domingo, 31 de maio de 2009

"Madame Bovary sou eu", diz Gustave Flaubert

Jennifer Jones como Emma Bovary no filme A Brief Summary, de 1949

Estive lendo sobre Gustave Flaubert, mestre do realismo francês, minucioso na escolha das palavras, sentimental nos detalhes de um cotidiano para ele mortalmente carregado de tédio, ensopado do mesmo, inebriado por falsidades e convencionalismos. Estive lendo sobre suas obras, suas influências, sua história de vida marcada por solidões ocasionais e por ataques nervosos depois dos quais sobrevinha sempre a perda da consciência.
Segundo os médicos, Flaubert extravasava sua demasiada energia por meio desses acessos “histérico-epiléticos”. Os ataques desapareceram durante muitos anos de sua vida e só voltariam a agredi-lo no fim de sua existência. Existência esta que se encerra quando a palavra certa já não lhe ocorria mais, quando a mão já não tinha mais firmeza. Com um golpe mortal, o tédio se dissolve, a vida para. Em um dia de primavera de 1880 esse grande escritor francês resolve enfim suas inquietações, mesmo assim, morre sem cumprir uma das promessas que fez a um amigo. Flaubert queria resumir a sua vida, dizia ele, “tentarei contar-me a mim mesmo”.
Lendo tantas coisas sobre o escritor o que mais me impressionou foi entendê-lo justo por meio de sua personagem mais emblemática, forte, densa, misteriosa e fantástica - Emma Bovary, ou Madame Bovary. No livro que leva o nome da personagem, Flaubert decide atacar a moral burguesa, posta a nu em toda sua fragilidade, convencionalismo e falsidade, por meio da caracterização da vida monótona e sem atrativos da província.
O livro foi classificado por muitos da sociedade da época como imoral e, por isso, foi censurado, tendo sua publicação suspendia e seu autor processado. Flaubert sentou-se no banco dos réus em janeiro de 1857 para responder ao processo e ouvir um promotor pequeno e nervoso descrever Emma Bovary citando passagens do livro e investindo contra o autor.
Gustave Flaubert
A heroína era descrita e vista como depravada pela burguesia francesa, mas, segundo o advogado de defesa de Flaubert, toda depravação de Emma tinha que ser muito bem descrita, como de fato o foi pelo autor, para provar que o seu fim trágico constituiria o justo castigo de seus erros. Flaubert acabou absolvido graças à habilidade da defesa em distorcer e dissimular os verdadeiros propósitos de sua obra. Esta, uma vez publicada, esgotou-se em pouco tempo. Todos queriam saber quem era Madame Bovary, em quem o autor se inspirara para criar essa mulher que causava tanto alarde, tanta discussão. Porque ela era tão perigosa para os valores daquela sociedade tediante e vazia era a pergunta a que muitos se faziam na época.
A realidade é que Emma era a única personagem do romance de Flaubert que, para escapar à mediocridade do ambiente, enfrenta os preconceitos e persegue os próprios sonhos e aspirações. Por sua coragem e autenticidade ela se faz linda e sedutora e fica ainda mais instigante por meio da descrição de um autor que desejava a forma perfeita, a palavra certa e passava noites em busca de um adjetivo, semanas atrás de uma frase, escrevia e reescrevia uma página dezenas de vezes.
Mas, afinal, quem seria a mulher inspiradora de tão enigmática personagem? Nenhuma pista era satisfatória até que Flaubert decidiu revelar quem era Madame Bovary. “Madame Bovary sou eu” disse o escritor. De fato, conhecendo um pouco melhor a história do autor das linhas que deram forma a tão incrível mulher, percebe-se que a frase encerra muita verdade. Flaubert teve em sua vida o mesmo temperamento romântico de Emma e, assim como ela, também procurava fugir à mesquinhez cotidiana e sonhava com amores irreais, ansiando por uma existência mais plena.
Talvez, assim como Emma ele também cultivasse o desejo de sucumbir ao gosto do arsênico não vendo saída para a complexidade das experiências de uma natureza humana que se nega a fazer os pactos a que sorrateiramente somos coagidos por um entorno saturado pela aparência e falsidade das relações. O próprio Flaubert chegou a declarar ao concluir Madame Bovary: “Quando escrevi a cena do envenenamento, senti na boca o gosto do arsênico, senti-me envenenado. Tanto que tive duas indigestões seguidas – duas indigestões reais...”

sábado, 30 de maio de 2009

Púrpura


As cores são mais nítidas e fortes
As vozes são mais sonoras e ternas
As dores são mais tangentes e profundas
As alegrias mais efêmeras e singelas

Os beijos são mais longos, intermináveis, enlouquecidos
Os momentos são mais intensos e eternos
Os toques são mais arrepiantes e trêmulos
Os objetos são mais vivos

A flor é mais perfumada e doce
A chuva é mais acolhedora e fina
A noite mais inspiradora e escura
A música toca no mais perfeito ritmo e harmonia

O espaço é mais elevado
O sono mais confortante
O detalhe mais aparente
O destino desse encontro um mistério inebriante

Minha poesia se convence
Quer definir o amor em um verso
E só quer o belo
Grita loucamente
No delírio de suas letras
No fim e no começo de tudo
Onde já não há mais céu
Nem inferno

M.V

Por onde anda esta terra sonâmbula?

