sexta-feira, 27 de março de 2009

A medida de todas as coisas



"Dai, e dar-se-vos-á, no seio nos será lançada uma medida boa, e cheia, e recalcada, e acogulada. Porque com a mesma medida com que medirdes para os outros será medido para vós."

Evangelho de São Lucas, cap.6, versículo 38.


Neste meu espaço coloco a frase acima visando fazer uma reflexão sobre o homem - suas ilusões e relações - e também uma referência ao texto ousado e polêmico de William Shakespeare, escrito em 1604, Medida por Medida. Um texto que aborda temas como poder, corrupção e erros de conduta, ou seja, temas que permanecem atuais quatro séculos depois, reafirmando o espírito visionário e atemporal de Shakespeare. Trata-se de uma comédia de intrigas, mas com um terno desdém pelas misérias humanas em um mundo de tiranos que reprimem, mas que ao se depararem com seus abismos (e todos os têm) são transformados em meros objetos de pavor e fecham os olhos.
A construção da peça também mostra que há algo de servil no rigor e na coerência em uma realidade onde certas atitudes podem até se justificar de mil maneiras, mas nunca são de fato perdoadas porque vis. Com toda sutileza e intensidade shakespeariana, a peça aborda o fato de que, muitas vezes, o drama a que chegamos em nossa vida é tanto e tamanho, que imploramos pela morte. E quando esperamos já ter encontrado tudo, vemos que nossa própria morte por vezes nos é negada, e aí nos traem nossos mais pulsantes desejos.
O texto de Shakespeare nos ajuda a perceber que seguimos medindo uns aos outros, medimos a nós mesmos e seguiremos medindo porque ao ser humano parece que medir seja, de fato, a medida de todas as coisas. Embora medir seja inevitável, só lembro aos navegantes, com meu tradicional aviso, que não esqueçam de que também serão medidos na mesma medida em que medirem os outros, como nos lembra a frase que fica lá em cima. Neste sentido, esta postagem serve mais como um alerta. Não quer explicar o texto de Shakespeare - por si só um tanto distante e alheio a explicações – já que este não é o ponto central dela, falo da peça aqui como um objeto de referência à mensagem trazida no início. Tampouco a postagem quer dar lição de moral -posto que esta pretensão não me agrada nem um pouco - é mais, como dito, um alerta e uma constatação de nossos vícios e eternos companheiros desta passagem efêmera e inexplicável por esta que mede e é medida: a vida!
Complementaria - fazendo uso dessa relação frase, reflexão, teatro - dizendo que a nós medidores e medidos resta a sensibilidade de reconhecer a melancolia, a cumplicidade e a paixão próprias do teatro. A mensagem e a individualidade de uma música que traz a gratuidade e a exclusividade da lembrança. A intensidade e a satisfação pela espera de coisas pelas quais vale a pena esperar.
Enfim, nosso consolo é a ilusão de acreditar-nos capaz de medir o que não tem medida, porque se a vida é a medida o que a constitui no seu inexplicável é incapaz de qualquer forma de mensurabilidade. Eis o limite de nossas medidas, as coisas que medem, mas não têm medida, como um belo texto de teatro, tal como o de Shakespeare, como uma sugestiva música carregada de harmonia, tal como uma história que dos livros se revela bem contada. Tal como todas as formas de arte, em toda sua manifestação e mistério, irreverência e atrevimento, contemplação e deciframento. Eis o invisível, que existe mesmo sem ser visto, porque mede com a dignidade e a astúcia daquele que não tem medida. É justamente tudo o que não explicamos, tudo o que sentimos antes de pensar, tudo que nos toca antes de simplesmente influenciar. Não é a toa que o homem explica apenas aquilo que tem uma medida, é só isso que ele mede. Mas todo o resto, o resto que ele não mede, ele não consegue explicar, acaba explicado e medido. E assim, revela-se o diáfano rio de nossas limitações, de seres que medem bem menos do que são medidos pelos mistérios do outro lado da sua margem, pelas medidas infinitas e intocadas e, por isso mesmo, as mais fascinantes e ardentemente desejadas.

Um comentário:

Rogerio Stopa disse...

...em um mundo de tiranos que reprimem, mas que ao se depararem com seus abismos (e todos os têm) são transformados em meros objetos de pavor e fecham os olhos.

Gostei.