terça-feira, 27 de abril de 2010

Instantes de lucidez para pedaços de uma loucura em cerâmica


Parte 2
Voltando ao homem todo de branco, do seu lado havia uma bolsa cheia de moedas. Do outro lado, um corvo. Sombrio e diria até amaldiçoado. Meus olhos moveram-se para o outro pedaço de cerâmica no qual pude ver uma mulher com incrível graça e jeito de menina. A graça e o jeito eram tão fortes e visíveis que pareciam saltar das formas constantes e mudas do desenho, era como se por um minuto falassem. Risonha, enfeitada, olhos saltados, modos ligeiramente exagerados. Ao redor de sua cabeça, voavam alguns seres que pareciam espíritos a cochichar coisas em seus ouvidos. A imagem dava a impressão de que quanto mais lhe falavam esses seres sobre sua cabeça, mais ela se agitava em uma espécie de êxtase descontrolado, quase como se estivesse embriagada. Seu corpo no mesmo movimento que ficava no lugar também saía de dentro dela mesma. Às vezes, eram dois corpos, em outras, apenas um. Tudo ali parecia dançar freneticamente, não havia tempo.
Pulando para o outro pedaço de cerâmica, vi uma raposa parecida contigo. Bela, saudável, com um ar de certeza e superioridade, assim como o teu, embora tu me parecas ainda mais petulante. Pendurado no pescoço da raposa havia um relógio que eu não sabia distinguir que horas marcava. Olhando com mais atenção, vi que nele não havia ponteiros, nem o grande tampouco o pequeno. Também os números que marcam as horas tinham diminuído. Eles não terminavam no doze, iam apenas até o três. Um. Dois. Três. Engraçado como tens um parecido, às vezes, parece até o mesmo. A raposa do pedaço de cerâmica parecia orgulhosa. Ao lado dela não havia nada, apenas um branco vazio. Confusa, fui para o próximo pedaço. Nele, algo parecido com um tabuleiro de xadrez. Não havia peças. Apenas uma névoa espessa que parecia encobrir tudo. Caída do lado de fora do tabuleiro uma criança. Magra e envelhecida. De maneira alguma, parecia-se com as crianças que eu conhecia na época em que era criança, menos ainda comigo. Era como uma pessoa já bastante velha, enrugada, endurecida. Riscada pelo passar do tempo. Em uma de suas mãos, pude perceber, ao reparar com mais atenção, que seus pequenos e enrugados dedos seguravam apertada e protegida uma peça de xadrez. No formato e aparência da peça reconheci uma Torre. Demasiadamente atormentada, passei para o último pedaço daquele vaso que eu quebrara e que antes era em tudo parecido com um pássaro. No último pedaço, se espremia uma multidão. Pessoas encostadas umas nas outras, visivelmente atormentadas. Via-se em movimentos a desenhar-se que cada uma delas buscava a outra inutilmente. Ninguém conseguia se alcançar. Desesperada, uma mulher parecia se dirigir ao filho buscando abracá-lo, lutando contra algo que não era vento, tampouco concreto, muito menos vidro ou tempestade. Todos lutavam contra algo que não se parecia com nada e podia ser chamado de nada. Mas, ao mesmo tempo, não era nada. Havia alguma coisa entre uma pessoa e outra, entre a multidão desarranjada, mas essa coisa que havia não era nada.
Alucinada. Perdida em demências angustiadas. Rabiscada. Drogada de imagens que só poderiam ser de um futuro porque nada daquilo poderia ser presente ou passado. Inspirada pela conspiração. Protegida pelo drama e pela montagem de coisas sem conexão.
Quando voltei a mim não havia mais nada no chão. O que ficou foi apenas uma flor murcha. A cor das pétalas gastas não se imprimiu naquele instante em minha mente. Voltariam depois como um produto de ressaca.
Quase do chão tomei para mim a flor, mas lembro que tive medo naquela hora. Primeiro, um pássaro morto que parece renascer. Depois, o pássaro simplesmente vira vaso. Desengonçada, eu caio bem em cima do vaso e o faço em pedaços. Nos pedaços, desenhos, formas, cores e movimentos de perfeitas imagens. Maldição. Feitiçaria. “Não! Não quero tal flor”, pensei naquele dia”, e completei, “Acho que estou ficando louca”.
Durante dias, lembro que a flor jogada na chão ali ficou. Abandonada, quietinha. Tão murcha e feiinha que ninguém pegava. Os anos foram passando e eu, da flor murcha daquele dia, quase que já havia me esquecido completamente.
A flor ficaria nesse estado de esquecimento se não fosse um garoto que tinha a mesma idade que eu na época, 20 anos, e morava ao lado da minha casa. Ele sempre me perseguira desde a infância. Fazia de tudo pra me agradar. Eu gostava dele confesso, mas queria que ele me conquistasse por completo. Foi quando ganhei desse garoto um presente que me fez perdida e muda. Uma flor murcha. Julguei-me de imediato louca. Logo pensei na flor daquele dia, muitos anos atrás, no vaso feito em pedaços, nas imagens horríveis e sombrias que assisti sem entender muito nada daquilo. Naquele tempo dos meus 20 anos, elas já estavam quase que esquecidas, mas eis que me voltava a flor. Lembro que somente naquela ocasião, pude reparar na cor que da primeira vez nos meus olhos não se imprimira. Era vermelha, de um tom avermelhado e ligeiramente gasto. Foi quando tive um minuto de lucidez e disse pra mim mesma. “Mas que bobagem. Ai como estou sendo ingênua e demasiado supersticiosa. Magina! Tantos anos depois. É claro que não é a mesma flor, aquela deve ter sido pisoteada, desfeita, engolida pela poeira, desapareceu junto com todas aquelas imagens daquele meu sonho impossível. Sim, porque hoje vejo que só pode ter sido um sonho. Nenhuma lógica. Pássaro que vira vaso. Louca eu sou se acreditar em tudo isso!”.

Veja Parte 1

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