sexta-feira, 6 de março de 2009

Séculos que separam a mesma realidade

Na Idade Média, que se estendeu até meados do século XV, a igreja era a instituição mais poderosa. Era ela que ditava as regras, determinava a moral, infligia os castigos, queimava hereges nas chamas da inquisição, proibia livros, era totalmente antipática ao conhecimento, à ciência, e àquilo que estava marcado pelos rastros da razão, da observação, do pensamento. A igreja também não via com bons olhos as emoções, condenava inclusive o próprio riso. Ela comandava uma sociedade que vivia em permanente e constante estado de medo e, ao mesmo tempo, em profunda e melancólica contradição interna. Nunca deixou de esclarecer e delimitar muito bem quais eram os seus princípios e suas verdades - dogmas para ser mais exata. Em sua maioria, eram princípios pautados pela falta de liberdade, pela doutrinação pura e simples, pela distorção daquele que seria o sentido mais puro da religião – o de encará-la como um reflexo da nossa realidade, ou seja, a religião só teria algum sentido para o homem na medida em que ela refletisse a sua realidade e fosse identificada, de alguma forma, nos conflitos da sua vida.
O fato é que dentro da igreja católica, mesmo em períodos de total falta de liberdade como a Idade Média, sempre existiram grupos mais e menos conservadores, ou seja, alguns defendiam os sagrados princípios a qualquer custo, sem permitir brechas ou interpretações. Outros acreditavam que certas verdades deveriam ser sim respeitadas, mas que algumas coisas poderiam ser discutidas e relativizadas, proporcionando uma maior liberdade na construção da fé.
Bom, estamos no século XXI, o tempo passou e trouxe com ele as mudanças - tidas por alguns como totais e abrangentes - escancaradas aos olhos do mundo moderno. Na realidade, não vejo as mudanças como tão totais ou tão abrangentes, admito uma desconfiança em relação a essa espécie de senso comum, afinal, nunca achei que as coisas tivessem mudado tanto assim. Acredito que a roupagem da sociedade muda de acordo com a época, com a estação, mas sua pele continua a mesma; prova disso são atrasos e mais atrasos que volta e meia batem à nossa porta e nos confundem em meio a datas e contextos, a ponto de não nos sabermos se no século XV ou XXI, nas trevas da Idade Média ou nas luzes da modernidade, na época da justiça ou no tempo da intolerância.
Um dos atrasos mais recentes de que se tem notícia diz respeito ao caso da menina de nove anos, de Alagoinha (PE), que foi submetida a um aborto para interromper uma gravidez de gêmeos – consequência de um ato de estupro do qual o padrasto é o principal suspeito – e a reação da igreja católica em relação ao aborto e ao estupro. O arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou a mãe e a equipe médica envolvida no procedimento de aborto, mas não infligiu a mesma pena ao padrasto, que, segundo o bispo, não pode ser excomungado. Apesar de admitir que o padrasto cometeu um crime gravíssimo, Sobrinho considera o ato de interromper uma vida inocente muito mais grave. É com esse argumento, aliado ao da proteção e cumprimento dos princípios da igreja – cá estão eles novamente, os princípios – que o arcebispo de Olinda e Recife justifica a atitude da igreja em excomungar mãe e médicos e apenas dirigir ao padrasto uma crítica sem tom de crítica.

Por detrás do Santíssimo ou "princípios", o arcebispo Dom José Cardoso Sobrinho

Discutir dogmas e verdades seculares da igreja é de todo algo no mínimo complicado e indigesto, seja porque alguns setores da igreja estão a cada dia mais conservadores – fato que não deixa de sofrer certa influência do pontificado atual de Bento XVI, um papa ultraconservador que, inclusive, apoiou a decisão do arcebispo Sobrinho - ou porque, como foi dito acima, pouca coisa mudou em algumas instituições de nossa sociedade de uns séculos pra cá, e a igreja, com certeza, foi uma das que menos mudou. Ela continua proclamando seus princípios como se estes estivessem acima de qualquer suspeita e pudessem justificar uma posição tão ambígua quanto essa que a igreja acaba de tomar. Afinal, uma coisa é certa nesta história toda, a igreja condena o aborto porque este interrompe uma vida, a destrói, mas e o estupro? Será que este também não destrói a vida de uma pessoa, deixando traumas e marcas de todas as espécies possíveis? Como uma menina de nove anos pode ter uma vida normal daqui pra frente sem as lembranças que insistem em atormentar? É neste ponto que as contradições e as intolerâncias se encontram fatalmente. São tantas as formas de se destruir uma vida humana, e são tantos os princípios que não se mostram exatos!
A igreja não vai mudar, isto é fato, dogma é dogma. Se as verdades absolutas antes quando contrariadas queimavam homens, hoje elas acabam se chocando com a própria igreja, queimando-a na sua contradição, na sua irredutibilidade, na sua moral tão justa a ponto de condenar um aborto, mas deixar passar um estupro. Essa atitude da igreja, no entanto, não surpreende, vale tudo, simplesmente, para não voltar atrás e permitir o aborto quando este tem relação direta com certos casos que ameaçam a vida humana. Não, mas isso não, como a toda poderosa instituição católica pode, ela mesma, torna-se a herética de seus próprios dogmas?
É, pelo que parece as coisas realmente não mudaram tanto assim, a diferença - e talvez essa seja a mais grave de todas - é que agora, ao contrário da Idade Média, os livros circulam livremente e as bibliotecas não são mais queimadas. O conhecimento e a liberdade de expressão deste são plenos, mas as injustiças continuam acontecendo e ninguém diz nada. A Teologia da Libertação busca ganhar espaço nesta igreja dogmática e atrasada, tentando mostrar que além das questões espirituais e dos dogmas, as questões sociais também têm importância e deveriam ser tratadas com um mínimo de coerência e respeito. Mas a ação dos teóricos da Teologia da Libertação não deve ser isolada. Todos precisam de lógica e luz, de respeito à vida humana em todas as suas dimensões, e todos devem reforçar essa luta, caso contrário, corremos o risco de voltar a viver com as chamas não mais da inquisição, mas do atraso. Este que nos queima devagar, soltando uma fumaça marcada pela inversão de valores e pela permanência do mesmo.

Um comentário:

Rogerio Stopa disse...

"A igreja também não via com bons olhos as emoções, condenava inclusive o próprio riso".

Imagine se isso ainda acontecesse nos dias de hoje, o que seria dessa menina pra superar essa barbaridade desse ...?

Maura, parabéns, obrigado e que essa menina não sofra mais do que já sofreu. Que Deus a abençoe.
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Dr. Hunter (Patch Adams)

O amor é a coisa mais importante do mundo, certo? Mas não há uma escola no mundo, da pré-escola ao segundo grau, que dedique uma única hora de aula ao amor. Mas todas ensinam a cada semana cinco horas de matemática, cinco de história e cinco de línguas. Nada disso é mais importante do que o amor. Imagine como o mundo seria se as crianças recebessem semanalmente cinco horas de aulas de amor por 13 anos! Os homens ainda não perceberam que o amor não é sexo, o amor é uma habilidade.

Fonte: Revista Galileu.