar dessa maldição de flores murchas. Tive filhos. O casamento foi ficando cada vez pior. Como mulher que eu era, por dentro ainda menina, deixei meu marido. Continuei sendo mãe e menina. Nunca mais tive outro homem. Entenda-se não de forma relativamente séria. A vida ia desabrochando.
Na estrada os carros riscam o ar alucinados. As coisas passam invisíveis e banalizadas. Crianças ganham feições e assuntos jovens. Janelas amontoam-se freneticamente umas sob as outras. As pinturas aos poucos desbotam-se envelhecidas. As rugas fogem para a face. Alojam-se no canto dos olhos. Os cabelos brancos visitam os negros, loiros ou castanhos. A pele se faz mais frágil que uma seda. O coração carece de proteção. Cansada pede calma e sensibilidade. Sinfonia da eterna danação. Nomes além dos homens. Rios além de pontes. Dores além de psicólogos. Leitos poucos para tantas mortes. Sonhos arrastados por seres sem nome. Números por cima de números. Cimentos por cima das árvores. Liquefação inconstante do ser. Entupimento frenético da alma. Anabolização artificial da vida. Temperamento suicida para os dias. Ilusões cortadas em pedaços bem fininhos. Lugares plantados no vazio. Palavras entupidas pelo nada. Vozes tão potentes quanto mudas.
Hoje estou velha. Cabelos inteiramente brancos. Muitos dizem que conservo o mesmo jeito de menina.
Mas já ia me esquecendo. Um dia, sem querer, como acontece quase sempre nos poucos grandes dias ou dias decisivos de nossa vida, ao abrir um livro esquecido e empoeirado bem no fundo de uma estante, vi ali repousada, protegida pelas páginas, a flor. Mas não era a mesma flor. Era outra. Engraçado, não me lembrava de ter guardado outra senão aquela flor murcha, meio avermelhada. No entanto, ali entre as páginas quase que totalmente perfuradas pelos bichinhos do tempo, havia apenas uma flor que não estava murcha. A flor estava nova. Tal como se tivesse acabado de ser arrancada do canteiro. O vermelho era forte, regado por um leve tom rubro. A flor parecia brilhar. Radiante peça rejuvenescida pelo tempo. Admirada, eu me detive durante um longo tempo a olhar a flor. Mas que coisa incrível pensei. De que espécie rara veio essa parte da natureza? Se ao menos me lembrasse do nome daquele garoto... Poderia ir atrás dele para saber melhor, entender melhor.
Mas não me lembro. Já faz tanto tempo. Quando a recebi tinha acabado de completar 20 anos. Era uma menina. A flor murcha. Confesso que estranhei bastante, principalmente por causa daquele sonho. O sonho!
Foi nesse instante que me peguei alarmada, aturdida, desencontrada de mim mesma. Deixei a flor cair de minhas mãos de forma violenta. Claro! Incontrolada eu gritava. “Era sim a mesma flor daquele dia, a mesma flor murcha do vaso, do pássaro, dos horrores impressos na cerâmica. Ela está enfeitiçada, não toquem, ninguém toque na flor. Ficou nova assim de repente! Como pode? Pura peça de feitiçaria”.
Lembro que saí correndo para onde eu nem sabia. Andando pelas ruas eu gritava desesperada. Comecei a implorar para que todos dali fugissem, contei sobre o pássaro, o vaso, a flor, o tabuleiro de xadrez, a criança segurando a torre, falei sobre a raposa nojenta, sobre a mulher que tinha vários corpos e sobre a qual pairavam várias vozes. Depois não vi mais nada. Ficou tudo branco.
E assim chegamos aqui. Hoje já estou com 80 anos. Eu velha, murcha. A flor nova, rubra ainda aqui a conservo ao meu lado.
Não reclamo de meus dias, moro em um lugar lindo. Branco, recortado pelo verde que irrompe das árvores e pela paz que sai das formas sutis do desenho dos troncos. Algumas vezes, ouço vozes a falar sobre a minha cabeça. Elas não param. Não sei distinguir a forma, se de homem ou de mulher. Mas elas falam. Ah e como falam. Elas querem a flor murcha que agora ficou bela. Mas eu não dou. A flor é minha e acabou. De vez em quando, um homem bastante velho vem me visitar. Não sei quem ele é, tampouco dele me lembro porque alguns dizem que eu já o conhecera antes, de muito antes. Da visita dele eu gosto, mas não gosto do outro. O homem que sempre está vestido todo de branco, ele vem me ver todos os dias, sempre com injeções, comprimidos, remédios que estão me deixando cada vez menos consciente de quem eu mesma sou. Ainda bem que já contei um pouco da minha vida pra você, daqui a um tempo não vou me lembrar de mais nada. Os remédios e o homem todo de branco não vão deixar. Eles querem me esfumaçar, querem deixar tudo fumaça, também querem a flor, mas a flor eu não dou.
Antes, no entanto, preciso te contar mais uma coisa antes que eu esqueça. O que eu mais gosto de fazer por aqui é olhar o pátio, quase sempre vazio. Hoje ele está vazio. Gosto dos pisos que são todos quadrados, alguns mais escuros outros mais claros. Gosto de deitar-me nos cantos do pátio, olhar os quadrados e as pessoas todas vestidas de branco que por aqui passam. Não levo nada comigo, apenas a rosa vermelha e nova é que não deixo sozinha. Todos querem roubá-la de mim. Deitada, a seguro forte entre meus dedos para que a beleza não me escape.
Como certas figuras brancas me perturbam. Calçada oca sem acabamento nas beiradas. Alma torpe combinada a uma honra meio esfarrapada. Rua estreita inundada por vielas mal tratadas. Desejos e gemidos reprimidos sem sentido que se conte ou se figure. Espasmos de acaso. Vestes de fidalgos tão antigos como dinossauros. Postes enfeitados de sal.
Cansei da conversa contigo raposa presunçosa e movediça. Veja bem, teu relógio já passa das duas, depois só temos mais o três.
Um enfermeiro que passava naquele instante em frente à sala de Estela, a mulher que acaba de contar sua história, assim disse ao ouvir as últimas palavras daquele relato.
“Falando sozinha de novo essa aí. Vamos ter que aumentar a doze do remédio, ela ainda parece muito bem, consegue contar essas histórias malucas dela com grande lucidez. Imagina! Pássaro que vira vaso. Chama o doutor Corvo, pergunta qual o melhor remédio pra que ela nem consiga falar, perca os sentidos e nos dê um pouco de paz. Vá, depressa. Doutor Corvo não cuida só dos parasitas daqui não, há uma multidão por aí feito essa daqui a tagarelar besteiras.