Poetizar a prosa com palavras inventadas, cultivar o desejo de estar disponível para ser encantado e encantar, ser por meio da escrita quando todo o resto nos nega, trazer o místico e o sobrenatural para o terreno do humano e do trivial, ensinar a sonhar por meio de relatos, sensibilizar socialmente por meio de amostras coletadas a partir do terreno da realidade, fazer esta terra andar a esmo carregada de sonhos, fazer olhos molhados, bocas secas e corações apertados. Assim é Mia Couto (1955), biólogo e escritor moçambicano, no seu livro Terra Sonâmbula de 1992. O livro narra a situação de Moçambique – país devastado por mais de trinta anos de guerra anticolonial (1965-1975) e civil (1976-1992) – no período pós-independência, e mergulha a história e as personagens em uma devastadora guerra-civil, revelando em suas páginas uma África mítica e corrupta, sonhadora e misteriosa, menos triste e mais cansada.

A história, narrada em terceira pessoa, preserva certa linearidade e faz com que as ações, que se desenrolam no seu tempo específico, parem gentilmente para esperar que a poesia desfile e teça suas teias em meio à prosa narrativa. O relato tem como personagens principais dois companheiros de viagem: o menino Muidinga e seu protetor, o velho Tuahir, que andam por uma estrada a andar antes deles, fugindo das mortes e dos pesadelos de uma guerra que destruiu a base material de sua existência. A justificativa para a viagem é encontrar os pais de Muidinga, mas, na verdade, o que realmente importa é se manter vivo em uma terra onde não parece haver lugar para mais ninguém. Os dois se abrigam em um “machimbombo”, espécie de autocarro, que está incendiado e marcado pela guerra - como quase tudo ao redor. Neste, encontram uma mala a abrigar várias páginas que juntas dão forma e vida ao diário de Kindzu ou os cadernos de Kindzu, onde as letras desfiam o tom da história de outro garoto vitimado pela guerra - o que parece acalentar corações já tão cansados como o do velho e do menino. Acalenta e ensina a sonhar, como definiu o fantasma do pai do menino Kindzu quando este último andava a escrever em seu caderno.
No diário, estão presentes os horrores da guerra, as histórias incríveis de uma cultura tradicional do sudeste da África marcada pelo cheiro da pólvora, pelo som dos tiros, pela vigência da morte e pelos horrores de um pesadelo sem fim. O velho e o menino se apegam aos cadernos de Kindzu e à medida que leem vão se encontrando em lembranças, em esquecimentos, em outras e tantas vidas. É interessante perceber como Mia Couto reúne os horrores da guerra, os preâmbulos da corrupção, a dor de uma terra abandonada pelos seus próprios filhos, a contradição dos sentimentos e as incertezas individuais com um contexto histórico claramente delimitado. Terra Sonâmbula traz um conteúdo social de riqueza indiscutível, Mia Couto é um autor atento às causas sociais, para ele a arte não pode ser uma funcionária destas, mas não deve deixar de fazer a sua intervenção. O autor preserva o belo e o raro desejo de querer mudar o mundo e, como escritor, incorpora essa característica. Ele consegue com a riqueza de sua prosa poética unir o social ao mítico, a corrupção à felicidade, a esperança do amor aos horrores da guerra.



Mia Couto sempre se preocupou em mostrar a realidade mítica e humana de uma África que se perde em meio aos caminhos sem volta da corrupção. Nesta obra, a figura do administrador corrupto, Estevão Jonas, se faz presente. Ele é claramente uma personagem alegórica que faz referência à corrupção em todas as suas formas mais vis. Este personagem reaparece em outro livro mais recente de Mia Couto, o livro O último voo do flamingo (2006). Esta obra traz a mesma figura do administrador corrupto e se assemelha em diversos pontos com Terra Sonâmbula, seja pela linguagem, poética e estetizada, seja pela presença de todo misticismo e sabedoria popular que paira sobre os ares do continente africano. Em Terra Sonâmbula, à terra foi negado o direito ao sono, aos homens o direito de sonhar, à vida o direito de ser vida em essência e arte. A guerra roubou muito das pessoas, por isso, em uma das passagens, Mia Couto diz com tamanha perspicácia e sensibilidade literária “o melhor da vida é o que não há de vir”. Em O último voo do flamingo, a terra é abandonada pelos próprios filhos, a corrupção abre arestas estéreis e machucadas, os campos estão minados, a feiticeira Temporina tem o rosto de velha e o corpo de moça, assim como a África é velha e nova, corrupta e rica, desigual e uniforme. Neste livro, a última esperança é o voo dos flamingos, quem sabe eles não salvarão esta terra entregue aos ossos dos mortos e às almas dos bruxos e trarão, enfim, a paz. Já em Terra Sonâmbula a última esperança é o sonho, é a arte de poder imaginar por meio de cadernos rabiscados, histórias fantásticas que rasgam os cantos da terra em tristonhas divagações.
Em meio a semelhanças e comparações vemos, no entanto, que a técnica de texto, a linguagem poética e a criatividade provocadora são marcas constantes neste autor que, antes de tudo, é um poeta. Mia Couto recheia o seu texto com metáforas das mais variadas, faz uma constante evolução de comparações abrigadas nas entrelinhas para chegar a relações de igualdade das mais variadas, cria palavras e recria as já existentes, quase como um Guimarães Rosa. Ele dá vida a uma linha, a uma ideia, a uma conexão desordenada de palavras que se ordenam perfeitamente na oração final. As figuras de linguagem jorram das páginas de Mia Couto, o próprio título da obra “Terra Sonâmbula” traz uma personificação clara. Ele é criativo ao poetizar a prosa, ao dizer de outra forma - mítica e profunda tal como a África que ele narra - o que poderia ser dito de maneira casual e limitada. Em alguns trechos de Terra Sonâmbula ele faz comparações surpreendentes, entre elas “triste como pétala depois da flor”, “mão do tamanho de um beijo”, “a morte é como uma corda que nos amarra as veias, o nó está lá desde que nascemos, o tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco”, são palavras que brotam magicamente, chega a ser inacreditável. Mia Couto quando reinventa a linguagem faz com que nossos olhos por um instante não acreditem no que estão vendo para que no segundo seguinte já sejam só delírio, surpresa e encanto. Os elementos das comparações, das metáforas, das inversões, dos paradoxos, da ironia e até das metonímias do autor figuram como avessos do mundo e da própria linguagem quando diferentes significados são dados aos mesmos significantes.

