domingo, 4 de abril de 2010

Um olhar que cala por dentro

Peixes Preto & Branco, Paulo Consentino


Seu Manuel vivia sentado à beira do rio, contemplando sereno e regado por um leve tom de melancolia o cair da tarde e o irromper da noite. O horizonte era emoldurado pelas linhas retas e infinitas do rio, as águas calmas, silenciosas, faziam com que o restante da paisagem ganhasse um tom quase mudo. Tudo seguia seu movimento de forma lenta e graciosa. De vez em quando, o barulho de alguma ave, o ruído de algum peixe beliscando a superfície calma do rio, o espreguiçar dos outros homens que por ali se aglomeravam, cortava o fluxo sem rumo dos seus pensamentos, das memórias, dos sofrimentos daquele homem aparentemente cansado.

Daqui de baixo, eu apenas olhava. Olhava atento, devo assim dizer, e um tanto desconfiado. Passeava minha vista por todos aqueles que podia com o olhar alcançar, tentava entendê-los além da moldura turva da água, além dos reflexos do fim de tarde, além das notas de minha solidão. Enquanto fugia das armadilhas que de mim se cercavam, conseguia captar suspiros, detectar lágrimas forçosamente contidas, respirações doloridas e entrecortadas, conseguia apreender o instante da expressão humana, as coisas pequenas que bailavam nas cordas do destino de cada um daqueles pescadores.
No meu pensamento, eu achava que eram todos pescadores, ali , à beira do rio, eles eram pelo menos. Muitos, imaginava eu, já haviam passado por muita coisa nessa vida, visto, ouvido, sentido, escondido muito. Os pescadores sempre me deram a impressão de esconder muita coisa. Era como se o rio, o céu limpo, o silêncio da mata, preservasse e oferecesse lindamente toda paz que eles buscavam, como se ali eles não precisassem reter mais nada, em um movimento sutil e inconsciente, as emoções afloravam, mudas, como tudo à sua volta. Nesse movimento, eles puxavam uma conversa ou outra, lançavam as varas, armavam as iscas, e esperavam...Esperavam algo que ia muito além de mim, esperavam sentidos, respostas, uma espécie de cama macia e quentinha para dias de incompreensão e mudanças que seu pensamento, marcado pelos hábitos de outro tempo, já não acompanhava mais.
Manuel, o do começo desta história, era um dos pescadores que vinha sentar -se na margem do rio. Homem de uns setenta e tantos anos, parecido no jeito e aparência com os outros, tinha, no entanto, algo de diferente. Alguma coisa nele me deixava triste, incompreensivelmente triste. Seu Manoel sempre chegava com a mesma graça, animado, naturalmente alegre. Conversava com todos os que estavam por perto do lugar onde costumava se sentar para pescar. Contava piadas, rimava alguns versos soltos, fazia homenagens, e, muitas vezes, repetia a mesma piada que contara no dia anterior. Mesmo repetindo, achava nela graça e a contava com o entusiasmo de sempre. Não era nem alto, nem baixo, tinha uma altura média, também não era nem gordo, nem magro, tampouco demasiado expansivo ou demasiado taciturno, tinha um comportamento equilibrado. Em meio a esse equilíbrio, ele parecia ter mais alma que os demais. Nunca conseguia me pegar, tentava, tentava, mas eu parecia conhecer seus movimentos de mão, o tipo de sua isca, e, definitivamente, preferia olhá-lo de longe, assim podia vê-lo melhor, mesmo sob um aspecto meio diluído, esfumaçado. Eventualmente, podia até rir das suas piadas e, algo que ainda não contei, deliciar-me com a sua música. O homem que tinha olhos verde cor de mar, pele vermelha pintada pelo sol, cabelos impecavelmente penteados para trás e sérios no seu tom acinzentado, de vez em quando, sentava à beira do rio e entoava uma belíssima melodia em homenagem às águas que corriam soltas, às árvores, ao colorido avermelhado dos fins de tarde, à calma reticente e doce daquela paisagem que tinha ares de eternidade. Seus dedos percorriam as cordas do violão com tal maestria, perfeição e segurança que ele não tocava apenas para os homens, muito pelo contrário, parecia tocar para os pássaros, para o rio, para o silêncio das almas suspensas e ensandecidas. O ritmo que das cordas saltava tinha tanto de infância, um cheiro de menino, um riso quase ingênuo e era simplesmente lindo. Perdi a conta de quantas vezes o ouvi e dormi. No sono sonhava com outros rios, novas águas, visitava lugares longínquos para onde me levava aquela doce melodia. O fato é que o homem tocava e cantava de forma bastante melancólica, compunha letras e as harmonizava com uma melodia marcada pela saudade. Quem ouvia tinha saudade do que nem sabia, talvez do que nunca sequer tivesse vivido. Eu sentia tanta coisa das quais nem sei o nome, mas que eu tinha algumas coisas eu tinha. Era um transbordamento, um sair de dentro de mim mesmo, um caminho em direção ao sublime, ao êxtase, à vida em seu estado mais primitivo.
Lembro-me de quando o homem assim cantou em um daqueles remotos fins de tarde:

