sábado, 30 de maio de 2009

Por onde anda esta terra sonâmbula?

Poetizar a prosa com palavras inventadas, cultivar o desejo de estar disponível para ser encantado e encantar, ser por meio da escrita quando todo o resto nos nega, trazer o místico e o sobrenatural para o terreno do humano e do trivial, ensinar a sonhar por meio de relatos, sensibilizar socialmente por meio de amostras coletadas a partir do terreno da realidade, fazer esta terra andar a esmo carregada de sonhos, fazer olhos molhados, bocas secas e corações apertados. Assim é Mia Couto (1955), biólogo e escritor moçambicano, no seu livro Terra Sonâmbula de 1992. O livro narra a situação de Moçambique – país devastado por mais de trinta anos de guerra anticolonial (1965-1975) e civil (1976-1992) – no período pós-independência, e mergulha a história e as personagens em uma devastadora guerra-civil, revelando em suas páginas uma África mítica e corrupta, sonhadora e misteriosa, menos triste e mais cansada.

A história, narrada em terceira pessoa, preserva certa linearidade e faz com que as ações, que se desenrolam no seu tempo específico, parem gentilmente para esperar que a poesia desfile e teça suas teias em meio à prosa narrativa. O relato tem como personagens principais dois companheiros de viagem: o menino Muidinga e seu protetor, o velho Tuahir, que andam por uma estrada a andar antes deles, fugindo das mortes e dos pesadelos de uma guerra que destruiu a base material de sua existência. A justificativa para a viagem é encontrar os pais de Muidinga, mas, na verdade, o que realmente importa é se manter vivo em uma terra onde não parece haver lugar para mais ninguém. Os dois se abrigam em um “machimbombo”, espécie de autocarro, que está incendiado e marcado pela guerra - como quase tudo ao redor. Neste, encontram uma mala a abrigar várias páginas que juntas dão forma e vida ao diário de Kindzu ou os cadernos de Kindzu, onde as letras desfiam o tom da história de outro garoto vitimado pela guerra - o que parece acalentar corações já tão cansados como o do velho e do menino. Acalenta e ensina a sonhar, como definiu o fantasma do pai do menino Kindzu quando este último andava a escrever em seu caderno.
No diário, estão presentes os horrores da guerra, as histórias incríveis de uma cultura tradicional do sudeste da África marcada pelo cheiro da pólvora, pelo som dos tiros, pela vigência da morte e pelos horrores de um pesadelo sem fim. O velho e o menino se apegam aos cadernos de Kindzu e à medida que leem vão se encontrando em lembranças, em esquecimentos, em outras e tantas vidas. É interessante perceber como Mia Couto reúne os horrores da guerra, os preâmbulos da corrupção, a dor de uma terra abandonada pelos seus próprios filhos, a contradição dos sentimentos e as incertezas individuais com um contexto histórico claramente delimitado. Terra Sonâmbula traz um conteúdo social de riqueza indiscutível, Mia Couto é um autor atento às causas sociais, para ele a arte não pode ser uma funcionária destas, mas não deve deixar de fazer a sua intervenção. O autor preserva o belo e o raro desejo de querer mudar o mundo e, como escritor, incorpora essa característica. Ele consegue com a riqueza de sua prosa poética unir o social ao mítico, a corrupção à felicidade, a esperança do amor aos horrores da guerra.



Mia Couto sempre se preocupou em mostrar a realidade mítica e humana de uma África que se perde em meio aos caminhos sem volta da corrupção. Nesta obra, a figura do administrador corrupto, Estevão Jonas, se faz presente. Ele é claramente uma personagem alegórica que faz referência à corrupção em todas as suas formas mais vis. Este personagem reaparece em outro livro mais recente de Mia Couto, o livro O último voo do flamingo (2006). Esta obra traz a mesma figura do administrador corrupto e se assemelha em diversos pontos com Terra Sonâmbula, seja pela linguagem, poética e estetizada, seja pela presença de todo misticismo e sabedoria popular que paira sobre os ares do continente africano. Em Terra Sonâmbula, à terra foi negado o direito ao sono, aos homens o direito de sonhar, à vida o direito de ser vida em essência e arte. A guerra roubou muito das pessoas, por isso, em uma das passagens, Mia Couto diz com tamanha perspicácia e sensibilidade literária “o melhor da vida é o que não há de vir”. Em O último voo do flamingo, a terra é abandonada pelos próprios filhos, a corrupção abre arestas estéreis e machucadas, os campos estão minados, a feiticeira Temporina tem o rosto de velha e o corpo de moça, assim como a África é velha e nova, corrupta e rica, desigual e uniforme. Neste livro, a última esperança é o voo dos flamingos, quem sabe eles não salvarão esta terra entregue aos ossos dos mortos e às almas dos bruxos e trarão, enfim, a paz. Já em Terra Sonâmbula a última esperança é o sonho, é a arte de poder imaginar por meio de cadernos rabiscados, histórias fantásticas que rasgam os cantos da terra em tristonhas divagações.
Em meio a semelhanças e comparações vemos, no entanto, que a técnica de texto, a linguagem poética e a criatividade provocadora são marcas constantes neste autor que, antes de tudo, é um poeta. Mia Couto recheia o seu texto com metáforas das mais variadas, faz uma constante evolução de comparações abrigadas nas entrelinhas para chegar a relações de igualdade das mais variadas, cria palavras e recria as já existentes, quase como um Guimarães Rosa. Ele dá vida a uma linha, a uma ideia, a uma conexão desordenada de palavras que se ordenam perfeitamente na oração final. As figuras de linguagem jorram das páginas de Mia Couto, o próprio título da obra “Terra Sonâmbula” traz uma personificação clara. Ele é criativo ao poetizar a prosa, ao dizer de outra forma - mítica e profunda tal como a África que ele narra - o que poderia ser dito de maneira casual e limitada. Em alguns trechos de Terra Sonâmbula ele faz comparações surpreendentes, entre elas “triste como pétala depois da flor”, “mão do tamanho de um beijo”, “a morte é como uma corda que nos amarra as veias, o nó está lá desde que nascemos, o tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco”, são palavras que brotam magicamente, chega a ser inacreditável. Mia Couto quando reinventa a linguagem faz com que nossos olhos por um instante não acreditem no que estão vendo para que no segundo seguinte já sejam só delírio, surpresa e encanto. Os elementos das comparações, das metáforas, das inversões, dos paradoxos, da ironia e até das metonímias do autor figuram como avessos do mundo e da própria linguagem quando diferentes significados são dados aos mesmos significantes.