Ler Mia Couto é como navegar em um mar de palavras, se perder para se encontrar


Saindo um pouco dos limites ilimitados da palavra e da linguagem podemos perceber que a narrativa dos cadernos de Kindzu aparece encaixada em meio à história de Muidinga e Tuahir e uma parece se referir à outra, a tal ponto que uma por vezes se confunde, se mistura e se funde na outra. São como duas histórias em uma só. E essa ligação entre duas histórias dentro da mesma história é outro mérito literário e perspicaz de Mia Couto. Ele sabe não deixar o dito pelo não dito, sabe trazer para o mesmo terreno o sobrenatural e o banal, transformando sonho em realidade. O autor sabe fundir em sua escrita imagem e palavra, faz de uma consequência da outra ou nos deixa sem saber quem é causa ou conseqüência, neste jogo de linguagem e condução da narrativa.
Os personagens de Mia Couto são complexos, alegóricos e demasiadamente humanos. A humanidade transborda por seus poros imaginários. Eles são capazes de amar e vislumbrar esperanças, como Kindzu que ama a misteriosa Farida, enquanto esta última acredita em um farol só dela, que a salvará do naufrágio de seu próprio tempo e da sua decisiva beleza - beleza daquelas capazes de fazer fugir o nome das coisas em desejo de ardência súbita, imediata e inadiável. A densidade psicológica se faz presente em cada fala, em cada olhar que, por vezes, se materializa em olhos que duram mais que uma tristeza eterna e doem de serem vistos, como diz Mia Couto em certa passagem. O que dizer da velha Virgínia que encontra refúgio na própria infância, descrita em um dos cadernos de Kindzu. Ela se perde em um estado de fantasia sem volta, mas quem pode dizer que ela também não se encontra nele. Assim é Mia Couto, considera as possibilidades da vida e as traduz nas possibilidades da sua linguagem, prefere a densidade dos personagens, os preâmbulos psicológicos, pois densos também são os dramas de uma África milenar e extremamente misteriosa retratada em sua obra.

Mia Couto

O que é necessário perceber é o fato de que este biólogo-escritor, ou escritor-biólogo, diz uma coisa por trás da outra e o faz, principalmente, por meio de seus personagens. Ele não colocou caminhando lado a lado um velho e um menino porque a história é a de um velho e de um menino. Nas paginas de Mia Couto não existe apenas um velho e um menino. O que existe são duas Áfricas caminhando lado a lado, a esmo. Tanto a África velha como a nova estão perdidas, afetadas pela guerra, ausentes de sentido, não há rumo nem para o novo, nem para o velho. É isso que Mia Couto quer dizer com Muidinga e Tuahir. No entanto, há uma mala no meio do caminho, tal como a pedra de Drummond, cheia de papeis de sonho, letras de lágrimas, fantasias de um coração. Quem encontra a mala é o menino, ou seja, a África nova pode encontrar a saída, mas o velho gosta de ouvir as histórias e pede para que o novo as leia, portanto, a nova África precisa da velha, assim como a semente precisa da terra. A velha África, corrupta e mística, precisa estar disponível para sonhar e a nova precisa estar atenta às malas do caminho. Quem sabe a nova contando coisas para a velha e a velha ouvindo as coisas da nova não seja a saída para uma África onde as almas são roubadas pela guerra e as mentes pela corrupção. É o velho e o novo que se fundem em um só quando, um tempo depois, Mia Couto dá vida à feiticeira Temporina, é o velho e o novo que param pra se ouvir, se guiar e se encontrar em sonhos que transitam de forma tênue pela linha da realidade.
O livro é de uma riqueza literária aparente, de uma sensibilidade social gritante, de uma inteligência técnica e estética admirável. É um livro que toca e ensina. Ensina a olhar para os mistérios de outra margem, ensina artes de renascer quando quase se morre, ajuda a inventar verdades, ao menos quando se inventar palavras. O livro nos faz vítimas de diversas mortes quando nos chama para as diversas mortes de uma África tão fascinante e tão abandonada.
Terra Sonâmbula anda sozinho, na madrugada de noites frias e ensopadas, com pegadas velhas e novas, sonhos escritos e ensinados, histórias de vergonha ou glória. Assim ele vem devagarinho, sem barulho, e fica grande, fundo. Em uma das tantas lindas passagens de sua obra, Mia Couto diz que os sonhos são cartas que enviamos a nossas outras, restantes vidas. Eu diria que Terra Sonâmbula é feito de sonho e é como um sonho. Quem o ler receberá uma carta de suas outras, restantes vidas, se despedirá de suas vestes e será maior que o tempo, do tamanho do mundo, até que suas letras se convertam em grãos de areia e suas páginas se transformem em páginas de terra, tal como os derradeiros cadernos de Kindzu.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Tempo


Tempo
Dá um tempo
Que eu te empresto meu vento
Tempo
Não te aguento
Te queria mais lento
Tempo
Que detalhe constante
Mesmo assim me perco no teu instante
Tempo
Queria chegar antes de ti
Mas me acolho em passos do aqui e do ali
Tempo
Agora te faço um pedido
Acalme este teu ritmo enlouquecido
Tempo
Aumente o espaço
Entre a saudade e promessa

Sem pressa...
M.V

quarta-feira, 27 de maio de 2009

'VIK'