Até parece que o mundo
não está mais aqui
tudo tem mudado
tudo tem se deslocado

Até parece que as faltas aumentaram
o vazio dentro de mim é tão grande
os passos repetidos
os lugares comuns
os amores tantos perdidos

Até parece que tudo se inverteu
não se reconhece na primavera as flores
no outono as folhas
no inverno as noites frias e longas
está tudo tão mudado

Mas eis que as coisas mudem
o novo sempre vem
não é isso que dizem
até parece que os sentimentos também mudam
mas creio que os sentimentos não mudam não

Ainda somos iguais por dentro
talvez soframos até mais
Eu, já cansado,
Saio e entro do meu quarto
Sento e olho todo esse rio de tanta paz
e apenas sinto saudade
saudade de coisas perdidas
de olhares não retidos
de beijos não conseguidos
O mundo está diferente
mas as pessoas ainda sofrem de saudade
o vazio só faz aumentar
não importa o santo ou a idade
eu canto na beira do rio
por ser ele mais calmo que o mar



Lembro-me desta melodia, letra por letra, verso por verso, se tivesse mão acho que também seria capaz de tocá-la no violão, só de ouvido, nota por nota.
E também me recordo de uma conversa acontecida nas margends do rio, essa foi no fatídico dia em que ele conseguiu tomar-me, embora confesse de antemão que me deixei pegar.
A conversa era mais ou menos assim:
-E aí Seu Manoel, como vai a vida? , perguntou, meio curioso, meio ansioso, um outro velho pescador daqueles lados de lá.
Com o tradicional tom alegre e divertido respondeu Seu Manoel:
- Arrastando a carga eu diria. E soltou alguns risos mais frenéticos do que regados por sinceridade.
- E a carga vai muito pesada? Insistiu o outro velho pescador.
- Nem muito, nem pouco, mas está diferente. Não é mais a mesma carga. E esboçou um tom triste e nostálgico.
- Como assim? Era insistente o tal, meio chato até.
- Não sei, as coisas mudaram tanto. Hoje mesmo estava pensando, há alguns anos, demorava-se mais ou menos uns seis meses para que a carne de um boi estivesse boa para se comer, hoje, em um mês ela já está boa. O mesmo acontece com o frango. Vejo hoje que um frango já pode ser comido em menos de um mês, antes, também se levava em média seis meses para ele estivesse bom. O mundo está correndo demais. Tudo parece que anda mais rápido. Das minhas netas, algumas já estão bem crescidas para a idade, com as minhas filhas não foi assim. Cedo já se começa a namorar, tudo acontece bastante cedo hoje em dia. Mas, enfim, dizem que é outro tempo, que as coisas mudaram, eu estou velho mesmo, ainda penso em quando as coisas tinham seu próprio tempo, em quando se respeitava esse tempo. O fato é que tudo anda rápido demais pra mim.
- É mas o mundo está assim mesmo Seu Manoel, pra onde se vê só se fala em velocidade, tecnologia, é tudo bem rápido hoje em dia, de lerdo já basta nós que estamos velhos né! , e deu algumas risadas leves e espontâneas, um tanto debochadas.
- É! Mas ainda restam alguns lugares calmos, como esse rio aqui, lugares que andam devagar. Gosto de vir pescar porque encontro um pouco da calma que ainda não se perturbou, do mundo que ainda não se agilizou e se modernizou. Aqui, consigo ouvir um pouco dos pássaros, sentir o cheiro das árvores, provar do sabor do vento que bate em meu rosto e varre de minha mente tristezas constantes. Ouço apenas a batida do meu coração e sinto o ritmo certeiro da respiração. Diga-me companheiro, onde, lá fora, podemos ouvir a batida do nosso coração, quanto mais o ritmo da nossa respiração? O olhar rascunhou um brilho longo e profundo.
- Em nenhum lugar eu diria. Talvez nem quando vamos dormir, eu, pelo menos, fico preocupado quando vou dormir, meus sonhos são bem agitados, eu durmo com medo, medo de morrer e medo de que algo ruim aconteça com meus filhos, netos, enfim...
- Eu durmo ouvindo os carros que não param de passar em baixo da minha janela. Meu Deus! Nunca vi tantos e cada vez mais rápido eles passam, frenéticos, enlouquecidos. E o que dizer dos ônibus, certo dia tive que pegar um deles, estava simplesmente lotado, acho que não havia espaço sequer para uma formiga, um caindo por cima do outro, pessoas discutindo porque não cabiam naquele espaço, crianças chorando assutadas, algumas almas já se encontravam desmaiadas nos bancos, cansadas, em busca de alguns minutos de sossego, em busca do sono como remédio para fugir daquela loucura. Lembro-me que, nesse dia, olhei pela janela e vi um lagarto que dançava por entre pétalas cor de rosa caídas de uma bela árvore que temos na Avenida da Saudade. O lagarto no meio das pétalas dava uma belíssima imagem para um quadro, daqueles do tipo que parecem até rabiscos de criança. O fato é que o lagarto olhava tudo com um recorte meio assombrado. Dava pra perceber, por trás do vidro um pouco sujo do ônibus, como ele olhava assustado, como seus olhos estavam marcados por um tom de espanto, deixando transparecer uma espírito atônito, uma alma deslocada do seu lugar calmo e coerente habitual e despejada em um fluxo diluído, rarefeito, despedaçado, onde perdem-se as referências, há apenas uma multidão, seguida por outra e mais outra...
