domingo, 31 de maio de 2009

"Madame Bovary sou eu", diz Gustave Flaubert

Jennifer Jones como Emma Bovary no filme A Brief Summary, de 1949

Estive lendo sobre Gustave Flaubert, mestre do realismo francês, minucioso na escolha das palavras, sentimental nos detalhes de um cotidiano para ele mortalmente carregado de tédio, ensopado do mesmo, inebriado por falsidades e convencionalismos. Estive lendo sobre suas obras, suas influências, sua história de vida marcada por solidões ocasionais e por ataques nervosos depois dos quais sobrevinha sempre a perda da consciência.
Segundo os médicos, Flaubert extravasava sua demasiada energia por meio desses acessos “histérico-epiléticos”. Os ataques desapareceram durante muitos anos de sua vida e só voltariam a agredi-lo no fim de sua existência. Existência esta que se encerra quando a palavra certa já não lhe ocorria mais, quando a mão já não tinha mais firmeza. Com um golpe mortal, o tédio se dissolve, a vida para. Em um dia de primavera de 1880 esse grande escritor francês resolve enfim suas inquietações, mesmo assim, morre sem cumprir uma das promessas que fez a um amigo. Flaubert queria resumir a sua vida, dizia ele, “tentarei contar-me a mim mesmo”.
Lendo tantas coisas sobre o escritor o que mais me impressionou foi entendê-lo justo por meio de sua personagem mais emblemática, forte, densa, misteriosa e fantástica - Emma Bovary, ou Madame Bovary. No livro que leva o nome da personagem, Flaubert decide atacar a moral burguesa, posta a nu em toda sua fragilidade, convencionalismo e falsidade, por meio da caracterização da vida monótona e sem atrativos da província.
O livro foi classificado por muitos da sociedade da época como imoral e, por isso, foi censurado, tendo sua publicação suspendia e seu autor processado. Flaubert sentou-se no banco dos réus em janeiro de 1857 para responder ao processo e ouvir um promotor pequeno e nervoso descrever Emma Bovary citando passagens do livro e investindo contra o autor.
Gustave Flaubert
A heroína era descrita e vista como depravada pela burguesia francesa, mas, segundo o advogado de defesa de Flaubert, toda depravação de Emma tinha que ser muito bem descrita, como de fato o foi pelo autor, para provar que o seu fim trágico constituiria o justo castigo de seus erros. Flaubert acabou absolvido graças à habilidade da defesa em distorcer e dissimular os verdadeiros propósitos de sua obra. Esta, uma vez publicada, esgotou-se em pouco tempo. Todos queriam saber quem era Madame Bovary, em quem o autor se inspirara para criar essa mulher que causava tanto alarde, tanta discussão. Porque ela era tão perigosa para os valores daquela sociedade tediante e vazia era a pergunta a que muitos se faziam na época.
A realidade é que Emma era a única personagem do romance de Flaubert que, para escapar à mediocridade do ambiente, enfrenta os preconceitos e persegue os próprios sonhos e aspirações. Por sua coragem e autenticidade ela se faz linda e sedutora e fica ainda mais instigante por meio da descrição de um autor que desejava a forma perfeita, a palavra certa e passava noites em busca de um adjetivo, semanas atrás de uma frase, escrevia e reescrevia uma página dezenas de vezes.
Mas, afinal, quem seria a mulher inspiradora de tão enigmática personagem? Nenhuma pista era satisfatória até que Flaubert decidiu revelar quem era Madame Bovary. “Madame Bovary sou eu” disse o escritor. De fato, conhecendo um pouco melhor a história do autor das linhas que deram forma a tão incrível mulher, percebe-se que a frase encerra muita verdade. Flaubert teve em sua vida o mesmo temperamento romântico de Emma e, assim como ela, também procurava fugir à mesquinhez cotidiana e sonhava com amores irreais, ansiando por uma existência mais plena.
Talvez, assim como Emma ele também cultivasse o desejo de sucumbir ao gosto do arsênico não vendo saída para a complexidade das experiências de uma natureza humana que se nega a fazer os pactos a que sorrateiramente somos coagidos por um entorno saturado pela aparência e falsidade das relações. O próprio Flaubert chegou a declarar ao concluir Madame Bovary: “Quando escrevi a cena do envenenamento, senti na boca o gosto do arsênico, senti-me envenenado. Tanto que tive duas indigestões seguidas – duas indigestões reais...”

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