Exposição com 131 obras no MASP é a maior já dedicada ao artista. Depois de passar pelos EUA, Canadá e México, a exposição ‘VIK’ chega ao Brasil no momento em que o fotógrafo Vik Muniz atinge o ápice de seu reconhecimento. Vik Muniz é um artista brasileiro, de renome internacional, que utiliza a fotografia como instrumento básico para ir em direção a uma arte que mistura ilusão e realidade, a aparência comum com a essência inusitada. Ele fotografa seus trabalhos, realizados a partir de técnicas variadas.
Há algum tempo escrevi neste meu espaço sobre um artista que me fascinou, apenas por fotos de seu trabalho que vi pela internet. Quando escrevi, já previa que seu trabalho visto pessoalmente deveria ser de todo maravilhoso e delirante, mas não pensava que fosse tanto. Vik me surpreendeu quando o vi de perto e mais ainda quando o vi de longe. A exposição de suas obras no MASP está de fazer fugir as palavras de tão bela, reúne muito de Vik Muniz e sua arte. As obras do fotógrafo estão agrupadas nas várias partes que compõem a exposição, o que permite ao visitante entender cada fase de Vik, bem como o que esteve por trás de cada um de seus trabalhos. Para avivar as vontades e despertar a curiosidade em ver de perto esses incríveis trabalhos, seguem abaixo algumas informações de cada uma das partes da exposição ‘VIK’, que pode ser vista no MASP até o dia 12 de julho.

O melhor de Life
Esta é a fase inicial da carreira de Vik Muniz. Sua formação sofreu forte influência da coleção de fotografias da revista Life, que ele reproduzia em desenhos e fotografava depois de perder algumas de suas páginas. Neste episódio, podemos perceber o quanto o que vemos se baseia no que já conhecemos
Desenhos com linhas
Esta parte da exposição mostra obras fotografadas que Vik realizou utilizando linhas, isso mesmo, linhas. O fotógrafo tem mesmo esse poder e essa sensibilidade técnica e estética de transformar o que parece trivial no cotidiano em um elemento de uma obra de arte, um condutor da percepção e do delírio de quem olha para, em seguida, olhar de novo. Nos desenhos com linhas, Vik trabalha com as noções de próximo e distante. Para dar a ideia de proximidade ele utiliza mais linhas e para promover o distanciamento ele utiliza menos linhas em uma técnica baseada no corte em camadas. O efeito é surpreendente e tocante.

Duas Vacas
O bom humor de Vik se faz presente em algumas obras como Duas Vacas. Nesta, em um primeiro momento, existe apenas uma vaca. Quem olha pergunta-se atônito, mas onde está a outra? Olhando mais uma vez se descobre a segunda vaca disfarçada como uma pinta, dentro da primeira. Aqui já percebemos como Vik Muniz é um artista de dois momentos. Suas obras são para serem vistas e entendidas em dois momentos distintos. No primeiro, nossos olhos nos enganam, nossa mente é equivocada. No segundo ficamos mais cuidadosos, vemos e reparamos, e quando reparamos ao olhar, entendemos o que Vik realmente quer representar. São dois instantes, duas percepções para uma só plenitude artística.

Equivalentes
Nesta série há um espetáculo à parte de forma, criatividade, espontaneidade e graça, onde nos é revelado o hábito de achar formas nas nuvens, cultivado por Vik. A partir daí, o fotógrafo decide utilizar o algodão como nuvem e brinca com o pedaço branco, dando a ele formas variadas. O pedaço de algodão vira gato, duas mãos unidas e tudo aquilo que a imaginação inventar. A participação ativa do observador na interpretação do que ele vê fica clara nesta série de obras. É interessante perceber também que quando se vê o algodão perde-se a nuvem e os objetos e quando se vê a nuvem perdem-se os outros dois aspectos.
Instala-se a confusão preferida de Vik entre imagem, ideia e realidade.



Mônadas
As mônadas são partículas invisíveis que constituem a essência de todas as coisas. Vik utiliza esse conceito para compor fotografias onde as partes se refletem no todo, onde o todo é a parte, onde não se sabe mais o que é todo e o que é parte. Tudo se confunde e tudo se torna claro no espaço de dois olhares, no instante da percepção.

Esculturas
Vik diz que começou sua carreira como escultor, mas quando fotografava suas esculturas para documentá-las viu que era das imagens que ele gostava. Para ele, a foto era mais interessante que a escultura. Vik produziu 52 esculturas a partir de um único bloco de pastilha branca e depois de fotografá-las as esculturas eram destruídas e só sobravam as fotos.

Arame
Esta série mostra imagens onde duas leituras são possíveis. Vik trabalha com os conceitos de material e imagem e faz com que o arame se confunda com o traçado do lápis, com a linha do desenho. Quando olhamos pela primeira vez vemos um traçado feito a lápis, mas, no segundo olhar, olhamos melhor e o arame revela-se nas linhas do desenho, inacreditável, criativo, sensacional. Os desenhos com arame mostram como a pior ilusão possível é aquela que ainda pode enganar o observador, mas apenas por um momento. O arame desenha um balanço, uma torneira, uma lâmpada, uma cama, algumas roupas no varal, um papel higiênico e o que mais Vik resignificar.

Açúcar
Esta série de obras revela toda sensibilidade e percepção social de Vik Muniz que se repetirá lindamente em diversos outros trabalhos. Vik fotografou algumas crianças que trabalhavam de forma exploratória em plantações de cana de açúcar e depois decidiu duplicar aquelas fotos, polvilhando-as com açúcar em um pedaço de papel preto. O efeito é fascinante não só pela beleza estética que o açúcar conferiu às fotos, como também pela resposta da arte a um drama social e humano. E como a arte responde lindamente às nossas aflições!