Veja parte 2
Veja parte 1

terça-feira, 27 de abril de 2010

Instantes de lucidez para pedaços de uma loucura em cerâmica


Parte 2
Voltando ao homem todo de branco, do seu lado havia uma bolsa cheia de moedas. Do outro lado, um corvo. Sombrio e diria até amaldiçoado. Meus olhos moveram-se para o outro pedaço de cerâmica no qual pude ver uma mulher com incrível graça e jeito de menina. A graça e o jeito eram tão fortes e visíveis que pareciam saltar das formas constantes e mudas do desenho, era como se por um minuto falassem. Risonha, enfeitada, olhos saltados, modos ligeiramente exagerados. Ao redor de sua cabeça, voavam alguns seres que pareciam espíritos a cochichar coisas em seus ouvidos. A imagem dava a impressão de que quanto mais lhe falavam esses seres sobre sua cabeça, mais ela se agitava em uma espécie de êxtase descontrolado, quase como se estivesse embriagada. Seu corpo no mesmo movimento que ficava no lugar também saía de dentro dela mesma. Às vezes, eram dois corpos, em outras, apenas um. Tudo ali parecia dançar freneticamente, não havia tempo.
Pulando para o outro pedaço de cerâmica, vi uma raposa parecida contigo. Bela, saudável, com um ar de certeza e superioridade, assim como o teu, embora tu me parecas ainda mais petulante. Pendurado no pescoço da raposa havia um relógio que eu não sabia distinguir que horas marcava. Olhando com mais atenção, vi que nele não havia ponteiros, nem o grande tampouco o pequeno. Também os números que marcam as horas tinham diminuído. Eles não terminavam no doze, iam apenas até o três. Um. Dois. Três. Engraçado como tens um parecido, às vezes, parece até o mesmo. A raposa do pedaço de cerâmica parecia orgulhosa. Ao lado dela não havia nada, apenas um branco vazio. Confusa, fui para o próximo pedaço. Nele, algo parecido com um tabuleiro de xadrez. Não havia peças. Apenas uma névoa espessa que parecia encobrir tudo. Caída do lado de fora do tabuleiro uma criança. Magra e envelhecida. De maneira alguma, parecia-se com as crianças que eu conhecia na época em que era criança, menos ainda comigo. Era como uma pessoa já bastante velha, enrugada, endurecida. Riscada pelo passar do tempo. Em uma de suas mãos, pude perceber, ao reparar com mais atenção, que seus pequenos e enrugados dedos seguravam apertada e protegida uma peça de xadrez. No formato e aparência da peça reconheci uma Torre. Demasiadamente atormentada, passei para o último pedaço daquele vaso que eu quebrara e que antes era em tudo parecido com um pássaro. No último pedaço, se espremia uma multidão. Pessoas encostadas umas nas outras, visivelmente atormentadas. Via-se em movimentos a desenhar-se que cada uma delas buscava a outra inutilmente. Ninguém conseguia se alcançar. Desesperada, uma mulher parecia se dirigir ao filho buscando abracá-lo, lutando contra algo que não era vento, tampouco concreto, muito menos vidro ou tempestade. Todos lutavam contra algo que não se parecia com nada e podia ser chamado de nada. Mas, ao mesmo tempo, não era nada. Havia alguma coisa entre uma pessoa e outra, entre a multidão desarranjada, mas essa coisa que havia não era nada.
Alucinada. Perdida em demências angustiadas. Rabiscada. Drogada de imagens que só poderiam ser de um futuro porque nada daquilo poderia ser presente ou passado. Inspirada pela conspiração. Protegida pelo drama e pela montagem de coisas sem conexão.
Quando voltei a mim não havia mais nada no chão. O que ficou foi apenas uma flor murcha. A cor das pétalas gastas não se imprimiu naquele instante em minha mente. Voltariam depois como um produto de ressaca.
Quase do chão tomei para mim a flor, mas lembro que tive medo naquela hora. Primeiro, um pássaro morto que parece renascer. Depois, o pássaro simplesmente vira vaso. Desengonçada, eu caio bem em cima do vaso e o faço em pedaços. Nos pedaços, desenhos, formas, cores e movimentos de perfeitas imagens. Maldição. Feitiçaria. “Não! Não quero tal flor”, pensei naquele dia”, e completei, “Acho que estou ficando louca”.
Durante dias, lembro que a flor jogada na chão ali ficou. Abandonada, quietinha. Tão murcha e feiinha que ninguém pegava. Os anos foram passando e eu, da flor murcha daquele dia, quase que já havia me esquecido completamente.
A flor ficaria nesse estado de esquecimento se não fosse um garoto que tinha a mesma idade que eu na época, 20 anos, e morava ao lado da minha casa. Ele sempre me perseguira desde a infância. Fazia de tudo pra me agradar. Eu gostava dele confesso, mas queria que ele me conquistasse por completo. Foi quando ganhei desse garoto um presente que me fez perdida e muda. Uma flor murcha. Julguei-me de imediato louca. Logo pensei na flor daquele dia, muitos anos atrás, no vaso feito em pedaços, nas imagens horríveis e sombrias que assisti sem entender muito nada daquilo. Naquele tempo dos meus 20 anos, elas já estavam quase que esquecidas, mas eis que me voltava a flor. Lembro que somente naquela ocasião, pude reparar na cor que da primeira vez nos meus olhos não se imprimira. Era vermelha, de um tom avermelhado e ligeiramente gasto. Foi quando tive um minuto de lucidez e disse pra mim mesma. “Mas que bobagem. Ai como estou sendo ingênua e demasiado supersticiosa. Magina! Tantos anos depois. É claro que não é a mesma flor, aquela deve ter sido pisoteada, desfeita, engolida pela poeira, desapareceu junto com todas aquelas imagens daquele meu sonho impossível. Sim, porque hoje vejo que só pode ter sido um sonho. Nenhuma lógica. Pássaro que vira vaso. Louca eu sou se acreditar em tudo isso!”.

Veja Parte 1

domingo, 25 de abril de 2010

Série de colagens do alemão Max Ernst chega ao MASP revelando toda originalidade e poder de crítica social do surrealista



A suspensão da razão. Figuras obtidas a partir de colagens para mostrar toda mesquinhez e conformidade emocional da burguesia. As imagens bílicas para remeter-se a uma atmosfera divina e blasfema. A busca por uma arte que seja, acima de qualquer outra coisa, manifestação e expressão sem a necessidade de ser explicada racionalmente, quando muito, apenas interpretada.
Alguns desses tons se veem refletidos na série de colagens produzidas pelo artista alemão Max Ernst (1891-1976) que chega ao MASP neste mês de abril revelando de forma criativa e densamente original todo o surrealismo que brota de sua obra.
O artista alemão é interessante não só pelas imagens que cria, pautadas pela inversão de qualquer espécie de lógica racional, como também pelo seu método original de criação que confere ao seu trabalho uma sofisticação ousada. Chamadas colagens, suas obras reúnem recortes variados de publicações (livros, revistas,etc) que folheados durante anos pelo autor geram um produto final semelhante a gravuras em preto e branco.
No MASP já está sendo exibida a seleção completa das 182 colagens de Max Ernst integrantes dos cadernos chamados Uma Semana de Bondade.
Nas cenas que compõem os cadernos de Ernst, a presença da água é bastante forte remetendo-se a qualquer espécie de tragédia que já aconteceu ou está acontecendo ou à própria imagem bíblica do dilúvio. Em uma das gravuras, há uma mulher com trajes de cabaré que permanece firme e inatingível diante da torrente de água que tudo invade e destrói. Enquanto um homem é pela água devorado, a mulher paira acima da tragédia apoiada em uma torre de relógio. Neste caso, longe de dizer da superioridade da mulher, o artista parece se remeter aos grupos sociais que dificilmente são abalados por algumas tragédias, àqueles estratos sociais que não podem ser destruídos ou ameaçados.


Em contrapartida, se nesta gravura a mulher resiste aos tormentos e ameaças, em outra série de colagens vemos a mulher quase sempre apresentada nua e em posição de submissão, sofrimento. Ao lado dela, na mesma cena, homens-pássaros, figura que remete diretamente à infância do artista que no mesmo dia em que recebeu a notícia do nascimento de sua irmã, testemunhou a morte de seu animal de estimação: um pássaro. As figuras híbridas, as mulheres subjugadas, a inversão de qualquer espécie de lógica, são elementos presentes nas gravuras de Ernst e conduzem o espectador a todo um universo de crítica social e do homem, a uma tentativa de virar o mundo do avesso assim como a guerra e todo seu sofrimento havia feito com a vida de muitos homens da época, inclusive Max Ernst, para quem a guerra sempre fora um elemento traumático.




Neste sentido, como disse o próprio artista, muito pouco pode ser efetivamente explicado de seu ousado e original trabalho, no entanto, fica evidente como ele se deixou influenciar por fatores externos, não fechando-se somente no seu mundo interior, nos fluxos intermitentes de seu inconsciente. A sociedade está refletida em Max Ernst, principalmente a sociedade burguesa e a sociedade autoritária que faz e alimenta a guerra, de uma maneira absurda e irônica, com o objetivo de expor o que essa sociedade apresenta de mais grotesco e de mais trágico. Além de criticar de forma inteligente o seu tempo, o artista também antecipa temores em relação ao futuro que se mostraram de fato válidos. Censurado e perseguido pelo nazismo da época, Max não se deixou intimidar, foi para os EUA onde continuou produzindo sua obra que, no mesmo movimento em que reunia pedaços de outras figuras, dava forma e vida a uma imagem totalmente nova que ganha vida e transbordamento no detalhe sutil de cada recorte.