- É, mas está por demais pessimista meu caro amigo. Sempre te acho uma pessoa tão alegre, afeito às piadas, a uma boa gargalhada, fazendo sua música, rimando seus versos. O que te tem acontecido, de onde vem toda essa melancolia?
- Não sei, talvez dos dias, dos anos. Minha vida tem se tornado bastante enfadonha. Acordo cedo, bem cedo todos os dias, pois não consigo acostumar-me a acordar tarde. Assim que levanto, vou para o sítio. Muito dele já não é mais meu. Vendi mais da metade por causa da crise de uns vinte anos atrás. Fiquei apenas com aquele pedaço de chão que tem uma bela cachoeira, uma pequena horta onde planto alguns tomates e verduras,dependendo da estação, e um lugarzinho onde crio alguns bezerros e cabras. Aliás, interessante as cabras, tenho com elas conversado bastante, são desconfiadas, parecem desse mundo também não gostarem tanto. Quando chego em casa, almoço. Almoço bem devo dizer. Orgulho-me de ao menos comer bem e saber desfrutar de minhas refeições. Hoje, percebo que já não se come como antes, também na comida, as pessoas mudaram. Você é o que você come não é! Já ouvi dizerem isso. É a mais pura verdade. Há crianças que por não comerem carne, por exemplo, se desenvolvem mais rápido do que outras, algo de hormônio, é ouvi falar. Outra bagunça dos dias de hoje. Falando nisso, você sabe da história do jacaré?
- Não sei não! Que história?
- Vi em um desses jornais da televisão que os jacarés estão todos virando gays e deixando de se reproduzir?
- Como? Explica isso direito homem! Perguntou meio espantado o outro pescador esquecendo na terra o anzol que outrora tentava colocar na vara.
- Funciona mais ou menos assim. Os rios hoje em dia estão cada vez mais poluídos, muito material tóxico vai parar nas águas e isso acaba tendo sérias consequências. Segundo uma pesquisa, certas substâncias tóxicas presentes em um rio de uma região que não me lembro agora qual é , fizeram como que os jacarés que ali viviam passassem a comer plantas contaminadas e, em razão disso, começaram a desenvolver mais hormônios femininos do que masculinos, o que fez com que eles procurassem menos as fêmeas e se reproduzissem menos. Ou seja, está tudo uma bagunça.
- Pode ser, que coisa incrível essa do jacaré, bom, mas as mudanças também trazem muita coisa boa, o mundo hoje não é tão ruim. Nesse ponto, o outro pescador já voltara a pegar o anzol da terra e se concentrava em armá-lo na vara.
- Não, não é mesmo. As pessoas parecem felizes, vivem, lutam consigo mesmas e com todo essa bagunça cotidiana. Eu é que não estou bem, eu é que não me conformo, não consigo me conformar. Eu é que todos os dias apenas acordo, durmo, ando de um lado para o outro palitando um palito entre meus dentes há muito já podres. E assim vou, coloco uma bela roupa, visto meu chapéu, saio, converso com alguns sobre coisas que no fundo me irritam, volto pra casa, janto, assisto aqueles programas enfadonhos na televisão que me distraem e acabam fazendo com que eu canse menos da minha falta do que fazer. Às vezes, pego meu violão, começo a cantar, ouço a vizinha gritando, “Continue que está muito bom”! Eu me sinto um pouco animado, mas a animação logo passa! Nunca gosto do que faço, acho que tudo que já ouvi é melhor do que tudo que já compus. Bom, mas de uma coisa eu ainda gosto: vir pescar todos os dias. Passo aqui meus fins de tarde, longe de tudo que me atormenta, longe de vozes e discussões, longe de carros, pressa e multidão. Acho que agora estou em uma fase na qual preciso encontrar a mim mesmo, ou reencontrar-me comigo mesmo em algum lugar onde esqueci um pedaço de minha alma, a nota de alguma canção.
- Belas palavras meu amigo, belas palavras....
De repente, a conversa se interrompeu, senti que algo me fisgava, me cortava. Fui arremessado para fora da água com força, com firmeza. Em um rápido movimento de volta, pousei meus olhos nos olhos verde cor de mar do pescador que tocava violão. Seus olhos estavam ligeiramente marejados, molhados, como eu sempre tivera a impressão de que estavam, mas, dessa vez, os vi de perto, não mais turvos entre a água e o ar. Agora, era eu um peixe fora da água, mergulhado naqueles olhos verdes cor de mar, olhos dos quais eu nunca me esqueci.
O pescador depois de me fisgar, colocou-me delicadamente, revelando toda a graça e a delicadeza que lhe eram peculiar de volta na água para que nela eu voltasse a navegar.