Terra
Aqui Vik Muniz apresenta imagens de terra feitas com canudos e pedaços úmidos de algodão com a ajuda de um pequeno aspirador de pó. O desenho e a terra se unem sobre a tinta, um peixe maravilhosamente se revela, lindo e mágico. De perto não o vemos, mas de longe ele se faz majestoso e pelo. A arte de Vik é efêmera e, ao mesmo tempo, eterna em um paradoxo só dela.

Montinhos
Esta série de fotografias é particularmente original pela combinação de elementos aparentemente desconectados, mas que juntos mostram o quanto todas as coisas têm em comum umas com as outras. Afinal, com quantas coisas aparentemente descombináveis se pode chegar a uma obra de arte? O que um curry em pó tem haver com jujubinhas, espinhos com fusíveis, bebês de plástico com besouros? A resposta é dada por Vik por meio de sua arte. Na arte nada se exclui, as coisas se somam e há lugar pra tudo em um eterno rearranjar de elementos.





Diamantes e Caviar
Algumas das fotografias mais conhecidas de Vik Muniz estão nessa série de obras.
Nelas, Vik buscou uma solução criativa, como sempre, para retratar as divas do cinema. Pensando em todo seu brilho e glamour decidiu retratá-las por meio da beleza do diamante. Elizabeth Taylor fica preciosa e brilha, tal como uma estrela de cinema, tal como um emaranhado de diamantes. Já o caviar é usado por Vik para retratar rostos de monstros e vilões do cinema, um contraponto às divas e ao diamente.

O Depois
Mostrando mais uma vez toda sua percepção social, Vik olha para as crianças órfãs que dormem sob o lençol das estrelas nas ruas da maior cidade do país: São Paulo, e decide tirá-las, ao menos por um instante dali, trazendo-as para o instante eterno da fotografia, colocando-as sob as lentes de uma máquina humana e social. Vik dá um livro às crianças, pede que elas escolham alguma pose e a imitem. A partir daí ele compõe as fotografias com lixo colorido jogado às ruas na quarta-feira de cinzas, logo após o carnaval. A sutileza aqui presente é tocante. Vik escolhe o colorido do lixo porque o que ele mostra são crianças. Crianças devem ser coloridas, mas para aquelas crianças não poderia ser usado um colorido qualquer, já que a elas foi roubada parte de uma infância, elas têm um colorido diferente, é um resto de cor depois da alegria, por isso lixo da quarta-feira de cinzas. Depois do carnaval há apenas um resto da alegria em coloridos que se misturam à, por vezes, fria realidade.



Medusa Marinara
Esta obra une mitologia e modernidade, faz do clássico algo irreverente e único mostrando que a cópia de uma cópia é sempre um original.




Rebus
Outra série de fotografias lindas, pensadas e planejadas. Depois de Mônadas, Vik continua fazendo da parte o todo e agora usa uma variedade de brinquedos para mostrar que só se é jovem uma vez, mas isso pode durar uma vida inteira. São miniaturas de carros, bolas, lápis, cornetas, botões, colheres, garfos, dentre outros, das mais variadas cores e formas dispostos de modo a formar o que Vik quiser retratar.


Quebra-cabeças
Vik une peças coloridas que ilustram o esplendor arquitetônico de cidades idealizadas, civilizações míticas e centros de ensino mostrando que ter é acreditar, afinal, se nenhum lugar é definitivo sua realidade se concretiza nas pinturas, reiterando o tema recorrente de Vik Muniz. É lindo e desafiante, como montar um quebra-cabeça, ver o Jardim das Delícias e A escola de Atenas em meio a peças soltas encaixadas na mente de cada um que olha e admira.

Pigmento
Nesta série, particularmente linda e colorida, é como se a textura da imagem saltasse dos limites da fotografia, fosse maior que o papel, desafiasse a todo instante a nossa percepção.
Vik usa camadas de diferentes pigmentos para preencher pinturas a óleo sem o óleo, incrível o resultado, a ideia de profundidade e beleza que quadros já belos e clássicos como A Catedral de Rouen, de Monet ganharam. A catedral se recriou tanto na luz do dia como nas sombras da noite. A japonesa, do mesmo pintor, também ficou mais viva e colorida com cores tão fortes que, por vezes, poderíamos pensar nem existirem mais assim.


WWW – Imagens de Sucata
Esta fotografia é de uma fidelidade e perspicácia no retrato da modernidade tal como nenhuma outra já criada. Vik dá forma ao mundo utilizando peças de computadores velhos. O Brasil é quase todo de teclados, os EUA ganham forma por meio de vários CPU’s, o mundo vira literalmente um conjunto de peças de computadores tal como é atualmente, afinal, vivemos na era da internet e da globalização. Na era de tantas promessas tecnológicas, o mundo é um amontoado de computadores, mas até agora apenas no terreno das ideias, até um certo fotógrafo decidir transformá-lo de fato em um.



Papel
Nesta série de fotografias, Vik trabalha com os tons da escala de cinza para recriar o conteúdo histórico de algumas fotos. A sensibilidade estética no manuseio dos materiais e sua composição são marcas constantes nos trabalhos do fotográfo e dão a eles uma identidade própria e uma qualidade estética indiscutível.

Poeira
Essas fotografias, como tantas outras surpreendem. Vik é assim, quando se acha que ele já fez de tudo, é bom se preparar porque os olhos ainda não viram nada, ele supera a si mesmo e a nós resta a admiração e o conforto por saber que ainda se fazem artistas de verdade. Aqui, Vik compõe suas fotografias com os sacos de poeira retirados de aspiradores de pó. A poeira produz imagens abstratas, independentes do ambiente a sua volta. É fascinante.




