terça-feira, 19 de janeiro de 2010

As Folhas da Amizade



O morro se estendia alto e ligeiramente embaçado naquele final de tarde de mais um domingo fragmentado. Nele, as casas se penduravam feito bolas em uma imensa árvore de natal, que durante o dia permanecia apagada e à noite era decorada com luzes que podiam turvar a visão de quem olhasse ou torná-la mais ilusoriamente confortada. Mas, geralmente, nos fins de tarde de domingo, o morro ganhava um aspecto melancólico, quase triste, um tanto prolongado, extraviado. As pessoas vagavam sem rumo, arrastadas pelo tempo, por algumas dores, por escondidas saudades, por ambições sublimadas, por sonhos distantes, por promessas falsas e fascinantes. Tentavam disfarçar as sombras de suas almas um tanto quanto esburacadas, de suas paixões e intensidades irremediáveis, buscavam viver - pura e simplesmente - e se os olhares lançados pelos que por ali passassem se fizessem, por vezes, mais atentos, veriam no contorno daquelas vidas pintadas pelo infinito uma alegria ainda fresca, uma luz delicada e discreta no fundo dos olhos, um sentimento próprio daqueles que mesmo reclamando da vida, lutando e sendo derrubados por esta, a amam demais para simplesmente desistir dela, não a odeiam o bastante que não a amem ainda que por instantes.
Mas essa história começa em uma das típicas e costumeiras conversas de domingo, quando os homens rascunham momentos de calma e derradeira distração antes da volta sempre certa da segunda-feira. Em frente ao bar de D. Fátima, tradicional ponto de encontro no morro de que falamos, conversavam quatro mulheres e um homem. As mulheres aparentavam todas mais de cinquenta anos, iam na vida já avançadas o que se revelava não só pelas marcas do tempo, como também pelas marcas dos vícios e pecados que acumulamos ao longo da existência. O homem também deixava transparecer mais ou menos uns cinquenta e cinco anos, um pouco mais seria provável, dificilmente um pouco menos. Eles conversavam animadamente, esboçavam algumas risadas, desenhavam alguns olhares, prolongavam alguma história curiosa, escavavam vez ou outra a memória e, em movimentos coordenados, iam tecendo a teia de uma conversa agradável e divertida pelo que ela tinha de irônico, equivocado, superficial, medíocre, e também pelo que tinha de belo, espontâneo, original e místico.
Falando em um tom de voz tranquilo, levemente debochado, o homem de nossa roda de bar, um tipo quase bonito que não chegava a ser tido como feio, com olhos claros, de um tom esverdeado, pele morena, boca vermelha, nariz arredondado, um queixo sutilmente levantado que lhe dava um ar malandro e, ao mesmo tempo, um pouco desconfiado, iniciou assim sua contribuição à conversação que há um tempo já se dava quando viu que o assunto de que as mulheres falavam resvalava e transbordava no tema amizade.
- Eu tenho um sério problema em relação às amizades. Não consigo mantê-las, confesso que até tento, mas no final nunca consigo. Sou ótimo para fazer amizade – disse ele com um ar amplamente convencido de si mesmo – quando chego a um lugar já converso com todos, tenho uma facilidade incrível para iniciar uma amizade, mas para manter qualquer uma delas, de fato posso me considerar um homem horroroso, não consigo – concluiu ele com um ar de quem termina um raciocínio longo e complicado.
Completando a fala do homem, uma das mulheres bastante loira, com pele bronzeada, roupas decotadas e uma sensualidade provocativa, mas extremamente original que contrastava com os traços finos e delicados de seu rosto, olhos castanhos e boca delicada, falou em tom de êxtase prolongado da sua experiência no quesito manter as amizades.
- Eu já não tenho este problema. Aqui, na academia do morro, a academia do Sérgio “saradão”, vocês já devem ter ouvido falar, muitos aqui do morro frequentam. Bom, o fato é que na academia, conheci há algum tempo, lá se vão uns dezoito anos, um grupo de vinte pessoas que eu nunca mais deixei de ver. Nem todas são aqui do morro, algumas inclusive são senhoras finas, do asfalto, que decidem vir gastar suas energias e manter a forma em uma academia de periferia pra depois se dizerem sem preconceitos, socialmente engajadas, antropologicamente corretas e outros termos complicados que aprendi justamente da convivência com elas. O fato é que todo mês nós nos reunimos na casa de alguém para mantermos o contato e, como eu disse, lá se vão dezoito anos. Algumas delas viram minhas filhas crescerem e me ajudaram muito quando precisei.
Ao que o homem do início prontamente acrescentou, como a enfatizar o que tinha acabado de dizer ou convencer-se a si mesmo do seu caráter em relação à amizade.
