terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O Retrato de uma Alma

"Não podia acreditar nessa mudança; entretanto, era um fato. Haveria, acaso, alguma afinidade sutil entre os átomos químicos, que se aglutinavam em forma de cor na tela, e a alma que ele levava dentro de si? Seria possível que eles concretizassem o que a alma imaginava, que lhe convertesse os sonhos em realidade? Ou haveria outra razão mais terrível? Dorian estremeceu transido de pavor e voltou ao divã. Dali espreitava o retrato, com uma expressão horrorizada". (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

Um homem de rara e sedutora beleza, de nome Dorian Gray, portador de um caráter ingênuo, de uma alma pura e sonhadora. Um pintor, Basil Hallward, em busca de um ideal estético, da harmonia e perfeição de formas, da combinação perfeita entre arte e expressão, vida e representação, de algo perfeito e irresistivelmente belo, capaz de ser alimento e inspiração da sua arte. Um aristocrático, Lorde Henry, cheio de teorias, conceitos prontos, munidos de certa dose de preconceito e hipocrisia, formulados para explicar a vida por meio de visões simplistas, maniqueístas, dicotômicas, olhares superficiais lançados sobre a teia tão complexa da existência humana, não raro dupla, múltipla ou, muitas vezes, nula. De todas as ideias de Lorde Henry, o ponto principal seria tirar da vida o máximo de prazer e vivenciar as mais diferentes e improváveis experiências, não importando de que natureza fossem estas últimas. Ter como principal teoria nada mais do que a própria vida e fazer dela uma busca frenética por prazer na direção de um novo hedonismo baseado, acima de tudo, no prazer e culto aos sentidos. Como finalidade suprema de sua pregação, musical e melancólica, estava a espiritualização dos sentidos. “Curar a alma por meio dos sentidos, e os sentidos por meio da alma”, com esta frase e alguns livros, Lorde Henry seduzira e envenenara em doses lentas e incendiárias Dorian Gray, extinguindo aos poucos a beleza de sua juventude, a bondade primitiva de seu coração, a ponto de que este último chegasse a considerar o pecado como um simples meio de realizar o conceito de belo.
É, basicamente, em torno desses três personagens que o escritor inglês Oscar Wilde constrói com sensibilidade, perspicácia e uma linguagem extremamente lapidada, o enredo de uma de suas mais famosas obras, O Retrato de Dorian Gray.
Ao deitar os olhos sobre as primeiras linhas do livro e, aos poucos, ir avançando pelas suas páginas, o que primeiro salta aos olhos é o estilo do autor, um estilo que se faz simples e, ao mesmo tempo, denso, reflexivo, a tal ponto que se chega a demorar um tempo em apenas uma página, na ânsia de apreender a riqueza de detalhes que ela apresenta de maneira sutil e inteligente em descrições constantes, entremeadas por ações, diáfanas e belas. Complementando o estilo denso e reflexivo de Oscar Wilde, a linguagem do livro mostra-se portadora de uma aguçada e sensível veia poética, de uma escolha minuciosa das palavras e expressões, de um cuidado e esmero na construção das frases. A linguagem é fascinante, tão perfeita em provocar o efeito que o autor busca que, em certas linhas, chega a angustiar o leitor.
Em alguns momentos, era como se quisesse penetrar nas entrelinhas deste livro e pousar meu corpo sobre as letras escritas em uma tentativa de que elas passassem das páginas brancas escritas para minha pele sedenta por letras e vazia.
Estilo e linguagem dão forma a uma obra que une as duas pontas da arte e da beleza. O Retrato de Dorian Gray mostra que a arte, como diz o próprio Oscar Wilde, muitas vezes é absolutamente inútil, mas, neste caso, a inutilidade de uma obra de arte se legitima pela intensidade e constante admiração que dela se faz. A arte aparece como, ao contrário do que se pensa, nem sempre um meio de revelar os sentimentos de quem a produz, mas também um meio de escondê-los ao mesmo tempo em que a paixão com que escrevemos um texto ou pintamos um quadro resvala, inevitavelmente, na obra produzida e pode fazer desta uma obra-prima, o mais terrível dos sortilégios, o repugnante ou maravilhoso espelho de uma alma.
Na esteira das discussões sobre a arte, Oscar Wilde traz em O Retrato de Dorian Gray, diversas reflexões sobre a vida, o amor, as mulheres, as relações amorosas, o prazer, a busca e o conhecimento dos sentidos, a existência da alma e a lógica ilógica da beleza. Uma beleza que, se para Dostoiévski é capaz de salvar o mundo e deitá-lo aos seus pés, revela-se em outro ângulo para Oscar Wilde. Este último traz em sua obra o outro lado da beleza, aquele que retoma a tragédia grega de Narciso, apaixonado e enlouquecido pela própria imagem refletida sobre a água. Na obra, por meio dos dramas e fraquezas de Dorian Gray, o personagem principal, a beleza se mostra ardilosa, repugnante e traiçoeira quando resvala na soberba, quando cega os sentidos, quando desafia a própria alma. Dorian tem um belo retrato pintado por Basil e, no momento em que o vê pela primeira vez, fascinado pela própria beleza e pureza da juventude pede, em um acesso de ilusão e prepotência, que para sempre sua aparência se conserve jovem, sem as marcas trazidas pelo tempo, pela idade e pelos vícios e vulgaridades que alguns homens acumulam ao longo da vida.


Em um sábio e inteligente jogo onde quem dá as cartas é o destino e a arte literária, Oscar Wilde constrói um enredo no qual, Dorian de fato tem seu pedido atendido, sua aparência segue jovem, sem os vincos do tempo, intacta, com o mesmo ar puro e ingênuo da mocidade, mas, à medida que ele entrega sua vida aos prazeres mais vulgares, às ações mais vis e cruéis, à destruição da alma de outros, ele vê, ao poucos, a sua imagem pintada por Basil de forma perfeita e magistral, adquirir um aspecto cada vez mais assustado, terrível, repugnante. É como se ao olhar o quadro fosse possível ler a alma de Dorian, ver como os vícios, mais do que a idade, haviam destruído sua beleza, tornado-a apagada, quase que imperceptível.
Nesse lance que revela uma grande sensibilidade e um indiscutível talento literário, Oscar Wilde mostra que a beleza é tremendamente efêmera e não se sustenta quando junto com ela não existem a coragem para ser bom, o talento para ser humano, a sensibilidade para guardar eternamente boas recordações. Em poucas palavras, ele revela que a beleza de fato deve ser contemplada, o mundo deve buscar o belo, mas este, por ser fascinante e enigmático, precisa, acima de tudo, saber existir para conservar-se original nas paredes da essência sutil de cada um, aquela que chamamos de alma. As duas faces da beleza são, de fato, a de Dostoiévski e de Oscar Wilde, em um movimento ela salva o mundo, em outro, também pode destruir uma alma.
Ao revelar os abismos da beleza, o escritor inglês também consegue na sua história revelar ao mundo a existência da alma. Na sua história, ele materializa o conceito de alma na forma de uma obra de arte. Esta deixa de habitar o campo do abstrato humano e passa a habitar, de forma material, o que de mais abstrato um ser humano pode produzir – a arte, conferindo a ela um caráter de vida própria, a arte que vive na alma, ou a alma que vive na arte.
Uma das chaves interpretativas do livro pode ser a psicológica, Dorian Gray sucumbe aos seus dramas, tenta escapar de seus medos, é envenenado por um livro e seduzido pelas teorias de Lorde Henry no mesmo movimento em que seduzia o mundo com sua beleza, entrega-se às drogas e aos prazeres mais mundanos, escapa da morte salvo pela máscara da mocidade, mas não escapa dela quando tenta extinguir a própria alma. Ao longo de toda a história, seus dramas são o drama do leitor, as descrições belíssimas do romance dividem-se com um mergulho profundo na escuridão da alma humana e na estética da arte.
Para citar Oscar Wilde, este diz dos livros que não existe livro moral nem imoral, eles são bem ou mal escritos. Sem dúvida alguma, O Retrato de Dorian Gray paira acima da moral e aparece como uma preciosidade ou pérola literária, muito bem escrita, exalando o cheiro de pétalas de rosas que perpassa e transcende toda a narrativa.


"Um grito de terror e indignação irrompeu-lhe dos lábios. Não se operara mudança visível, salvo nos olhos, onde Luzia uma expressão nova de astúcia, e na boca vincada, um trejeito hipócrita. A imagem odiosa tornara-se, se ainda era possível, mais repulsiva. O orvalho rubro continuava a porejar, mais vivo, como sangue recém-vertido... [...] E ele estaria livre, livre dessa tela monstruosa dotada de alma, livre de suas admoestações hediondas. Viveria finalmente em paz. Empunhou, pois, a faca e trespassou o retrato. Ecoou um grito, seguido de estrépito. O grito pavoroso, na sua agonia, fora tão lancinante, que a criadagem acordou e acudiu alarmada. [...] Ao entrarem na sala, viram na parede o magnífico retrato do amo, como eles o tinham conhecido, em pleno apogeu da sua esplêndida mocidade e beleza. No chão, jazia o cadáver de um homem em traje de rigor, com uma faca cravada no peito. Ele estava lívido, enrugado e repugnante. Só pelos anéis é que seus criados conseguiram identificá-lo". (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

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