Texto inspirado em matéria da Carta Capital

sábado, 24 de abril de 2010

Instantes de lucidez para pedaços de uma loucura em cerâmica


Parte 1
Que desvirtuada flor murcha. Hoje só sei dizer de tal desassossego de alma e de alguns fluxos intermitentes. Como certas figuras me perturbam. Na maioria das vezes, é como chuva depois de trovoada. Trovoada. Arrebatamento de alma. Desintegração de crenças. Loucuras de cinema mudo. Farrapos destelhados de um abandono imundo. Ritmos tão cheios de tudo. Orvalhos decadentes em pontes ligeiramente indecentes. Paredes brancas e verdes vazia de gente. Vozes por demais lotadas de coerência. Racionalidade limitante e edificante ao extremo. Criação de verdades ao lado da repetição frenética de imagens. Diluição paradoxal de um tempo pueril e sexualizado. Sentidos atrofiados. Mentiras subornadas ao lado de felicidades que são como jardins aparados. Espelhos esfumaçados e trincados pelas rugas inconvenientes não do tempo e sim dos vícios. Bajulações excessivas e oratórias assexuadas. Abismo pintado de cetim barato. Marfim disfarçado de capim. Pedras soltas a rolar em direção a um nada sem nome. Sem nome como a flor murcha. Símbolo de algum pesadelo, tormento, peça de feitiçaria ou instante de agonia.
No dia da flor murcha eu acordei assustada. Tinha apenas seis anos de idade. Um pássaro estava morto, bem ao pé da minha janela. Pássaro morto. Estruturas desengonçadas. Uma profunda tristeza invadiu-me. Imaginei por um instante aquele pequeno pássaro que outrora devia voar livre, inconstante, vertido pelos ventos esvoaçantes. Morador do infinito, da vastidão desencontrada. Avesso a interiores de tijolo ou gesso. Adepto das intermináveis distâncias, dos longos voos, dos arrepiados esquecimentos. Imaginei como sempre eu quisera ser livre como os pássaros, ao menos por um instante. Como sempre quisera voar. Desejos impossíveis. Os desejos impossíveis são constantes em minha mente até hoje. Penso sempre em coisas impossíveis antes de dormir. Envolta no breu, disfarçada com aquilo que fingo ser meu, mas, na verdade, tampouco sei se o tenho de fato. Mordendo as brechas da escuridão. Beliscando os silêncios mudos da noite. Desenhando o instante em que a noite vira madrugada. Despertando sem querer no segundo em que a madrugada dia se anuncia sem escala. Dias de vertigem já eram os dias de minha infância.
O pássaro de repente foi saindo daquela condição de morto. O sangue que lhe cobria as penas um tanto amareladas foi, no espaço do encostar de meus cílios, sugado. A cor parecia voltar-lhe, como o frio volta depois do calor. Ficou um tempo com essa aparência de quase vida depois da morte quando, no preciso instante em que os seus olhos se abriram novamente para a luz, ele já não era mais um pássaro. Ganhara formas e a aparência de um vaso. Belo vaso de cerâmica. Simples, mas bastante delicado. Marrom e com poucos detalhes esculpidos por fora. Debruçando-me um pouco no parapeito da janela fui descobrir que o vaso era realmente lindo, fascinante, mais por dentro do que por fora. No seu interior, as formas em relevo saltavam, mesmo que não pudessem ser vistas inteiramente em razão da abertura principal que conduzia ao espaço oco de dentro ser um pouco estreita. Os desenhos, mesmo vistos com certo esforço, pareciam ser uma espécie de cronologia, organização do passado ou previsão do futuro. Naquele instante, eu não conseguia ver com clareza.
Torrente de imagens. Invasão de fantasmas, monstros e assombrações. Momentos de espasmos. Canções entoadas no seio da escuridão. Manchas de aranha, caldo de diversão. Efemeridades diluídas no estojo da separação. Orgias pervertidas, pedaços de horas mastigadas sem sermão. Luvas de borracha sem queratina. Odores de um azul sem compaixão. Prazeres condensados, extraviados e desviados para tudo que fosse contra mão. Surrealismo ou sonho da ingratidão.
Curiosa, debrucei-me um pouco mais. Caí. Tombei bem em cima do vaso. Ele se fez em pedaços. Peças soltas esparramadas pelo chão. Incrível obra do destino. Verso do acaso. Rima sem satisfação. Os pedaços tinham se quebrado de modo que em cada um deles permanecia inteiro um desenho com cores e alguns escritos completos. Eram vários instantes de um tempo que eu ainda não sabia se já fora ou se estava para chegar.
No primeiro pedaço de cerâmica, deparei-me com a figura de um homem belo, todo de branco, com olhos bastante ambiciosos e um aspecto esfarrapado. Hoje, parece que tudo aquilo me volta mais claro. Ás vezes, me surpreendo com minha própria lucidez. Não sei por que me entopem com tantos remédios. Bom, mas tenho vontade de contar essa história nem que seja pra você. Sinto que preciso. Depois dessas palavras talvez não diga mais nada.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Ponto de Fuga


Os caminhos que me levam a ti
nenhum ponto de fuga
milhares de pontos de encontro
como uma linha reta
com água brotando de círculos
broto inconstante
complexa no que sinto.
O medo se mistura à calma
a insegurança se disfarça em silêncio
os dias correm ao teu lado feito loucos
andam feito lesmas quando foges de repente
as tintas raras que te pintam
ora me confundem
ora me decifram
sinto tanto tua leveza
e, ao mesmo tempo,
sinto meu peso e exagero
Mas, de todo, acho que
leveza e peso
se equilibram.
Somos ambos o ponto de fuga
que foge de minha busca
nossos corpos se combinam e,
em um mesmo movimento,
nossas almas se aliviam.

M.V

terça-feira, 20 de abril de 2010

Não sabia


Eu andava coberta
pelo céu que deslizava.
Eu deitada já pensava
e era tão criança ainda...
Eu escrevia o que sentia.
Sem saber naquele dia
poesia eu já fazia.

M.V

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Suspiro de olhar


E se assim estiver,
esfarrapado de alma
roubado de sonho
esfolado de dor
disfarçado de belo
adoçicado de calor
assustado de pudor
desencontrado de futuro
atormentado de passado
apaixonado pelos versos
adornado de fantasia
despido de graça
colorido de tom
ditado pelo preconceito
enfeitiçado por uma flor

E se assim estiver,
riscado a lápis
amado em rascunho
ainda te faltará
um sutil detalhe particular:
o suspiro que foge do olhar

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A temática da morte em "Sonhos", do cineasta japonês Akira Kurosawa