Lixo
Uma das séries de fotografias mais bonitas de Vik Muniz, não só pela perfeição técnica e estética, pela vivacidade e harmonia das cores e pela perfeita combinação de elementos, como também e, principalmente, pela percepção de uma realidade social. Assim como Vik olhou para os meninos de rua da cidade de São Paulo e buscou abrigá-los na fotografia, ele também percebeu as pessoas que trabalham e vivem no Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, o maior depósito de lixo urbano do mundo. A partir desta realidade, Vik fez retratos dessas pessoas em situações alegóricas, utilizando os materiais que elas recolhem para reciclagem.
O próprio artista diz que, ao fazer estas fotografias, teve contato com um lado da vida que ele imaginou que não existisse mais. As fotografias são mais do que simples retratos de uma realidade, elas mostram um sentimento, mostram o que não se vê, o que está por trás da realidade, o que há de invisível aos olhos e visível aos sentidos. Nestas fotos, chinelos contornam as linhas, definem os traços, tampinhas formam e rosto, seus dramas e detalhes. O lixo sufoca o homem, pesa sobre sua cabeça, mas ele resiste abaixo, firme. A mulher continua bela, apesar do lixo, joga seus cabelos feitos de linha e cala pela sensualidade.





Sucata
Nestas fotografias, Vik Muniz faz imensas composições de materiais descartados. No primeiro plano aparecem sempre maiores, no segundo plano são menores dando a ideia de profundidade. O interessante desta série é tentar entender o que a sucata diz a nosso respeito e da nossa atitude diante do futuro. Novamente, o artista recria lindamente clássicas pinturas, agora é a vez de O Nascimento de Vênus, de Botticelli e de Narciso, de Caravaggio.

Earthworks
Trabalhos sobre a terra. Aqui, Vik mostra fotografias grandiosas por meio do real trabalho sobre a terra. As fotografias foram tiradas de helicóptero e os desenhos, inicialmente apenas utensílios domésticos, com cerca de 120 a 180 metros foram feitos utilizando uma escavadeira para que pudessem ser assim gravados no solo de uma mina de ferro brasileira e eternizados na lente. São livros, dedos, pratos com garfo e faca, clips, dente, cachimbo, chupeta, uma carta imensa, pés, uma tesoura cortando a terra e tantos outros brilhos de um artista que também sabe ser grandioso sem perder a graça das pequenas coisas.





Duas Bandeiras
Vik produz duas versões da bandeira americana que sugerem a passagem do tempo e o clico das estações por meio do predomínio de tons de verde em uma e marrons na outra.

Cores
Nestas fotografias, Vik usa a escala Pantone para criar. Ele mostra imagens que evocam seus pixels digitalizados e, no entanto, ainda são reconhecidas como imagem, apesar de sua fragmentação. A presença dos aspectos físicos traz a relação complicada que se estabelece entre objeto e imagem.

Cárceres
Lembram as imagens de linha, mas aqui o que importa é o espaço arquitetônico não a paisagem. A linha não repousa mais em camadas irregulares, ela ziguezagueia tensionada em uma trilha de alfinetes, oferecendo um contraste entre tipos de espaço, trabalhando com a profundidade da perspectiva e a baixa elevação dos alfinetes.

Caminhante sobre um mar de cinzas
Cigarros e cinzas dão vida e realidade a essa fotografia de Vik. Forte e inteligente.

Calda de Chocolate
Vik percebeu que o chocolate era um material pintável, fácil de trabalhar e cheio de associações. Chocolate se confunde com amor, luxo, romance, obesidade, escatologia, mancha, culpa, dentre tantos outros sentimentos que decorrem dele. A série é linda, de dar água na boca.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

A poesia que embala um grande amor

Se soubesses como eu te amo
Como eu te sinto
Não te deterias neste ou naquele instante

Se soubesses como eu te amo
Medo não mais terias
E confiarias nos meus olhos

Se soubesses como eu te amo
Verias como inspiras meus versos
Como acalmas minha pressa

Se soubesses como eu te amo
Terias a felicidade gratuita e eterna
Por que meu amor é constante e certo

Se soubesses como eu te amo
Entenderias que no teu abraço eu me perco do mundo
Esquecerias de tudo e só aceitarias essa paixão enfim

Se soubesses como eu te amo
Eu ficaria até envergonhada
Embriagada pelas tuas palavras

Inebriada pelo teu instante
Por esse eterno e derradeiro instante




Meu amor
Cada palavra que me diz
Cada emoção que me traz
Cada toque que me faz tremer
Arrepiar
Cada segundo do teu lado
Cada som que me chega
Cada promessa que te faço
Delirar
Cada linha que escrevo desta história
Cada vento que me arrasta pra ti
Cada olhar onde te arrasto pra mim
Reencontrar

M.V

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Perturbações


Me sinto tão estranha a mim mesma
Estranhamente mais que o normal

Me sinto tão alheia a todo o resto
Como se tudo me fizesse mal

Me sinto meio mentirosa
Mas não sei ao certo o que é real

Me sinto tão tua e perdida de mim
Encolhida em um olhar fatal

Me sinto carregada por pensamentos
Como se minha mente fosse se diluir em sal

Me sinto arrastando tudo ao redor
Como banhada por uma ressaca moral

Me sinto embriagada de insegurança
Estampada em uma tempestade colossal

Me sinto assim tão simultânea
E não espero que ninguém me entenda

Nem mesmo aqueles que por ventura
Um dia ou um segundo sequer
Eu achei que me amassem

Na contradição fatal
No drama imoral
Na imperfeição sensual


M.V

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Exposição "Vik" fica até o dia 12 de julho no MASP

Obra 'Auto-Retrato', de Vik Muniz, estará em exposição do Masp


Há algum tempo, esta que vos fala, escreveu neste blog sobre a exposição "Vik", do fotógrafo Vik Muniz, que tinha estreia prevista para o dia 24 de abril no MASP (Museu de Arte de São Paulo). Venho por meio deste post, curto e simples, dar mais um aviso aos navegantes: a exposição fica no Masp até o dia 12 de julho, portanto, se organizem, administrem o tão escasso tempo e confiram as fotos deste símbolo da arte de vanguarda, que, na verdade, são muito mais do que simples fotos. Tratam-se de delírios, de criatividade, de feitiço, do encanto do inesperado, da emoção gratuita da surpresa!
E, já que a exposição se estenderá até as próximas datas do próximo mês, nada de desculpas. O tempo não está curto, até o dia 12 de julho dá pra ir, voltar, ir de novo, voltar, enfim, o que importa é ir, ver e delirar.



