quinta-feira, 7 de maio de 2009

Ensaio fotográfico "Além do retrato: epitáfios e fotos"



Retratos, imagens, sorrisos, traços e expressões, letras, palavras mudas ou absurdas que não existem mais nesta realidade conhecida, mas fazem lembrar outro tempo. O tempo em que as almas imortalizadas e rendidas às lembranças de um retrato ou às formas de um texto existiram para nós que ainda aqui estamos. Nos túmulos onde descansam os corpos já ausentes de almas, em algum canto há um retrato ou uma frase que luta a intrigante batalha de traduzir em pouco, muito pouco, o que aquelas pessoas, fruto da impossibilidade deste retrato, foram um dia.





Os epitáfios e as fotos são constantes nas pedras da saudade, são como um conforto para aqueles que olhando a foto ou lendo a frase, ligam o mármore, o granito, ou seja lá a rocha que for, a uma pessoa que para uns é apenas mais um retrato e para outras é uma saudade, uma lágrima, um aperto provisório ou eterno. Mas o retrato dos túmulos ou as frases podem e não podem dizer muita coisa sobre aquele ou aquela que representam.





Algumas fotos passam um sorriso belo, gratuito e dão a impressão de que aquela pessoa foi feliz e fez seu mundo feliz. Talvez, essa seja a opção da maioria dos familiares que aqui ficam, lembrar daquele que se foi por meio de seus sorrisos que nem sempre foram tão belos, gratuitos e sinceros. O fato é que depois da morte tudo muda. A aura de nobreza e santidade lançada por seu manto negro é certa como sua vinda.









Alguns retratos, por sua vez, são sisudos, nem um pouco simpáticos, chegam a surpreender quem os olha e, nestes casos, quem garante que aquela alma ali retratada não foi, ao longo da sua efêmera primeira passagem, alguém alegre, repleto de coragem e simpatia, que fez o melhor que pode dentro dos limites de suas contradições e conflitos interiores. Por isso, falo em impossibilidade do retrato. Não há como retratar uma vida, uma personalidade. O instante fotográfico é mágico, mas é particular. Uma foto no canto dos que já foram pra outro canto é fascinante por despertar pensamentos em conhecidos e desconhecidos, que se sensíveis para tal, por vezes desfilando entre as ladeiras de um cemitério, se pegam pensando no que foi aquele retratado, em como viveu, no que realizou e onde estará agora. Já para os que conhecem o retratado, o retrato tem o estranho poder de enganar a saudade ou aumentá-la ainda mais.



Já os epitáfios são de todo interessantes. As palavras são uma forma muito particular e especial de se chegar ao coração das pessoas, à alma que ali no túmulo já não mais se encontra. Alma que nunca sequer ali se encontrou. A frase, quando sincera e escolhida para retratar não para apenas para elevar, toca mais que a imagem e tem a estranha função da palavra que cala por meio da outra já dita. Epitáfios são lindos e tristes na mesma proporção. Fazem os vivos pensar na morte, não apenas nos mortos, como as fotografias. Fazem os vivos pensar na vida, em como ela é efêmera e, ao mesmo tempo, convencida a ponto de julgar-se traduzível em uma foto ou em uma frase.









Por mais linda que seja a foto, por mais emocionante e reflexivo que seja um epitáfio, ambos ainda são instrumentos de seres humanos que se fazem tão pequenos diante da certeza da morte e da incerteza do que vem depois dela, do temor da outra margem - onde poderemos evoluir no sentido de sermos plenos, alheios às pequenas questões, superiores às mesquinharias de todo dia, entregues à completude do que vale a pena ser vivido, lembrado, admirado. Mas os cemitérios, nosso depósito de lembranças e saudades incrivelmente personificadas em túmulos de pedra, não seriam os mesmos sem as fotos e as frases. Eles são elementos desta cultura que se liga às ilusões do pouco e do bruto, querendo atingir o muito e o profundo. A pergunta é: quem poderia viver sem elas, as ilusões?



Cada povo em cada cultura cuida e venera seus mortos de maneiras diferentes. Talvez a cultura dos mortos neste nosso país Brasil, seja a extensão de terrenos onde jazem ilusões sob a terra, ilusões porque o corpo ali não mais existe na grande maioria dos casos, mas a lápide torna-se impregnada de lembranças, saudades, dores e detalhes. Detalhes como a foto em um canto ou a frase noutro canto. Retratos que vão além do retrato, em circunstâncias aonde a saudade vai além da própria saudade, onde as pedras ganham um indecifrável significado, onde a presença e a ausência da alma se confundem em meio às certezas e contradições que decorrem da impossibilidade deste retrato.







Nenhum comentário: