segunda-feira, 10 de maio de 2010

Da autora

Caros leitores, o Impressões agora está com um novo endereço, este aqui logo abaixo:
http://mauravoltarelli.wordpress.com/
Que as mudanças sempre venham e nos mudem para melhor. Espero que gostem do novo espaço!

sábado, 1 de maio de 2010

Instantes de lucidez para pedaços de uma loucura em cerâmica


Parte 3
Ao chegar em casa, guardei a flor entre as páginas de um romance. Romance poético. Ardente de ideais bucólicos. A flor como peça artesanal da natureza. O romance ao certo deve ter gostado muito de recebê-la entre suas páginas. Aos poucos, o cheiro da flor ia passar, no tempo certo, para o papel. Mistura essencial. Cheiro de papel velho, bem amarelo. Cheiro de flor murcha, bem singela.
Com o movimento da vida, idas e vindas, mudanças e corridas eis que o menino da flor murcha com o tempo foi sendo da minha memória diluído. Do garoto que depois tornou-se meu primeiro namorado, eu lembrava naquela época e ainda hoje me lembro apenas de uma coisa. A flor murcha.
No entanto, devo confessar pelo menos a ti minha amiga que essa história de eu ter ganhado uma flor murcha do meu primeiro namorado sempre me confundira na minha mente. No instante em que a ganhei, tentei ver o gesto pelo lado positivo. Vício incurável de mulher apaixonada. Por que achar que tudo sempre tem um outro lado. Mesmo fazendo essa cara ele deve estar gostando. Mesmo não dizendo que me ama, ele deve me amar. Mesmo não querendo sair comigo hoje, ele deve estar cansado. Muito trabalho.
Besta coleção de deves. Inevitável aderência feminina. Indisfarçável transparência dos sentimentos. Mergulho em um lago gelado. Murros na consciência. Portas abertas para jorrar torrentes de sonhos e ilusões fabricadas e remexidas no caldo traumático do inconsciente. Paixão fascinante e efêmera. O amar mais ao outro que a si mesma. Ainda quando se pensa que se ama mais a si mesma que ao outro. Doce arrebatador sentimento. O amor e seus tormentos.
Mas voltemos ao menino da flor murcha. Como já dito, o tempo suplantou minhas memórias. Tive outros namorados. Casei-me e entrei na igreja com um belo boque de rosas novinhas. Lindas. Nada murchas. Pelo menos no dia de meu casamento queria me livrar dessa maldição de flores murchas. Tive filhos. O casamento foi ficando cada vez pior. Como mulher que eu era, por dentro ainda menina, deixei meu marido. Continuei sendo mãe e menina. Nunca mais tive outro homem. Entenda-se não de forma relativamente séria. A vida ia desabrochando.
Na estrada os carros riscam o ar alucinados. As coisas passam invisíveis e banalizadas. Crianças ganham feições e assuntos jovens. Janelas amontoam-se freneticamente umas sob as outras. As pinturas aos poucos desbotam-se envelhecidas. As rugas fogem para a face. Alojam-se no canto dos olhos. Os cabelos brancos visitam os negros, loiros ou castanhos. A pele se faz mais frágil que uma seda. O coração carece de proteção. Cansada pede calma e sensibilidade. Sinfonia da eterna danação. Nomes além dos homens. Rios além de pontes. Dores além de psicólogos. Leitos poucos para tantas mortes. Sonhos arrastados por seres sem nome. Números por cima de números. Cimentos por cima das árvores. Liquefação inconstante do ser. Entupimento frenético da alma. Anabolização artificial da vida. Temperamento suicida para os dias. Ilusões cortadas em pedaços bem fininhos. Lugares plantados no vazio. Palavras entupidas pelo nada. Vozes tão potentes quanto mudas.
Hoje estou velha. Cabelos inteiramente brancos. Muitos dizem que conservo o mesmo jeito de menina.
Mas já ia me esquecendo. Um dia, sem querer, como acontece quase sempre nos poucos grandes dias ou dias decisivos de nossa vida, ao abrir um livro esquecido e empoeirado bem no fundo de uma estante, vi ali repousada, protegida pelas páginas, a flor. Mas não era a mesma flor. Era outra. Engraçado, não me lembrava de ter guardado outra senão aquela flor murcha, meio avermelhada. No entanto, ali entre as páginas quase que totalmente perfuradas pelos bichinhos do tempo, havia apenas uma flor que não estava murcha. A flor estava nova. Tal como se tivesse acabado de ser arrancada do canteiro. O vermelho era forte, regado por um leve tom rubro. A flor parecia brilhar. Radiante peça rejuvenescida pelo tempo. Admirada, eu me detive durante um longo tempo a olhar a flor. Mas que coisa incrível pensei. De que espécie rara veio essa parte da natureza? Se ao menos me lembrasse do nome daquele garoto... Poderia ir atrás dele para saber melhor, entender melhor.
Mas não me lembro. Já faz tanto tempo. Quando a recebi tinha acabado de completar 20 anos. Era uma menina. A flor murcha. Confesso que estranhei bastante, principalmente por causa daquele sonho. O sonho!
Foi nesse instante que me peguei alarmada, aturdida, desencontrada de mim mesma. Deixei a flor cair de minhas mãos de forma violenta. Claro! Incontrolada eu gritava. “Era sim a mesma flor daquele dia, a mesma flor murcha do vaso, do pássaro, dos horrores impressos na cerâmica. Ela está enfeitiçada, não toquem, ninguém toque na flor. Ficou nova assim de repente! Como pode? Pura peça de feitiçaria”.
Lembro que saí correndo para onde eu nem sabia. Andando pelas ruas eu gritava desesperada. Comecei a implorar para que todos dali fugissem, contei sobre o pássaro, o vaso, a flor, o tabuleiro de xadrez, a criança segurando a torre, falei sobre a raposa nojenta, sobre a mulher que tinha vários corpos e sobre a qual pairavam várias vozes. Depois não vi mais nada. Ficou tudo branco.
E assim chegamos aqui. Hoje já estou com 80 anos. Eu velha, murcha. A flor nova, rubra ainda aqui a conservo ao meu lado.
Não reclamo de meus dias, moro em um lugar lindo. Branco, recortado pelo verde que irrompe das árvores e pela paz que sai das formas sutis do desenho dos troncos. Algumas vezes, ouço vozes a falar sobre a minha cabeça. Elas não param. Não sei distinguir a forma, se de homem ou de mulher. Mas elas falam. Ah e como falam. Elas querem a flor murcha que agora ficou bela. Mas eu não dou. A flor é minha e acabou. De vez em quando, um homem bastante velho vem me visitar. Não sei quem ele é, tampouco dele me lembro porque alguns dizem que eu já o conhecera antes, de muito antes. Da visita dele eu gosto, mas não gosto do outro. O homem que sempre está vestido todo de branco, ele vem me ver todos os dias, sempre com injeções, comprimidos, remédios que estão me deixando cada vez menos consciente de quem eu mesma sou. Ainda bem que já contei um pouco da minha vida pra você, daqui a um tempo não vou me lembrar de mais nada. Os remédios e o homem todo de branco não vão deixar. Eles querem me esfumaçar, querem deixar tudo fumaça, também querem a flor, mas a flor eu não dou.
Antes, no entanto, preciso te contar mais uma coisa antes que eu esqueça. O que eu mais gosto de fazer por aqui é olhar o pátio, quase sempre vazio. Hoje ele está vazio. Gosto dos pisos que são todos quadrados, alguns mais escuros outros mais claros. Gosto de deitar-me nos cantos do pátio, olhar os quadrados e as pessoas todas vestidas de branco que por aqui passam. Não levo nada comigo, apenas a rosa vermelha e nova é que não deixo sozinha. Todos querem roubá-la de mim. Deitada, a seguro forte entre meus dedos para que a beleza não me escape.
Como certas figuras brancas me perturbam. Calçada oca sem acabamento nas beiradas. Alma torpe combinada a uma honra meio esfarrapada. Rua estreita inundada por vielas mal tratadas. Desejos e gemidos reprimidos sem sentido que se conte ou se figure. Espasmos de acaso. Vestes de fidalgos tão antigos como dinossauros. Postes enfeitados de sal.
Cansei da conversa contigo raposa presunçosa e movediça. Veja bem, teu relógio já passa das duas, depois só temos mais o três.
Um enfermeiro que passava naquele instante em frente à sala de Estela, a mulher que acaba de contar sua história, assim disse ao ouvir as últimas palavras daquele relato.
“Falando sozinha de novo essa aí. Vamos ter que aumentar a doze do remédio, ela ainda parece muito bem, consegue contar essas histórias malucas dela com grande lucidez. Imagina! Pássaro que vira vaso. Chama o doutor Corvo, pergunta qual o melhor remédio pra que ela nem consiga falar, perca os sentidos e nos dê um pouco de paz. Vá, depressa. Doutor Corvo não cuida só dos parasitas daqui não, há uma multidão por aí feito essa daqui a tagarelar besteiras.


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Veja parte 1