Akira Kurosawa (1919-1998) é um cineasta japonês que possui uma obra cinematográfica imensa e de excepcional qualidade, ele é brilhante do ponto de vista estético e extremamente criativo em filmes que vão do gênero épico e lírico, histórico e contemporâneo até o realista e fantástico. Possui uma característica rara em muitos cineastas: a de saber refletir, na medida certa, sem sentimentalismos superficiais ou exageros que acabam resvalando no terreno do ridículo, os dramas mais comuns e sutis da existência humana. Kurosawa cede gentilmente um espaço quase divino em sua obra para que questões relativas à vida, ao sofrimento, à solidão e à morte sejam discutidas por meio de uma estética inteligente, algumas vezes, belíssima, outras, sombria, mas sempre enriquecedora do ponto de vista humano e existencial.
Em um de seus filmes mais recentes, Sonhos, “Yume” em japonês (1990), Kurosawa rompe com diversos modelos e paradigmas do fazer cinematográfico e mergulha de forma fantástica e ousada no espectro da morte. Uma das inovações e originalidades mais marcantes do filme está na construção da narrativa. Esta se dá de forma enviesada, não linear, há uma diluição do próprio tempo, o que existe são instantes recolhidos e reunidos que compõem uma metalinguagem fascinante com a própria linguagem e natureza dos sonhos. São oito episódios reproduzidos apenas na lógica sensitiva do sonho. Este também não conhece tempo, apenas existe na nossa mente como uma voz que salta e uma imagem que aflora do inconsciente, produto direto de nossos medos, culpas, desejos e projetos de felicidade. Nada melhor do que construir uma narrativa diluída, sem preocupação com passado, presente e futuro para falar de sonhos, nada mais apropriado e sugestivo e aí estão os detalhes que fazem com que um filme não seja apenas um mero relato da realidade, mas uma ampliação e reflexão sobre ela, de modo que se rompa todos os limiares e subverta-se todos os princípios da arte cinematográfica em busca de algo humano e denso.
Dentre os oito episódios que compõem o filme Sonhos, em três deles há elementos estéticos e vozes que formam um discurso entremeado e recortado por elementos que fazem referência à morte. São frestas da narrativa, dos ângulos, dos diálogos, do próprio roteiro pelas quais a morte se faz perceber, ainda que não tão claramente.
No episódio “Corvos”, Kurosawa nos convida a inverter a lógica da contemplação de uma obra de arte, se o movimento mais comum que fazemos ao olhar uma pintura é trazê-la para dentro de nós, de nossas referências e conhecimentos anteriores, o cineasta propõe que se faça o caminho inverso da contemplação, ao invés de trazermos a obra de arte para dentro de nossos referenciais somos nós que entramos dentro da obra de arte por meio da figura do personagem principal do filme e apreendemos novos ideais, novas formas de ver o mundo por meio da sensação de atravessar a textura da tela, caminhar pela espessura da tinta, inebriar-se com as cores e com o visual deslumbrante registrados a partir das cenas da natureza, nada mais onírico, lúdico e, ao mesmo tempo, fantástico.
São vários os elementos que dão forma à viagem do protagonista do filme pelas obras do pintor impressionista neerlandês Vincent Van Gogh. Alguns desses elementos fazem referência direta à ideia de morte. Na ocasião do encontro entre o protagonista e Van Gogh, a estética da luz faz referência ao passar do tempo, à proximidade da morte a cada instante, o sol se pondo no mesmo movimento em que Van Gogh sai do plano da cena transmite a ideia de fim, de diluição e brevidade das coisas. A própria fala de Van Gogh: “Preciso pintar enquanto há luz, não tenho tempo para ficar aqui conversando com o senhor”, tem relação direta com a efemeridade e com o sentido de todas as coisas no contexto de um caminhar certo em direção à morte. Por fim, a cena é tomada pelos corvos e forma-se a imagem do quadro de Van Gogh. O quadro não foi escolhido por acaso, por que este quadro e não outro? Talvez, a resposta esteja justamente nas referências que poderiam ser traçadas entre o contexto reproduzido neste quadro e a ideia de morte. Além dos corvos, a imagem do campo de trigo provoca, às vezes, uma espécie de vertigem, de repente, ela se parece com a imagem do infinito ou com o caminho percorrido em direção à morte e ao que nos aguarda depois dela. Em um olhar ainda mais ousado, seria como se Van Gogh ao transpor o enquadramento, transpusesse a linha que separa este mundo do outro, tudo isso complementado pela sensação de alucinação provocada pelo trigal e pelas sombras trazidas nas asas dos corvos fazendo com que a morte paire acima da paisagem, como ela de fato paira acima dos homens. Por fim, liquefazem-se os sentidos, a morte é apenas mais uma obra de arte.




No sentido primitivo da verdadeira obra de arte, Sonhos, de Kurosawa provoca uma espécie de êxtase, saída de si mesmo, uma catarse que se relaciona diretamente com a ideia de sublime marcada pelo extravasamento, pela força, inspiração, criatividade e elevação. Entre um silêncio e outro, ouve-se o eco da grandeza da alma.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Despejo

Foto de JP Corrêa

Antes que o tempo

venha e esparrame
a confusão de linhas
ardentes por dentro
desejosas de que se ame
eu olho pelo vidro
que me retrata diferente
mas não vejo nada
resta apenas eu mesma
d
e
s
p
e
j
a
d
a

M.V

domingo, 11 de abril de 2010

Sem nome



Cores de bruma
enfastiam meu tempo
sedutoras em seu arrebatamento
infantis em ruas meigas,
em vozes repartidas
pelo tempo ou pelo vento que me despenteia.
Vozes sem hora definida
não sei nem menos nem tanto
tal pureza parece terra
areia fina que arrebenta
essas vias mal passadas por melancolia.
Vertes água pedra seca e endurecida
efêmeras indecentes
e acho que desfiguradas
com som de gesto
lançam a imagem da palavra inexistente.
Onde mora o absurdo,
por quais meios chegar ao começo?
Traços pretos
recortes de tantos rostos com defeitos
tua voz é pura
os silêncios faceiros
sentada apenas ouço aquele som de verde
verde, verde e mais verde...
Os telhados são hostis
as paredes brancas, estranhas.
Concretos discretos do infinito
meu prazer é o teu,
ali onde já não me percebes.
Eis a sombra e manto de árvore
sinta o toque destilado do divino
muito salta aos teus olhos libertinos
onde pecam minhas falhas e faltas
incertas...
tão cheia de vertigens
pálidas e altas
corretas...

sábado, 10 de abril de 2010

Em "O Homem da Câmera, Dziga Vertov faz da lente uma extensão do olhar humano na captura do real

Dziga Vertov fazia cinema enquanto este ainda nem ganhara sua linguagem própria, o cineasta russo inaugurou um conceito e modelo de documentário baseado, acima de tudo, na realidade e na não intervenção ou manipulação desta. Segundo Vertov e a escola russa da qual ele pertencia (Kino Pravda, a do cinema-verdade), as cenas do real deveriam ser mostradas em seu estado puro, perpassadas sempre por um viés educacional. Os filmes de Dziga Vertov não eram feito para entreter e sim para fazer pensar, provocar reflexão, levar o homem à crítica de si mesmo e da sociedade na qual ele se insere. Um dos filmes mais famosos de Dziga Vertov é O Homem da Câmera (1929) no qual o cineasta, documentarista e jornalista mostra o cotidiano de cidades russas, principalmente Moscou. Esse filme antecipa muitas tendências a serem apropriadas por cineastas e documentaristas posteriores a ele, como a trucagem (fusão de imagens) ou a habilidade de montar, compor o real, visando conferir uma potência ideológica bastante forte para as imagens. O Homem da Câmera revela-se um filme extremamente agradável, denso, inteligente, crítico e capaz de proporcionar um imenso prazer estético. A criatividade e também o sabor poético da obra se fazem perceber em passagens como a fusão da lente da câmera ao olho humano, como se a lente fosse uma extensão deste, como se o real pudesse ser totalmente aprendido em sua crua realidade a partir das lentes do cinema. Em última instância, como se essa fosse a grande razão de ser do cinema!

Abaixo, trecho do filme O Homem da Câmera, de Dziga Vertov, por meio de suas cenas podemos viver a experiência única dos primeiros movimentos do cinema, movimentos ousados que mostram como a sétima arte de fato nasceu como documentário.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Bela e Margarida