- Eu já não mantenho, sou horroroso, mas é uma coisa! Chego em um lugar e converso com todos, mas não mantenho as amizades, fico de ligar e depois não ligo, realmente não sei o que acontece comigo – respirou longamente com um aspecto de inconformismo barato, típico daqueles que não se importam de fato, mas querem se importar ainda que o inconsciente negue essa pretensão e ela se revele falsa nas sutilezas das frases, nas pausas e detalhes das expressões.
A segunda mulher que participava da conversa tinha cabelos ruivos, pele clara, olhar fundo, mãos extremamente compridas e voz quase sonolenta, exalando ares um tanto quanto místicos que combinavam com suas roupas e jóias coloridas, assim falou ela sobre a amizade:
- A amizade é algo complicado e, ao mesmo tempo, sutil e delicado. Só sei de uma coisa, no começo deste ano fiz meu mapa astral com a cartomante Cecília aqui do morro. Todo ano ela faz meu mapa astral e sobre o ano de 2010, ela disse ser esse um ano para vencer medos e inseguranças e cultivar as amizades, algo assim ou parecido com isso.
Ao que o homem do início novamente acrescentou:
- Pois é, mas eu não conservo, ai como sou horroroso – dizia sem exprimir um real sentimento de culpa – não sei o porquê, eu realmente não mantenho.
A conversa ia por esse rumo quando D. Fátima, a dona do bar, mulher incrivelmente culta, afeita às letras e aos livros, cujo sonho sempre fora ser professora ou quem sabe escritora. Mas o mundo, a vida, as coisas do tempo e as entrelinhas do destino a fizeram moradora do morro de que falamos e dona do bar onde a história e a conversa se passam. Morena, de cabelos negros, olhos nostálgicos e quase infinitos com ares típicos da mocidade, voz rouca e dentes amarelos, reflexos de anos a fumar quase que desesperadamente sem cessar e terceira mulher a participar da conversa falou, na realidade, quase cantou, com a cultura de quem sabe das coisas, menos porque leu muitos livros e mais porque viveu muita coisa, perdeu-se em momentos de contemplação do mundo e aprendeu a jogar com os ponteiros do tempo:
- Vocês aí a falar de amizade! Cutucaram-me algumas lembranças que emergem agora do fundo de algum lugar que não sei ao certo onde começa nem por onde vai a terminar. Em outros dias e outras noites, sob um céu salpicado por mais estrelas que o dos dias que agora correm, algumas amigas iam sempre à minha casa, há tempos não as vejo, sentávamos à noite ou, quando as coisas queriam, durante o dia em uma mesa de plástico branca repousada no canto de minha cozinha e ficávamos horas a relembrar dores e amores de outros tempos, a repartir sonhos, despejar medos e angústias, frustrações e ilusões, coisas que inventamos para nós mesmos e que de repente fogem de nós. A conversa não tinha barreiras, era como se corresse livre feito um rio transparente e calmo que apenas se agita lindamente no desmanchar de uma cachoeira, para depois voltar ao seu curso manso e discreto e enfim desaguar abertamente no mar. Adorava aquelas conversas e como ríamos, como éramos felizes gratuitamente e espontaneamente naquelas horas. A conversação, não raras vezes, resvalava por besteiras, loucuras, desesperos. Nela, expúnhamos nossas traições e, repetidas horas, eu sentia como se meu inconsciente se despejasse na mesa e as formas nele disformes fossem ganhando vida e as palavras nele absurdas e mudas fossem adquirindo força e nitidez e era como se as fronteiras entre vida e morte, concreto e abstrato, tempo e espaço se diluíssem, se rompessem de vez. Dizíamos que a nossa amizade era feita sob a estética da penumbra porque todos os dias, quando nos reuníamos, era no escuro, com uma luz quase imperceptível que apenas turvava o ambiente, iluminando-o fracamente. Uma das minhas amigas dizia que no escuro poderíamos imaginar mais e definir a força de nossas palavras ao contar cada detalhe de nossa história. Às vezes, o jogo era difícil, embaraçoso, mas o resultado era sempre estimulante, verdadeiro, legítimo, feito de pura alma, esculpido de essencial memória e amor.
D. Fátima continuava a cantar suas lembranças já com lágrimas a brotarem de seus olhos depois de um tempo escondidas sob a fina parede que os separa do rosto. Este molhado somado a um brilho quase infantil e inocente no olhar, a tornaram singularmente bela e sua palavras, claras, de tamanha força e veracidade, prendiam os olhares vazios de todos os outros integrantes da roda.