Exposição 'Vik'
Retrospectiva com 131 obras do artista plástico Vik Muniz
Local: Museu de Arte de São Paulo - MASP
Endereço: Av. Paulista, 1578
Telefone: (11) 3251 5644
Classificação etária: livre
Estacionamento pago no local
Acesso a deficientes
Exposição: de 24 de abril a 12 de julho
Horário de visitação: terça a domingo e feriados, das 11h às 18h; às quintas, das 11h às 20h.
Ingresso: Inteira - R$ 15,00; Estudantes - R$ 7,00
Menores de 10 anos e maiores de 60 anos - Gratuito
Às terças-feiras a entrada é gratuita

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Ensaio fotográfico "Além do retrato: epitáfios e fotos"



Retratos, imagens, sorrisos, traços e expressões, letras, palavras mudas ou absurdas que não existem mais nesta realidade conhecida, mas fazem lembrar outro tempo. O tempo em que as almas imortalizadas e rendidas às lembranças de um retrato ou às formas de um texto existiram para nós que ainda aqui estamos. Nos túmulos onde descansam os corpos já ausentes de almas, em algum canto há um retrato ou uma frase que luta a intrigante batalha de traduzir em pouco, muito pouco, o que aquelas pessoas, fruto da impossibilidade deste retrato, foram um dia.





Os epitáfios e as fotos são constantes nas pedras da saudade, são como um conforto para aqueles que olhando a foto ou lendo a frase, ligam o mármore, o granito, ou seja lá a rocha que for, a uma pessoa que para uns é apenas mais um retrato e para outras é uma saudade, uma lágrima, um aperto provisório ou eterno. Mas o retrato dos túmulos ou as frases podem e não podem dizer muita coisa sobre aquele ou aquela que representam.





Algumas fotos passam um sorriso belo, gratuito e dão a impressão de que aquela pessoa foi feliz e fez seu mundo feliz. Talvez, essa seja a opção da maioria dos familiares que aqui ficam, lembrar daquele que se foi por meio de seus sorrisos que nem sempre foram tão belos, gratuitos e sinceros. O fato é que depois da morte tudo muda. A aura de nobreza e santidade lançada por seu manto negro é certa como sua vinda.









Alguns retratos, por sua vez, são sisudos, nem um pouco simpáticos, chegam a surpreender quem os olha e, nestes casos, quem garante que aquela alma ali retratada não foi, ao longo da sua efêmera primeira passagem, alguém alegre, repleto de coragem e simpatia, que fez o melhor que pode dentro dos limites de suas contradições e conflitos interiores. Por isso, falo em impossibilidade do retrato. Não há como retratar uma vida, uma personalidade. O instante fotográfico é mágico, mas é particular. Uma foto no canto dos que já foram pra outro canto é fascinante por despertar pensamentos em conhecidos e desconhecidos, que se sensíveis para tal, por vezes desfilando entre as ladeiras de um cemitério, se pegam pensando no que foi aquele retratado, em como viveu, no que realizou e onde estará agora. Já para os que conhecem o retratado, o retrato tem o estranho poder de enganar a saudade ou aumentá-la ainda mais.



Já os epitáfios são de todo interessantes. As palavras são uma forma muito particular e especial de se chegar ao coração das pessoas, à alma que ali no túmulo já não mais se encontra. Alma que nunca sequer ali se encontrou. A frase, quando sincera e escolhida para retratar não para apenas para elevar, toca mais que a imagem e tem a estranha função da palavra que cala por meio da outra já dita. Epitáfios são lindos e tristes na mesma proporção. Fazem os vivos pensar na morte, não apenas nos mortos, como as fotografias. Fazem os vivos pensar na vida, em como ela é efêmera e, ao mesmo tempo, convencida a ponto de julgar-se traduzível em uma foto ou em uma frase.









Por mais linda que seja a foto, por mais emocionante e reflexivo que seja um epitáfio, ambos ainda são instrumentos de seres humanos que se fazem tão pequenos diante da certeza da morte e da incerteza do que vem depois dela, do temor da outra margem - onde poderemos evoluir no sentido de sermos plenos, alheios às pequenas questões, superiores às mesquinharias de todo dia, entregues à completude do que vale a pena ser vivido, lembrado, admirado. Mas os cemitérios, nosso depósito de lembranças e saudades incrivelmente personificadas em túmulos de pedra, não seriam os mesmos sem as fotos e as frases. Eles são elementos desta cultura que se liga às ilusões do pouco e do bruto, querendo atingir o muito e o profundo. A pergunta é: quem poderia viver sem elas, as ilusões?