A Canoa sobre o Epte, Monet

De vez em quando, ela tocava levemente a água do rio, sentia como se aquele líquido, em movimentos regulares e certos, fosse penetrando todo seu corpo, curando-a de males, regenerando sua alma, anestesiando suas dores, acalmando sua grandiosa ansiedade. A água era volumosa, densa e, ao mesmo tempo, diáfana, parecia-se com uma poesia ainda não terminada, mas já esboçada por versos, rimas e ilusões de uma alma jovem e naturalmente apaixonada.
Seu olhar esquecia-se por horas na água em movimento, queria captar suas ondas, nuances, temperamento, aflições e desejos. Em intervalos regulares de tempo, estes olhos moviam-se em direção à amiga que com ela dividia a canoa e a paisagem naquele remoto fim de tarde. As duas estavam ansiosas, naquele dia haveria um baile na província vizinha, baile importante, com os homens mais distintos da sociedade, as mulheres mais elegantes, as damas mais comportadas e também as mais mexeriqueiras, homens de cultura e homens de muita palavra e pouca ideia.
Enfim, uma daquelas festas na qual todos estariam, sem exceção, todos entenda-se a alta sociedade caro leitor, jamais uma camponesa ou um empregado seriam convidados para tais festividades.
As duas moças que dividiam amigavelmente a canoa sobre o rio Epte localizado na calma e tranquila Giverny, no norte da França, e ali pareciam tão próximas, unidas e harmonizadas pela paisagem, eram, para a verdade presente na sociedade, bem distantes.
A primeira que aqui nesta história citamos, a que tocava gentilmente a água e pousava seus olhos em um movimento longo e solitário nestas, era uma simples camponesa que trabalhava como empregada na casa da outra moça pousada sobre a canoa que passara o passeio todo imóvel. Essa outra jovem sequer movimentava muito os olhos em direção à paisagem que a emoldurava, tampouco chegara a molhar seus dedos finos e delicados na água do rio, permanecia como uma estátua, remexida apenas pelo vento quando este fazia dançar seus cabelos ou um pouco do tecido brando de seu vestido. Fora isso, esboçava sorrisos tímidos, não falava muito, mas nos recônditos de sua alma parecia feliz, pintada por uma ansiosidade prazerosa diante da expectativa para o baile de mais tarde.
O fato é que a moça imóvel, de nome Margarida, gostava muito da companhia da moça que remexia espontaneamente a água, com os remos ou com os dedos, de nome Bela. Já fazia muito tempo que Bela trabalhava na casa de Margarida, seus pais e avós ali trabalharam e ela perpetuava a linhagem. Ambas tinham a mesma idade e Margarida sempre gostara muito de brincar com Bela, elas se entendiam e foram atravessando algumas das primeiras fases da vida sempre juntas. Na infância dividiam as bonecas, na adolescência as confidências e agora, nos anos dourados da juventude, dividiam desejos, expectativas, outras confidências e silêncios.
Neste fim de tarde, dividiam o silêncio. Bela estava triste pois não iria ao baile, Margarida estava radiante, apesar de não demonstrar tal felicidade em movimentos, ela iria ao baile e lá teria a chance de dançar com um belo rapaz que, mesmo sem conhecer, habitava seus sonhos e fantasias há algum tempo. O vestido que ela usaria era especialmente belo, com bordados de um tom rosa bem clarinho recortado por detalhes em azul e amarelo. Bela costurara grande parte do vestido, imaginando como seria o seu caso ela também pudesse ir ao baile. Colocara no vestido de Margarida algumas rosas verdes bordadas especialmente por ela para dar um toque original àqueles pedaços de panos reunidos.
A história que aqui vai contada começou um pouco antes quando Margarida foi até o quarto de costura e chamou Bela para um passeio de canoa pelo rio Epte. A última prontamente aceitou. Como sempre fazia, mostrou-se contente, amistosa, disposta e deixou transbordar toda a graça natural que lhe era inerente.
Bela era uma jovem incrivelmente bela. Seus pais colocaram-na esse nome, mas não pensaram que o nome condiziria tão bem com a pessoa. Não só pela aparência, mas principalmente pelas maneiras, pela graça, pelo olhar longo e solitário, profundo, jazigo de mistérios eternos. Era alguém que fora pintada com tintas caras e raras, um molde único, destes que só aparecem de vez em quando e encantam de imediato. Os cabelos eram castanhos, quase sempre ornados por um chapéu branco que a ajudava nos trabalhos sob o sol, os olhos além da aparência aqui já dita eram também castanhos, mas de um castanho menos exuberante que o do cabelo, era um castanho mais negro, mais contido, mais inebriante, rimado com um toque de alucinação. As formas do corpo eram perfeitas e atraentes, harmônicas, nada sobrava, nada faltava. A voz era sublime, tinha algo do timbre dos pássaros, do cochichar do infinito. A voz era especialmente bela em Bela.
Já Margaria era uma mulher comum. Pode-se dizer até apagada. Bonita, mas sem nada demais. Bem cuidada, vestia sempre os melhores vestidos da cidade, cheirava sempre aos melhores perfumes, mas não tinha graça, tampouco originalidade. Margarida sempre usava um chapéu de cor marrom, a última moda em Paris, que, no entanto, não chamava tanto a atenção como o chapéu branco de Bela, este era diferente, não havia outro igual, era antigo, fora de sua avó e carregava todo um ar de simplicidade e elegância que não advém da sofisticação luxuosa, mas da simplicidade delicada. Sua voz era parecida com um som bem desafinado, estridente, chegava por vezes a ser até engraçado.
A voz, elemento aparentemente banal, ela faria toda a diferença naquele dia do baile.
As duas dirigiram-se ao Epte para o passeio, as coisas iam por aquele rumo, Bela conduzindo o barco, de quando em quando deixando um pouco o remo e tocando a água. Pensativa e imaginando como ela seria feliz se pudesse também ir ao baile. Margarida seguia estática, tão distante, tão separada da natureza, tão incompreendida por suas formas, ela combinava apenas de forma aparente com todo aquele lugar, mas no fundo, era um contraste abismal. Em certos instantes, Margarida pedia para que Bela cantasse, entoasse alguns versos, disparasse alguma canção.
Dizia ela nos raros momentos em que esboçava algum movimento:
- Bela, cante um pouco para mim, quero imaginar o baile, já me vejo adentrando o salão com meu belo vestido e indo em direção ao meu amado que por mim creio que está completamente apaixonado. E terminou a frase com um leve suspiro bobo e entrecortado.
Bela respondeu doce e calmamente, deixando-se invadir pela calma e mansidão do lugar:
- Claro Senhorita Margarida, vou cantar aquela canção de que tanto gosta, mas digo apenas à Senhorita que não se anime tanto com o seu amado, ele sequer a conhece bem, apenas sua mãe falou da senhorita para ele e ele mostrou-se, ao que ela disse, interessado. Mas em amor é preciso se conhecer melhor. Não acha? Ver como o outro vê o mundo, as coisas, como ele sente a natureza, como ele passeia por um belo rio em um reticente fim de tarde como agora fazemos. São os detalhes que geram a paixão mais do que qualquer outra coisa.
Margarida disse um pouco irritada:
-Sei disso tudo Bela, mas tenho certeza de que ele gostará de mim. Nossas famílias são amigas, tudo vai arranjado. Agora cante.
Bela cantou. E cantou lindamente. O som de sua voz parecia enfeitiçar os pássaros, domar as árvores, ditar o movimento do rio, recortar suas ondas pequeninas, alimentar os peixes escondidos, antecipar as emoções do baile, recuperar momentos do passado, intensificar a hora do presente, fazer com que aqueles corpos isolados, sozinhos em sua companhia, distantes e, ao mesmo tempo próximos, brancos e infinitos, adquirem-se de repente uma leveza tão grande a ponto de que esta se tornasse quase insustentável.
Depois de algumas horas, o passeio acabou, já estava tarde, Margarida tinha que voltar para casa e se aprontar para o baile. Bela tinha que ajudá-la.
Em movimentos rápidos e apressados umas dez mulheres, contando com Bela, aglomeraram-se no quarto para ajudar Margarida e sua mãe a se trocarem. Ambas ficaram prontas em poucas horas. Não podemos completar dizendo prontas e lindas, estavam apenas prontas. Lindas seria algo mais, algo que vai além de um vestido, de alguma maquiagem, de um penteado estático, tal como Margarida estava no passeio sobre o rio Epte horas atrás. Falando em Margarida, esta parecia não estar muito contente quando ansiosa voltou seus olhos cinzentos para o espelho. Parecia que lhe faltava alguma coisa, não sabia se no vestido, no cabelo, no rosto, mas algo lhe faltava.
Bela, percebendo a insatisfação da amiga, em instantes, ofereceu o seu chapéu branco, naquele momento, pensou apenas no chapéu como algo que para ela tinha uma beleza totalmente original e única, algo de singular que se colocado por Margarida seria capaz de preencher a falta que ela sentia em si mesma. Mas Margarida detestou a ideia, enfureceu-se, gritou descontrolada. “Aonde já se viu, eu, ir ao baile com o chapéu de uma camponesa, chapéu velho, sujo, encardido, que horror! Creio que já estou bem, minha roupa está ótima, não quero mais nada, apenas ir e deixar de ouvir estes despautérios. Espero que ao menos tenha pregado as flores verdes direito Bela, para que não me escapem durante o baile, seria um vexame. Fica melhor quando canta Bela, do que quando mete-se a dar palpites sem sentido”.
Mãe e filha partiram para o baile, Bela ficou chorando, ofendida, sentindo-se triste e contemplando o chapéu jogado violentamente em um dos degraus da escada por aquela que um dia ela considerara sua amiga, por aquela para quem ela cantara nesta tarde lindamente, navegando sobre as águas profundas do rio Epte.
Chegando ao baile, Margarida avistou de imediato o tal pretendente que ela sequer conhecia. Este, introduzido por sua mãe veio ter com ela, assim disse:
Oh! Doce Margarida. Já sou de ti um completo apaixonado, mesmo antes de conhecê-la. Hoje à tarde, em uma jogada do destino, fui ter contigo em tua casa, queria fazer-te uma visita antes do baile para que pudéssemos nos conhecer melhor. Mas, quando cheguei, tua mãe me disse que havias ido passear de canoa sobre o Epte, de imediato já achei lindo o passeio, pensar que gostas daquele rio, daquelas margens tão livres. Muito já andei por sobre aquelas águas, tocando-as, sentindo-as curar minhas mágoas, dores e faltas, fundindo-me ao vento, à brisa, deixando com que meu corpo se movimentasse longa e pensativamente. Fui correndo ver se te via nem que fosse da margem, por trás das folhagens esparsas que por lá se esparramam. O fato é que não pude ver-te por completo, no entanto, pude ouvir-te e como foi bela e linda tua voz. Tenho certeza que era tua, pois voz tão elevada, doce e graciosa, só podia vir de uma jovem tão bela e educada como vós. Apaixonei-me pela tua voz, se é que isso é possível, antes mesmo de ver de ti o rosto, os gestos, as formas, os olhos, antes tua voz aos olhos ou a qualquer outra coisa. Diga alguma palavra para que eu possa enfim confirmar como és bela a voz que de tua alma emerge, porque canto tão magnífico só pode brotar das camadas de tua alma. Ou melhor, esperas! Antes que digas qualquer coisa onde está teu chapéu branco. Achei-o tão diferente, com ares antigos, dotado de uma simplicidade que há tempos não vejo. Tua outra amiga também levava um chapéu, mas pareceu-me prosaico demais em comparação com o teu. Uma peça irresistível, estás lindo teu vestido, mas creio que lhe falta apenas aquele chapéu. Lembro-me que uma das cenas que consegui vislumbrar, umas das únicas que me apareceram aos olhos por entre as folhagens e ramos esparsos, foi de uma amiga ou conhecida tua e de ti, cantando, pude ver o movimento de seus lábios, ornada de um magnífico chapéu que, no entanto, quase fugia de meu campo de visão, você estava bem no canto de meu olhar, quase escapando dele e, ao mesmo tempo, mergulhando dentro dele. Escapava e voltava pra mim, me dava vontade de entrar naquela canoa, passear com você e com sua outra amiga, ouvir de perto sua voz, tocar seus lábios, flutuar sobre aquelas águas e impedir que me fugisses.
Sem que pudesse dizer muito e tomada por um susto no coração, Margarida saiu correndo, corria e deixava com que os bordados de rosas verdes sobre o vestido fossem caindo pelo chão, pelas escadas, deixando um rastro de soberba, cólera e ilusão.
O jovem a seguiu apressado sem entender muito o que se passava. Por fim, quando a carruagem que transportava Margarida parou em frente a uma casa, ele também parou logo atrás. Ela entrou e continuava correndo, meio desesperada, meio tomada pelo ódio, pela cólera, pela raiva, nos olhos transparecia uma fúria quase incontrolável, um desejo de morte ou qualquer coisa do tipo.
Ele nada via ou entendia apenas corria e queria de todo jeito alcançá-la.
Quando atravessou a porta que Margarida deixara aberta, perdida no seu arrebatamento incontrolado, a primeira coisa que viu jogado nos degraus da escada branca e polida foi um chapéu. O mesmo que ficara no canto, quase escapando dos limites do seu olhar naquele tarde. Em um movimento inconsciente, elevando seus olhos acima dele, viu uma jovem estupidamente bela, cujo rosto estava encharcado de lágrimas que, em um momento de susto e incompreensão, perguntou:
-O que está acontecendo? Quem é o senhor? Por que Margarida entrou assim tão assustada e nervosa, tomada da mais profunda cólera, lançando a mim ofensas incontáveis que ferem meu coração?
-O jovem com um olhar tomado por tal sensação de completude que não se explica ou descreve com palavras disse apenas:
Tomes teu chapéu bela jovem, ele é tao belo como tu e a tua encantada voz e não merece ficar jogado nestes degraus frios e gelados, assim como teu rosto não merece ser regado por tantas lágrimas.
O belo jovem inclinou-se com tamanha firmeza e nobreza em direção ao chapéu branco caído no chão, tomando-o com a certeza e ansiedade de quem não quer deixar que ele quase escape de sua vista novamente, e posou-o nas mãos delicadas da mulher que ele agora sabia quem era. Ela estava ali, inteira na sua vista, tão linda como a voz que dançou sobre o Epte naquela tarde.