Ouvi ele dizendo:
- Toma seu rumo amigo, acho que aí embaixo deve ser melhor que aqui em cima. Pelo menos parece um lugar mais protegido, confortável. Aqui em cima você seria mais um lagarto em meio às pétalas cor de rosa, de todo, eu já tenho tanta coisa que nem sei mais o que eu tenho. Às vezes, confesso que acho que não tenho nada.
Essas foram dele as últimas palavras que eu ouvi, naquele dia. Nos outros, ele não apareceu mais para sentar-se à beira do rio, tocar seu violão, contar a mesma piada do dia anterior, entoar algumas notas de saudade, olhar o céu, a tarde indo embora e soltar aquele suspiro tão forte e profundo que parecia entregar todo o seu coração e toda sua alma, deixando que a tarde os levasse embora junto dela. Nesses instantes de intenso suspiro que agora me voltam vagos e esfumaçados, era como se o coração daquele pescador não fosse desse mundo. Penso que ele deve ter sido, de fato, de algum outro mundo, mais calmo, mais repleto de sentidos, ligeiramente mais sublime. Seu caminho era mais largo que o caminho dos outros pescadores, feito de fatos mais perenes, de menos fugacidade.
Talvez, ele pertencesse àqueles fins de tarde, somente a eles, a mais nada.


Se acordar meio torto
meio tonto
meio vivo
quase morto
procure os lugares mudos
aqueles onde se guarda o silêncio
faça neles sua alma chorar
lá não existe mudança
tampouco tempo
o único som é do correr da água
e do bailar do vento

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