Ler Mia Couto é como navegar em um mar de palavras, se perder para se encontrar


Saindo um pouco dos limites ilimitados da palavra e da linguagem podemos perceber que a narrativa dos cadernos de Kindzu aparece encaixada em meio à história de Muidinga e Tuahir e uma parece se referir à outra, a tal ponto que uma por vezes se confunde, se mistura e se funde na outra. São como duas histórias em uma só. E essa ligação entre duas histórias dentro da mesma história é outro mérito literário e perspicaz de Mia Couto. Ele sabe não deixar o dito pelo não dito, sabe trazer para o mesmo terreno o sobrenatural e o banal, transformando sonho em realidade. O autor sabe fundir em sua escrita imagem e palavra, faz de uma consequência da outra ou nos deixa sem saber quem é causa ou conseqüência, neste jogo de linguagem e condução da narrativa.
Os personagens de Mia Couto são complexos, alegóricos e demasiadamente humanos. A humanidade transborda por seus poros imaginários. Eles são capazes de amar e vislumbrar esperanças, como Kindzu que ama a misteriosa Farida, enquanto esta última acredita em um farol só dela, que a salvará do naufrágio de seu próprio tempo e da sua decisiva beleza - beleza daquelas capazes de fazer fugir o nome das coisas em desejo de ardência súbita, imediata e inadiável. A densidade psicológica se faz presente em cada fala, em cada olhar que, por vezes, se materializa em olhos que duram mais que uma tristeza eterna e doem de serem vistos, como diz Mia Couto em certa passagem. O que dizer da velha Virgínia que encontra refúgio na própria infância, descrita em um dos cadernos de Kindzu. Ela se perde em um estado de fantasia sem volta, mas quem pode dizer que ela também não se encontra nele. Assim é Mia Couto, considera as possibilidades da vida e as traduz nas possibilidades da sua linguagem, prefere a densidade dos personagens, os preâmbulos psicológicos, pois densos também são os dramas de uma África milenar e extremamente misteriosa retratada em sua obra.

Mia Couto

O que é necessário perceber é o fato de que este biólogo-escritor, ou escritor-biólogo, diz uma coisa por trás da outra e o faz, principalmente, por meio de seus personagens. Ele não colocou caminhando lado a lado um velho e um menino porque a história é a de um velho e de um menino. Nas paginas de Mia Couto não existe apenas um velho e um menino. O que existe são duas Áfricas caminhando lado a lado, a esmo. Tanto a África velha como a nova estão perdidas, afetadas pela guerra, ausentes de sentido, não há rumo nem para o novo, nem para o velho. É isso que Mia Couto quer dizer com Muidinga e Tuahir. No entanto, há uma mala no meio do caminho, tal como a pedra de Drummond, cheia de papeis de sonho, letras de lágrimas, fantasias de um coração. Quem encontra a mala é o menino, ou seja, a África nova pode encontrar a saída, mas o velho gosta de ouvir as histórias e pede para que o novo as leia, portanto, a nova África precisa da velha, assim como a semente precisa da terra. A velha África, corrupta e mística, precisa estar disponível para sonhar e a nova precisa estar atenta às malas do caminho. Quem sabe a nova contando coisas para a velha e a velha ouvindo as coisas da nova não seja a saída para uma África onde as almas são roubadas pela guerra e as mentes pela corrupção. É o velho e o novo que se fundem em um só quando, um tempo depois, Mia Couto dá vida à feiticeira Temporina, é o velho e o novo que param pra se ouvir, se guiar e se encontrar em sonhos que transitam de forma tênue pela linha da realidade.
O livro é de uma riqueza literária aparente, de uma sensibilidade social gritante, de uma inteligência técnica e estética admirável. É um livro que toca e ensina. Ensina a olhar para os mistérios de outra margem, ensina artes de renascer quando quase se morre, ajuda a inventar verdades, ao menos quando se inventar palavras. O livro nos faz vítimas de diversas mortes quando nos chama para as diversas mortes de uma África tão fascinante e tão abandonada.
Terra Sonâmbula anda sozinho, na madrugada de noites frias e ensopadas, com pegadas velhas e novas, sonhos escritos e ensinados, histórias de vergonha ou glória. Assim ele vem devagarinho, sem barulho, e fica grande, fundo. Em uma das tantas lindas passagens de sua obra, Mia Couto diz que os sonhos são cartas que enviamos a nossas outras, restantes vidas. Eu diria que Terra Sonâmbula é feito de sonho e é como um sonho. Quem o ler receberá uma carta de suas outras, restantes vidas, se despedirá de suas vestes e será maior que o tempo, do tamanho do mundo, até que suas letras se convertam em grãos de areia e suas páginas se transformem em páginas de terra, tal como os derradeiros cadernos de Kindzu.

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