* Texto inspirado no quadro de Monet, A Canoa sobre o Epte, visto na Exposição Romantismo - A Arte do Entusiamo no MASP, exposição que já foi tema de um post no Impressões. Uma homenagem ao Romantismo, a todo o sublime contido no trivial que sua estética busca e apreende de forma maravilhosa.


O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é senão uma potenciação qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida, na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo.

Novalis


Deveríamos fazer do comum algo de extraordinário e então nos surpreenderíamos descobrindo que está muito perto de nós a fonte de prazer que buscamos em algum lugar distante e difícil. Estamos muitas vezes a ponto de pisar na maravilhosa utopia mas acabamos olhando por cima dela com nosso telescópio.

Ludwig Tieck



domingo, 4 de abril de 2010

Um olhar que cala por dentro

Peixes Preto & Branco, Paulo Consentino


Seu Manuel vivia sentado à beira do rio, contemplando sereno e regado por um leve tom de melancolia o cair da tarde e o irromper da noite. O horizonte era emoldurado pelas linhas retas e infinitas do rio, as águas calmas, silenciosas, faziam com que o restante da paisagem ganhasse um tom quase mudo. Tudo seguia seu movimento de forma lenta e graciosa. De vez em quando, o barulho de alguma ave, o ruído de algum peixe beliscando a superfície calma do rio, o espreguiçar dos outros homens que por ali se aglomeravam, cortava o fluxo sem rumo dos seus pensamentos, das memórias, dos sofrimentos daquele homem aparentemente cansado.

Daqui de baixo, eu apenas olhava. Olhava atento, devo assim dizer, e um tanto desconfiado. Passeava minha vista por todos aqueles que podia com o olhar alcançar, tentava entendê-los além da moldura turva da água, além dos reflexos do fim de tarde, além das notas de minha solidão. Enquanto fugia das armadilhas que de mim se cercavam, conseguia captar suspiros, detectar lágrimas forçosamente contidas, respirações doloridas e entrecortadas, conseguia apreender o instante da expressão humana, as coisas pequenas que bailavam nas cordas do destino de cada um daqueles pescadores.
No meu pensamento, eu achava que eram todos pescadores, ali , à beira do rio, eles eram pelo menos. Muitos, imaginava eu, já haviam passado por muita coisa nessa vida, visto, ouvido, sentido, escondido muito. Os pescadores sempre me deram a impressão de esconder muita coisa. Era como se o rio, o céu limpo, o silêncio da mata, preservasse e oferecesse lindamente toda paz que eles buscavam, como se ali eles não precisassem reter mais nada, em um movimento sutil e inconsciente, as emoções afloravam, mudas, como tudo à sua volta. Nesse movimento, eles puxavam uma conversa ou outra, lançavam as varas, armavam as iscas, e esperavam...Esperavam algo que ia muito além de mim, esperavam sentidos, respostas, uma espécie de cama macia e quentinha para dias de incompreensão e mudanças que seu pensamento, marcado pelos hábitos de outro tempo, já não acompanhava mais.
Manuel, o do começo desta história, era um dos pescadores que vinha sentar -se na margem do rio. Homem de uns setenta e tantos anos, parecido no jeito e aparência com os outros, tinha, no entanto, algo de diferente. Alguma coisa nele me deixava triste, incompreensivelmente triste. Seu Manoel sempre chegava com a mesma graça, animado, naturalmente alegre. Conversava com todos os que estavam por perto do lugar onde costumava se sentar para pescar. Contava piadas, rimava alguns versos soltos, fazia homenagens, e, muitas vezes, repetia a mesma piada que contara no dia anterior. Mesmo repetindo, achava nela graça e a contava com o entusiasmo de sempre. Não era nem alto, nem baixo, tinha uma altura média, também não era nem gordo, nem magro, tampouco demasiado expansivo ou demasiado taciturno, tinha um comportamento equilibrado. Em meio a esse equilíbrio, ele parecia ter mais alma que os demais. Nunca conseguia me pegar, tentava, tentava, mas eu parecia conhecer seus movimentos de mão, o tipo de sua isca, e, definitivamente, preferia olhá-lo de longe, assim podia vê-lo melhor, mesmo sob um aspecto meio diluído, esfumaçado. Eventualmente, podia até rir das suas piadas e, algo que ainda não contei, deliciar-me com a sua música. O homem que tinha olhos verde cor de mar, pele vermelha pintada pelo sol, cabelos impecavelmente penteados para trás e sérios no seu tom acinzentado, de vez em quando, sentava à beira do rio e entoava uma belíssima melodia em homenagem às águas que corriam soltas, às árvores, ao colorido avermelhado dos fins de tarde, à calma reticente e doce daquela paisagem que tinha ares de eternidade. Seus dedos percorriam as cordas do violão com tal maestria, perfeição e segurança que ele não tocava apenas para os homens, muito pelo contrário, parecia tocar para os pássaros, para o rio, para o silêncio das almas suspensas e ensandecidas. O ritmo que das cordas saltava tinha tanto de infância, um cheiro de menino, um riso quase ingênuo e era simplesmente lindo. Perdi a conta de quantas vezes o ouvi e dormi. No sono sonhava com outros rios, novas águas, visitava lugares longínquos para onde me levava aquela doce melodia. O fato é que o homem tocava e cantava de forma bastante melancólica, compunha letras e as harmonizava com uma melodia marcada pela saudade. Quem ouvia tinha saudade do que nem sabia, talvez do que nunca sequer tivesse vivido. Eu sentia tanta coisa das quais nem sei o nome, mas que eu tinha algumas coisas eu tinha. Era um transbordamento, um sair de dentro de mim mesmo, um caminho em direção ao sublime, ao êxtase, à vida em seu estado mais primitivo.
Lembro-me de quando o homem assim cantou em um daqueles remotos fins de tarde:

Até parece que o mundo
não está mais aqui
tudo tem mudado
tudo tem se deslocado

Até parece que as faltas aumentaram
o vazio dentro de mim é tão grande
os passos repetidos
os lugares comuns
os amores tantos perdidos

Até parece que tudo se inverteu
não se reconhece na primavera as flores
no outono as folhas
no inverno as noites frias e longas
está tudo tão mudado

Mas eis que as coisas mudem
o novo sempre vem
não é isso que dizem
até parece que os sentimentos também mudam
mas creio que os sentimentos não mudam não

Ainda somos iguais por dentro
talvez soframos até mais
Eu, já cansado,
Saio e entro do meu quarto
Sento e olho todo esse rio de tanta paz
e apenas sinto saudade
saudade de coisas perdidas
de olhares não retidos
de beijos não conseguidos
O mundo está diferente
mas as pessoas ainda sofrem de saudade
o vazio só faz aumentar
não importa o santo ou a idade
eu canto na beira do rio
por ser ele mais calmo que o mar



Lembro-me desta melodia, letra por letra, verso por verso, se tivesse mão acho que também seria capaz de tocá-la no violão, só de ouvido, nota por nota.
E também me recordo de uma conversa acontecida nas margends do rio, essa foi no fatídico dia em que ele conseguiu tomar-me, embora confesse de antemão que me deixei pegar.
A conversa era mais ou menos assim:
-E aí Seu Manoel, como vai a vida? , perguntou, meio curioso, meio ansioso, um outro velho pescador daqueles lados de lá.
Com o tradicional tom alegre e divertido respondeu Seu Manoel:
- Arrastando a carga eu diria. E soltou alguns risos mais frenéticos do que regados por sinceridade.
- E a carga vai muito pesada? Insistiu o outro velho pescador.
- Nem muito, nem pouco, mas está diferente. Não é mais a mesma carga. E esboçou um tom triste e nostálgico.
- Como assim? Era insistente o tal, meio chato até.
- Não sei, as coisas mudaram tanto. Hoje mesmo estava pensando, há alguns anos, demorava-se mais ou menos uns seis meses para que a carne de um boi estivesse boa para se comer, hoje, em um mês ela já está boa. O mesmo acontece com o frango. Vejo hoje que um frango já pode ser comido em menos de um mês, antes, também se levava em média seis meses para ele estivesse bom. O mundo está correndo demais. Tudo parece que anda mais rápido. Das minhas netas, algumas já estão bem crescidas para a idade, com as minhas filhas não foi assim. Cedo já se começa a namorar, tudo acontece bastante cedo hoje em dia. Mas, enfim, dizem que é outro tempo, que as coisas mudaram, eu estou velho mesmo, ainda penso em quando as coisas tinham seu próprio tempo, em quando se respeitava esse tempo. O fato é que tudo anda rápido demais pra mim.
- É mas o mundo está assim mesmo Seu Manoel, pra onde se vê só se fala em velocidade, tecnologia, é tudo bem rápido hoje em dia, de lerdo já basta nós que estamos velhos né! , e deu algumas risadas leves e espontâneas, um tanto debochadas.
- É! Mas ainda restam alguns lugares calmos, como esse rio aqui, lugares que andam devagar. Gosto de vir pescar porque encontro um pouco da calma que ainda não se perturbou, do mundo que ainda não se agilizou e se modernizou. Aqui, consigo ouvir um pouco dos pássaros, sentir o cheiro das árvores, provar do sabor do vento que bate em meu rosto e varre de minha mente tristezas constantes. Ouço apenas a batida do meu coração e sinto o ritmo certeiro da respiração. Diga-me companheiro, onde, lá fora, podemos ouvir a batida do nosso coração, quanto mais o ritmo da nossa respiração? O olhar rascunhou um brilho longo e profundo.
- Em nenhum lugar eu diria. Talvez nem quando vamos dormir, eu, pelo menos, fico preocupado quando vou dormir, meus sonhos são bem agitados, eu durmo com medo, medo de morrer e medo de que algo ruim aconteça com meus filhos, netos, enfim...
- Eu durmo ouvindo os carros que não param de passar em baixo da minha janela. Meu Deus! Nunca vi tantos e cada vez mais rápido eles passam, frenéticos, enlouquecidos. E o que dizer dos ônibus, certo dia tive que pegar um deles, estava simplesmente lotado, acho que não havia espaço sequer para uma formiga, um caindo por cima do outro, pessoas discutindo porque não cabiam naquele espaço, crianças chorando assutadas, algumas almas já se encontravam desmaiadas nos bancos, cansadas, em busca de alguns minutos de sossego, em busca do sono como remédio para fugir daquela loucura. Lembro-me que, nesse dia, olhei pela janela e vi um lagarto que dançava por entre pétalas cor de rosa caídas de uma bela árvore que temos na Avenida da Saudade. O lagarto no meio das pétalas dava uma belíssima imagem para um quadro, daqueles do tipo que parecem até rabiscos de criança. O fato é que o lagarto olhava tudo com um recorte meio assombrado. Dava pra perceber, por trás do vidro um pouco sujo do ônibus, como ele olhava assustado, como seus olhos estavam marcados por um tom de espanto, deixando transparecer uma espírito atônito, uma alma deslocada do seu lugar calmo e coerente habitual e despejada em um fluxo diluído, rarefeito, despedaçado, onde perdem-se as referências, há apenas uma multidão, seguida por outra e mais outra...
- É, mas está por demais pessimista meu caro amigo. Sempre te acho uma pessoa tão alegre, afeito às piadas, a uma boa gargalhada, fazendo sua música, rimando seus versos. O que te tem acontecido, de onde vem toda essa melancolia?
- Não sei, talvez dos dias, dos anos. Minha vida tem se tornado bastante enfadonha. Acordo cedo, bem cedo todos os dias, pois não consigo acostumar-me a acordar tarde. Assim que levanto, vou para o sítio. Muito dele já não é mais meu. Vendi mais da metade por causa da crise de uns vinte anos atrás. Fiquei apenas com aquele pedaço de chão que tem uma bela cachoeira, uma pequena horta onde planto alguns tomates e verduras,dependendo da estação, e um lugarzinho onde crio alguns bezerros e cabras. Aliás, interessante as cabras, tenho com elas conversado bastante, são desconfiadas, parecem desse mundo também não gostarem tanto. Quando chego em casa, almoço. Almoço bem devo dizer. Orgulho-me de ao menos comer bem e saber desfrutar de minhas refeições. Hoje, percebo que já não se come como antes, também na comida, as pessoas mudaram. Você é o que você come não é! Já ouvi dizerem isso. É a mais pura verdade. Há crianças que por não comerem carne, por exemplo, se desenvolvem mais rápido do que outras, algo de hormônio, é ouvi falar. Outra bagunça dos dias de hoje. Falando nisso, você sabe da história do jacaré?
- Não sei não! Que história?
- Vi em um desses jornais da televisão que os jacarés estão todos virando gays e deixando de se reproduzir?
- Como? Explica isso direito homem! Perguntou meio espantado o outro pescador esquecendo na terra o anzol que outrora tentava colocar na vara.
- Funciona mais ou menos assim. Os rios hoje em dia estão cada vez mais poluídos, muito material tóxico vai parar nas águas e isso acaba tendo sérias consequências. Segundo uma pesquisa, certas substâncias tóxicas presentes em um rio de uma região que não me lembro agora qual é , fizeram como que os jacarés que ali viviam passassem a comer plantas contaminadas e, em razão disso, começaram a desenvolver mais hormônios femininos do que masculinos, o que fez com que eles procurassem menos as fêmeas e se reproduzissem menos. Ou seja, está tudo uma bagunça.
- Pode ser, que coisa incrível essa do jacaré, bom, mas as mudanças também trazem muita coisa boa, o mundo hoje não é tão ruim. Nesse ponto, o outro pescador já voltara a pegar o anzol da terra e se concentrava em armá-lo na vara.
- Não, não é mesmo. As pessoas parecem felizes, vivem, lutam consigo mesmas e com todo essa bagunça cotidiana. Eu é que não estou bem, eu é que não me conformo, não consigo me conformar. Eu é que todos os dias apenas acordo, durmo, ando de um lado para o outro palitando um palito entre meus dentes há muito já podres. E assim vou, coloco uma bela roupa, visto meu chapéu, saio, converso com alguns sobre coisas que no fundo me irritam, volto pra casa, janto, assisto aqueles programas enfadonhos na televisão que me distraem e acabam fazendo com que eu canse menos da minha falta do que fazer. Às vezes, pego meu violão, começo a cantar, ouço a vizinha gritando, “Continue que está muito bom”! Eu me sinto um pouco animado, mas a animação logo passa! Nunca gosto do que faço, acho que tudo que já ouvi é melhor do que tudo que já compus. Bom, mas de uma coisa eu ainda gosto: vir pescar todos os dias. Passo aqui meus fins de tarde, longe de tudo que me atormenta, longe de vozes e discussões, longe de carros, pressa e multidão. Acho que agora estou em uma fase na qual preciso encontrar a mim mesmo, ou reencontrar-me comigo mesmo em algum lugar onde esqueci um pedaço de minha alma, a nota de alguma canção.
- Belas palavras meu amigo, belas palavras....
De repente, a conversa se interrompeu, senti que algo me fisgava, me cortava. Fui arremessado para fora da água com força, com firmeza. Em um rápido movimento de volta, pousei meus olhos nos olhos verde cor de mar do pescador que tocava violão. Seus olhos estavam ligeiramente marejados, molhados, como eu sempre tivera a impressão de que estavam, mas, dessa vez, os vi de perto, não mais turvos entre a água e o ar. Agora, era eu um peixe fora da água, mergulhado naqueles olhos verdes cor de mar, olhos dos quais eu nunca me esqueci.
O pescador depois de me fisgar, colocou-me delicadamente, revelando toda a graça e a delicadeza que lhe eram peculiar de volta na água para que nela eu voltasse a navegar.

Ouvi ele dizendo:
- Toma seu rumo amigo, acho que aí embaixo deve ser melhor que aqui em cima. Pelo menos parece um lugar mais protegido, confortável. Aqui em cima você seria mais um lagarto em meio às pétalas cor de rosa, de todo, eu já tenho tanta coisa que nem sei mais o que eu tenho. Às vezes, confesso que acho que não tenho nada.
Essas foram dele as últimas palavras que eu ouvi, naquele dia. Nos outros, ele não apareceu mais para sentar-se à beira do rio, tocar seu violão, contar a mesma piada do dia anterior, entoar algumas notas de saudade, olhar o céu, a tarde indo embora e soltar aquele suspiro tão forte e profundo que parecia entregar todo o seu coração e toda sua alma, deixando que a tarde os levasse embora junto dela. Nesses instantes de intenso suspiro que agora me voltam vagos e esfumaçados, era como se o coração daquele pescador não fosse desse mundo. Penso que ele deve ter sido, de fato, de algum outro mundo, mais calmo, mais repleto de sentidos, ligeiramente mais sublime. Seu caminho era mais largo que o caminho dos outros pescadores, feito de fatos mais perenes, de menos fugacidade.
Talvez, ele pertencesse àqueles fins de tarde, somente a eles, a mais nada.


Se acordar meio torto
meio tonto
meio vivo
quase morto
procure os lugares mudos
aqueles onde se guarda o silêncio
faça neles sua alma chorar
lá não existe mudança
tampouco tempo
o único som é do correr da água
e do bailar do vento

terça-feira, 30 de março de 2010

Wifredo Lam – O Sonho dos Trópicos em uma porta ao lado de Andy Warhol na Estação Pinacoteca

Na Estação Pinacoteca - antigo Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de São Paulo, órgão de repressão política que teve o ápice de suas atividades durante o regime militar (1964-1985) - não confundir com a tradicional e bela Pinacoteca, o público encontra uma das exposições mais comentadas, divulgadas e procuradas dos dias recentes. Trata-se da individual do artista norte-americano, símbolo da pop-art, Andy Warhol.
A publicidade em torno da exposição de Andy Warhol diz que se trata da maior exposição do artista já montada na América Latina", mas o que se vê dá aquela sensação de “pensei que fosse mais”.
A exposição parece ser melhor quando se lê sobre ela, sobre a importância que Warhol teve para sua época, sobre seu olhar de vanguarda, sua capacidade de antecipar tendências futuras, mas quando se vê de perto, falta algo que emocione, que revele um caminho verdadeiramente artístico. No entanto, se os comentários o atraírem, caro leitor, para a individual de Andy Warhol, vá e se sentir que as produções do americano não lhe trazem nenhuma nova e profunda sensação, entre por outra porta, em uma na qual há uma inscrição tímida em um dos cantos dizendo “Wifredo Lam”. Não, não vá embora, abra esta porta:
Eis o mundo desse outro pedaço de chão...

La Jungla

Femme Assise

Zambezia, Zambezia

Les loa petro enfantent dans la danse

Soeur de la gazelle

Untitled C

Untitled A

Nativité

Annonciation


As linhas, os contornos, as cores, tudo revela uma estética que vai além do surrealismo. Há algo de sexual, de onírico, há um prazer disfarçado, uma verdade escondida, por vezes, revelada. A sensação é de leveza, tal como um voo a desprender quem olha do chão, a aproximar quem vê do infinito ou de algo mais imenso, largo, flutuante... Mágico! Um feitiço que resvala abertamente na criatividade, imaginação levada até o ponto onde ela se faz necessária, em hipótese alguma excessiva ou ridícula. Uma tragédia escrita com formas e detalhes na medida certa. Nada sobra, tudo transborda. A estética da obra de arte provoca o extravasamento, a saída e o reconhecimento de si mesmo. Há algo de romântico misturado ao surrealismo. Uma pincelada emotiva, imaginativa, uma preocupação com a forma equilibrada com uma busca pelos sentidos, pela emoção genuína e primitiva. Ao olhar já se reconhece o estilo, a dádiva de ser original, a "mimesis" grega talvez até tenha existido na construção dessas obras, mas no sentido de tomá-la para ir além da pura e simples imitação, a originalidade está em olhar o que já se construiu e pensar em algo novo, algo autoral. Arte é estilo, nada mais que isso!
Wifredo Lam (1902-1982),artista cubano, viveu por um tempo na França onde sofreu influência tanto de Picasso como da estética surrealista, foi um pintor capaz de sintetizar os elementos culturais de uma América genuinamente diversa - que era folclore de um lado e autêntica vivência popular e forma de representar o mundo de outro - tão plástica, mística e surreal. Daí, algumas características que marcam a sua produção artística.
Sem ele, talvez teríamos, nós, habitantes da América, ficado sem uma perturbadora e profunda visão de nós mesmos, de tudo aquilo que temos de belo e fantástico. Lam absorveu, como nenhum outro artista, a força literária do surrealismo, deu lugar na sua obra para que irrompesse a voz e força do oprimido e não se contentou com lugares comuns, deu ao povo um espelho salpicado por cores para que nele enfim tivéssemos uma visão de quem realmente somos.
Ficamos tímidos diante das gravuras de Lam, o surrealismo nos bloqueia, sua realidade nos parece muitas vezes distante, estranha. Wifredo Lam funciona também como um sintoma da plasticidade imaginativa que nos marca, desta dificuldade que temos em nos libertar de nossa, algumas vezes besta, racionalidade.