domingo, 1 de março de 2009

As Vinhas da Literatura

Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940

John Steinbeck nasceu em Salinas, Califórnia, EUA, a 27 de fevereiro de 1902. Ainda muito jovem, por influência dos pais, leu Dostoiévski, Flaubert, Elliot, dentre outros clássicos da literatura mundial que foram suas principais influências literárias. Trabalhou no jornal “American” de Nova York enquanto vasculhava a cidade em busca de um editor para seus livros ainda não escritos. Seus primeiros livros não lhe asseguraram a profissionalização como escritor, foi só com “Boêmios Errantes” que se firmou como um autor de prestígio. Steinbeck escreveu vários romances premiados que migraram das páginas dos livros para as telas de cinema e para os palcos de teatro, mas um deles, em particular, é considerado a sua obra-prima: “As Vinhas da Ira” (1939).

John Steinbeck

O romance conta a exploração a que são submetidos os trabalhadores itinerantes e sazonais através da história da família Joad, que migra para a Califórnia, atraída pela ilusória fartura da região. Falando assim talvez a história chegue a ser considerada banal, mas ao ler o livro descobre-se que ela pode ser interpretada como tudo, menos como banal. Steinbeck conta a história utilizando-se de uma linguagem sofisticada, poética, bonita, e, ao mesmo tempo, endurecida, seca, cortante, deixando transparecer todo sofrimento a que a família Joad é submetida.
Os personagens nos são apresentados com tamanha maestria e sensibilidade que conforme avançamos nas páginas eles vão se tornando cada vez mais próximos, mais familiares. Os seus dramas nos atingem profundamente, a sua força inacreditável nos impressiona, e suas tristezas mascaradas e contidas nos emocionam. O livro é simplesmente sensacional.
Encontrei nele algumas semelhanças com “Vidas Secas”, do nosso Graciliano Ramos. A vida dos trabalhadores em êxodo é escancarada ao nosso olhar de leitor em as “Vinhas da Ira”, assim como a vida daqueles que enfrentam o fenômeno cíclico da seca no sertão nordestino, nos é exposta de maneira fiel e arrebatadora através dos discursos monossilábicos e dos olhares perdidos em Vidas Secas. Ambos são fiéis aos fatos que narram conseguindo contá-los de uma maneira simples, triste e forte. Assim como são simples, tristes e fortes os protagonistas das duas histórias.
“As Vinhas das Ira” nos transporta para um ambiente onde as pessoas perderam tudo, muito lhes foi roubado - sua terra, sua casa, suas coisas - e com elas foram sua proteção, sua mais aconchegante morada, sua gratuita satisfação. No entanto, percebemos que os trabalhadores ainda carregam sua força, sua vontade de mudar, sua esperança e, principalmente, seus sonhos. Ah! Como os sonhos se fazem presentes na história dos Joad, como eles incrivelmente não desistem de caminhar e ter esperança, mesmo quando não sabem sequer para onde vão, mesmo quando eles sabem que, no fundo, caminham inutilmente.

Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940


E como as mulheres se mostram fortes, em meio aos homens e a toda sorte de infortúnios! Elas são como um rio, que não para, segue seu curso, arrastando tudo que tiver no seu caminho, sem pensar. O rio apenas corre - forte, majestoso, misterioso. Já os homens são como uma escada, cheia de degraus. No caminho param e pensam nos degraus que subiram, nos que desceram, nas coisas que perderam, nas que ainda podem conquistar. O pai da família Joad se agarra ao passado - a única coisa que ele diz ter – e deixa estampar em seus olhos o medo do futuro. Já a mãe da família Joad, vive um dia de cada vez, não mostra fraqueza, conserva sua força em meio a um cansaço que a disposição das palavras ao longo da história nos faz sentir e ver mentalmente. Eles são a base de uma família que sai inteira, mas vai perdendo pedaços ao longo do caminho.

Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940


E assim muitas e muitas famílias saem em êxodo, é um país em fuga, um mundo em desespero, uma porção de corpos vazios de comida em contradição e conflito com uma porção de almas carregadas de sonhos e recordações. A saga dos Joad é extensa. A história é contada em dois volumes, num total de 630 páginas, que, no entanto, são sonoras, passam rápido, mas não passam despercebidas. Elas fazem até o leitor mais incrédulo não acreditar no que lê, principalmente diante do final.
Já que se fala aqui de final, sinceramente, não sei descrevê-lo. Mesmo se soubesse não o faria aqui, mas o fato é que não o sei. Talvez não existam palavras no nosso limitado alfabeto para descrever a cena final do romance. Em meio à sensação indescritível que ela me trouxe, pude notar algo que fica claro em toda história do livro: a presença de um espírito absurdo de solidariedade. Uma solidariedade a mostrar que quando vivemos situações extremas de fome, frio, doenças, abandono e desolação, dois sentimentos ganham forma e atingem seus graus mais elevados e extremos: o amor e a ira.
Pessoas que realmente sofrem, repito, realmente sofrem, amam de maneira absurda aqueles que estão na mesma situação que elas. A família torna-se não mais uma célula isolada, mas um corpo todo em chamas. Em oposição a esse puro e sincero sentimento de amor, eles acabam por cultivar, mesmo sem querer, um sentimento de revolta, uma vontade de mudar e fazer justiça, que faz brotar a ira na direção daqueles que estão do outro lado, daqueles que lhes tiraram tudo - os tratores, as máquinas, os grandes fazendeiros – do mundo que está de fora da fina fronteira de sua humilhação e desumanização, dos homens que cultivam pomares carregados de frutas enquanto pessoas aos montes morrem de fome.
Cena do filme " As Vinhas da Ira" de John Ford, 1940

Do livro esta talvez seja a principal mensagem: das situações extremas nascem também os sentimentos e as atitudes mais extremas, o grande desafio é seguir em frente mesmo carregando mortes, mesmo engolindo lágrimas, mesmo lutando contra as lembranças, porque no final, todos buscam o mesmo lugar. Mas essas vinhas que guardam a ira são de todo muito tristes. Tão tristes que arrepiam, molham os olhos, mas não vertem lágrimas, porque a coragem logo volta. Os fortes não têm o direto de perder a coragem, cerram os olhos e sorriem misteriosamente.


*A trágica odisséia da família Joad recebeu o Prêmio Pulitzer e foi levada à tela por John Ford em 1940.

Nenhum comentário: