sábado, 24 de abril de 2010

Instantes de lucidez para pedaços de uma loucura em cerâmica


Parte 1
Que desvirtuada flor murcha. Hoje só sei dizer de tal desassossego de alma e de alguns fluxos intermitentes. Como certas figuras me perturbam. Na maioria das vezes, é como chuva depois de trovoada. Trovoada. Arrebatamento de alma. Desintegração de crenças. Loucuras de cinema mudo. Farrapos destelhados de um abandono imundo. Ritmos tão cheios de tudo. Orvalhos decadentes em pontes ligeiramente indecentes. Paredes brancas e verdes vazia de gente. Vozes por demais lotadas de coerência. Racionalidade limitante e edificante ao extremo. Criação de verdades ao lado da repetição frenética de imagens. Diluição paradoxal de um tempo pueril e sexualizado. Sentidos atrofiados. Mentiras subornadas ao lado de felicidades que são como jardins aparados. Espelhos esfumaçados e trincados pelas rugas inconvenientes não do tempo e sim dos vícios. Bajulações excessivas e oratórias assexuadas. Abismo pintado de cetim barato. Marfim disfarçado de capim. Pedras soltas a rolar em direção a um nada sem nome. Sem nome como a flor murcha. Símbolo de algum pesadelo, tormento, peça de feitiçaria ou instante de agonia.
No dia da flor murcha eu acordei assustada. Tinha apenas seis anos de idade. Um pássaro estava morto, bem ao pé da minha janela. Pássaro morto. Estruturas desengonçadas. Uma profunda tristeza invadiu-me. Imaginei por um instante aquele pequeno pássaro que outrora devia voar livre, inconstante, vertido pelos ventos esvoaçantes. Morador do infinito, da vastidão desencontrada. Avesso a interiores de tijolo ou gesso. Adepto das intermináveis distâncias, dos longos voos, dos arrepiados esquecimentos. Imaginei como sempre eu quisera ser livre como os pássaros, ao menos por um instante. Como sempre quisera voar. Desejos impossíveis. Os desejos impossíveis são constantes em minha mente até hoje. Penso sempre em coisas impossíveis antes de dormir. Envolta no breu, disfarçada com aquilo que fingo ser meu, mas, na verdade, tampouco sei se o tenho de fato. Mordendo as brechas da escuridão. Beliscando os silêncios mudos da noite. Desenhando o instante em que a noite vira madrugada. Despertando sem querer no segundo em que a madrugada dia se anuncia sem escala. Dias de vertigem já eram os dias de minha infância.
O pássaro de repente foi saindo daquela condição de morto. O sangue que lhe cobria as penas um tanto amareladas foi, no espaço do encostar de meus cílios, sugado. A cor parecia voltar-lhe, como o frio volta depois do calor. Ficou um tempo com essa aparência de quase vida depois da morte quando, no preciso instante em que os seus olhos se abriram novamente para a luz, ele já não era mais um pássaro. Ganhara formas e a aparência de um vaso. Belo vaso de cerâmica. Simples, mas bastante delicado. Marrom e com poucos detalhes esculpidos por fora. Debruçando-me um pouco no parapeito da janela fui descobrir que o vaso era realmente lindo, fascinante, mais por dentro do que por fora. No seu interior, as formas em relevo saltavam, mesmo que não pudessem ser vistas inteiramente em razão da abertura principal que conduzia ao espaço oco de dentro ser um pouco estreita. Os desenhos, mesmo vistos com certo esforço, pareciam ser uma espécie de cronologia, organização do passado ou previsão do futuro. Naquele instante, eu não conseguia ver com clareza.
Torrente de imagens. Invasão de fantasmas, monstros e assombrações. Momentos de espasmos. Canções entoadas no seio da escuridão. Manchas de aranha, caldo de diversão. Efemeridades diluídas no estojo da separação. Orgias pervertidas, pedaços de horas mastigadas sem sermão. Luvas de borracha sem queratina. Odores de um azul sem compaixão. Prazeres condensados, extraviados e desviados para tudo que fosse contra mão. Surrealismo ou sonho da ingratidão.
Curiosa, debrucei-me um pouco mais. Caí. Tombei bem em cima do vaso. Ele se fez em pedaços. Peças soltas esparramadas pelo chão. Incrível obra do destino. Verso do acaso. Rima sem satisfação. Os pedaços tinham se quebrado de modo que em cada um deles permanecia inteiro um desenho com cores e alguns escritos completos. Eram vários instantes de um tempo que eu ainda não sabia se já fora ou se estava para chegar.
No primeiro pedaço de cerâmica, deparei-me com a figura de um homem belo, todo de branco, com olhos bastante ambiciosos e um aspecto esfarrapado. Hoje, parece que tudo aquilo me volta mais claro. Ás vezes, me surpreendo com minha própria lucidez. Não sei por que me entopem com tantos remédios. Bom, mas tenho vontade de contar essa história nem que seja pra você. Sinto que preciso. Depois dessas palavras talvez não diga mais nada.

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