Cada povo em cada cultura cuida e venera seus mortos de maneiras diferentes. Talvez a cultura dos mortos neste nosso país Brasil, seja a extensão de terrenos onde jazem ilusões sob a terra, ilusões porque o corpo ali não mais existe na grande maioria dos casos, mas a lápide torna-se impregnada de lembranças, saudades, dores e detalhes. Detalhes como a foto em um canto ou a frase noutro canto. Retratos que vão além do retrato, em circunstâncias aonde a saudade vai além da própria saudade, onde as pedras ganham um indecifrável significado, onde a presença e a ausência da alma se confundem em meio às certezas e contradições que decorrem da impossibilidade deste retrato.







quarta-feira, 6 de maio de 2009

A igreja na sociedade do espetáculo

Fé na mídia: a cruz é a antena, a antena é a cruz

Vivemos no mundo pós-moderno, na era da internet e da globalização, na sociedade da telemática - aquela que transmite voz, dados e imagem em tempo real. Somos iludidos e bombardeados pelas ofertas de consumo em uma sociedade onde as partes se diluem no todo. Impera a superficialidade, o materialismo, o culto ao corpo, a pressa que não nos permite viver o lento, a dinâmica do tempo. Em meio à ilusão de conectividade, estamos mais isolados do que nunca, individualizados, perdemos a noção do coletivo e não encontramos um sentido para nossa vida. Somos apenas mais uma engrenagem da roda do mercado que gira frenética impulsionada pela lógica do espetáculo, pela midiatização generalizada e pelas regras da indústria cultural.


Rebanho que cresce: evangélicos na Marcha para Jesus em São Paulo, junho de 2008


O mercado e as regras desta sociedade capitalista parecem ter tomado conta de tudo, inclusive da própria espiritualidade que já não escapa da lógica esvaziada de sentido que pauta a sociedade moderna. Falo aqui de um fenômeno que vem se tornando cada vez mais comum nos dias de hoje: o processo de midiatização e adaptação às regras de mercado por que passa a igreja na atualidade. As chamada igrejas históricas ou tradicionais (católica e protestante, por exemplo) adaptam forma, linguagem e discurso para se inserir dentro das regras da sociedade mídia-espetáculo, com isso, ocorre um nítido processo de mercantilização da fé e espetacularização da experiência religiosa que perde a sua gratuidade.
A fé e o milagre viraram condição, a gratuidade e a essência da espiritualidade deram lugar a discursos superficiais e sedutores que transformaram a fé em um produto e o fiel em um simples consumidor. Percebemos, claramente, neste processo de midiatização e espetacularização da igreja o cotidiano travestido em linguagem ficcional e a substituição da lógica da fraternidade e da solidariedade pela lógica da concorrência já que em um cenário marcado pela liberdade religiosa há uma pluralidade de religiões que se vêm como concorrentes, disputando consumidores e deixando claro aquilo que dissemos no início: a sociedade de mercado tomou conta da nossa espiritualidade.

Decano dos televangelistas: Bispo R.R Soares está há mais de 25 anos no ar


A realidade é que neste processo de espetacularização as essências se perdem em favor de uma uniformização da fé que navega ao sabor das ondas do mercado. O vínculo comunitário fica pra trás dando lugar à experiência religiosa direta e individualizada, em outras palavras, ao discurso “Deus sem religião”. Ocorre um acúmulo de mediações e a lógica da indústria cultural de dar ao público o que ele precisa e, em um segundo momento, dizer a ele o que ele deve querer bate na porta dos templos eletrônicos e entra à vontade, sem pedir licença.
Em meio a essa inversão de valores e verdades, a igreja quantifica o mercado religioso, o reduz a números e estatísticas e, visando crescer tal como uma empresa, incorpora as ferramentas de marketing para alcançar maior visibilidade e ajustar a sua oferta à demanda. Tudo é pensado para aumentar o número de adeptos à sua mensagem e, consequentemente, o lucro, satisfazendo desejos e necessidades do consumidor da fé.
Mas, a consequência mais grave de todo esse processo de espetacularização é que nós, seres humanos, não temos mais a quem recorrer. Ou nos contentamos com a superficialidade sedutora dos discursos religiosos atuais ou nos individualizamos na nossa própria experiência religiosa. A lógica do mercado nos prendeu em mais uma de suas armadilhas sufocando a nossa espiritualidade em um contexto onde não se sabe mais o que é produto e o que é mensagem, as coisas se confundem e passam a vir em um pacote que as pessoas consomem sem distinguir as partes.
O homem, que recorria à fé para buscar respostas e explicações que a razão não é capaz de dar, agora encontra apenas uma religião que para ele já não faz mais sentido porque não reflete a sua realidade e sim a realidade do mercado. Somos todos espetáculo, somos todos mídia, não mais nos reconhecemos enquanto causa ou efeito e nossa falta de sentido transborda e enlouquece. Eis o show da fé caro navegante, o último e derradeiro espetáculo.

Minidocumentário "Invisíveis"

Este vídeo foi produzido por alunos que cursavam o segundo ano de jornalismo na PUC-Campinas em 2008 para a disciplina Telejornalismo B. Os alunos que participaram das etapas de produção e edição do vídeo são: Maura Voltarelli, Nádia Macedo, Mateus Reche, Leonardo Cassano, Juliana Lazzarini e Giovana Marranghelo.
Os invísiveis do nosso cotidiano são o tema deste vídeo. Ele procurou olhar para aquelas pessoas que não são vistas e reconhecidas pelo outro mas que fazem parte deste mundo, marcado por relações humanas cada vez mais superficiais e distantes. O vídeo também busca analisar o problema do ponto de vista social como um fenômeno que faz parte da sociedade moderna e é explicado e contextualizado pelas ciências sociais e pela antropologia. Nosso maior objetivo foi despertar as pessoas para a importância de valorizar e entender a relação com o outro, a questão da alteridade, da convivência com o novo, do respeito ao diferente, da valorização daquilo que está ao nosso lado, mas que, algumas vezes, vemos como algo que está distante e, de fato, invisível, sem merecer sequer o instante do nosso olhar ou a gratuidade de um sorriso. Vamos ao vídeo caro navegante, espero que gostem!