- No fim, a vida acabou nos separando, cada um foi para um lado, como pássaros livres que voam longe e alto, não raro para terras distantes, mares profundos, florestas densas, céus de veludo. Fomos como pássaros que outrora se encontraram em um verão doce e suave nos trópicos, onde compartilharam momentos para sempre guardados até que migraram para outras paragens quando o inverno se levantou irremediável e certo, guardando momentos pousados no canto de um coração que sabe conservar certas coisas que não passam. Ao contrário de ti – falava dirigindo-se à mulher que anteriormente falara – não conseguimos nos ver mais, talvez porque algumas fossem almas muito grandes, pássaros com penas tão lindas e ofuscantes que brilham demais para viverem presos em um instante. No entanto, às vezes penso que se as almas não fossem tão brilhantes, a amizade não teria sido como foi, seres pequenos dificilmente são capazes de coisas tão belas, tão espontâneas, não são todas as almas que vivem, que se despejam, que se molham na água da vida, que mordem o veneno da noite, que beliscam os ponteiros do infinito, que se escondem atrás das árvores e rolam nuas pelas areias de um coração amigo e não raro amante. O melhor da vida às vezes dura pouco na finitude e nos limites do tempo para conservar-se eterno na vastidão dos sentidos e nos mistérios da memória a perfurar insistente os anos e os dramas. Manter contato pode ser apenas um detalhe, que não define uma amizade, acho que o contato estragaria nossos dias de penumbra de outrora na branca mesa de plástico que ainda guardo em casa. O tempo muda, as coisas e as pessoas acabam mudando com ele, o importante são as boas recordações, as boas ações, que definem os bons momentos.
Ao que o homem, insistente e reticente, acrescentou:
- É, lindas palavras, belas, mas eu não conservo, sou horrível com essas coisas, como posso ser assim? Não mantenho, sou HO-RRO-RO-SO.
A quarta mulher que ainda nessa história não apareceu, também morena, de pele escura, ombros largos, gestos amplos e bem marcados, visivelmente irritada com o homem que ou pensava dos outros serem surdos ou precisava repetir suas declarações mil vezes a si mesmo como que para preencher o vazio cavado pela soberba e superficialidade de seu caráter assim declarou:
- Não cansas de falar que não conservas suas amizades caro senhor! Pois se a terra não o ajuda quem sabe os deuses não intercederão por ti. Nossa querida Cecília, cartomante do bairro, como nesta conversa já foi apresentada, disse-me certa vez de ótima simpatia para conservar amores ou amizades. Faz o seguinte, coloca, em frente à casa de alguém que outrora foi seu amigo e agora não é mais, por uma razão ou outra, ou porque você não consegue mais procurá-lo ou porque com você o outro brigou e não quer mais ver sua cara, uma garrafa de champanhe rosé com rosas vermelhas dentro. Ao lado da garrafa uma vela, também vermelha, acesa. Deixe lá por uns dias e veja o resultado.
O anúncio da simpatia e a fala visivelmente irritada da mulher deram um fim a conversa deste fim de tarde de domingo. Todos pareciam meio emocionados com a fala de D. Fátima e se emocionados não estavam, ao menos pareciam taciturnos e longamente pensativos, como a refletir sobre a intensidade e brevidade das coisas, de alguns momentos pintados pelo destino com cores nem sempre pálidas e cinzas.
Depois de alguns dias, D. Fátima, a dona do bar, passava distraidamente em frente à casa do homem que dizia não conseguir conservar as amizades, que outro dia mesmo esteve em uma das mesas de seu bar, em longa e acalorada conversa. Foi quando viu, já esboçando uma expressão de surpresa e iluminada compreensão, uma garrafa de champanhe rosé, nem tão grande nem tão pequena, com rosas vermelhas dentro e uma bela vela vermelha acesa bem ao lado da garrafa em frente à casa do tal homem que ela sabia onde morava posto que no morro, mesmo sem conversar com algumas pessoas, todos sabem da vida de quase todos, não por fofoca ou falação desnecessária, mas porque nesses lugares o abandono, a dor, a melancolia ou as simples alegrias aproximam as pessoas quase que automaticamente.
Diante da visão da simpatia, tomada por ares místicos e espiritualizados, pensou D. Fátima, taciturna e misteriosa, consigo mesma:
- É, talvez realmente o que ele precisasse era aprender a conservar a si mesmo – e, com uma liberdade maravilhosa típica daqueles que guardam e conservam boas recordações de dias em mesas de plástico sob penumbras misteriosas, concluiu a dona do bar - às simpatias e sortilégios do destino a loucura insana e irresistivelmente ordinária dos homens.
M.V


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