segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Embaixo de um pé de laranja

Foto de Fátima Chavarria


Eu queria apenas ficar sozinha. Chovia naquele dia, uma chuva fina, reticente, contínua, esfumaçada, quase como uma dor que dançava dentro de mim e que eu não sabia muito bem qual era. Sob a chuva eu saí correndo, sem rumo, sem descanso, meu peito arfava esburacado, a respiração era entrecortada, desigual, a água derramada pelo céu encharcava meu corpo, mas conservava seca a minha alma. Seca e pálida, surda e muda, sem nenhum som aparente, ecoando vozes distantes, embaralhadas. Enegrecida eu estava de amor, cortada e regada por um fio de desespero tecido pelas teias invisíveis da solidão. O tempo chuvoso, o céu escuro, nublado, as nuvens acumuladas umas sobre as outras, a atmosfera triste, melancólica e ligeiramente taciturna no entanto, aliviava um pouco a minha tristeza. Era como se o universo tivesse naquele momento um pouco de piedade das minhas aflições e angústias e, tal como meu corpo, se fizesse ele também vertedor de lágrimas, soluços e alucinações.
Aquele dia tinha sido horrível. As imagens voltavam vagamente, envoltas por uma névoa espessa na qual eu não conseguia penetrar, as lembranças tinham cores cinzas, com pequenas zonas verdes a saltar diante de minha atenta inconsciência da qual nada fugia, tudo ela controlava, até mesmo aquelas emoções das quais eu nem havia me dado conta ainda, tal era a confusão do meu estado de ser.
Foi quando deitei-me embaixo de um pequeno e delicado pé de laranja, um dos muitos que ficavam atrás da casa do sítio. Costumava passar minhas férias no sítio de meus pais, que antes fora de meus avós. Eram dias a desfilar quase arrastados, nos quais agradava-me demasiado me fartar do verde da terra e das nuances cromáticas do céu que, ao amanhecer, era tomado por um azul quase infinito e, ao entardecer, tingia-se de um vermelho e dourado concentrados, maravilhosamente e um tanto preguiçosamente, em uma fina faixa de luz destoante do restante do véu noturno, já tomado de um azul que ganhava a profundidade escura de noites sem estrelas, típicas por estes lados de cá.
A plantação de laranja, morada do pé que me guardava, era extensa, não tão grande que se pudesse perder de vista, mas também não tão pequena a ponto de ao olhar o primeiro pé já avistar o último. Além dela, o sítio era muito verde, quase todo plano, com algumas montanhas e elevações leves que emolduravam a paisagem lindamente. Havia uma casa principal, onde moramos em outro tempo, meus pais e eu, e que agora nos recebe em períodos de tempo reservados às lembranças gratuitas e invasoras e, por vezes, a um profundo tédio engasgado na alma, quase a vomitar-se de aflição, misturado a uma angústia e ansiosidade latentes e transparentes, diáfanas e claras até para aqueles que fingem não ver. Um pouco depois do laranjal havia um lago bastante calmo e misterioso, habitado por pequenos peixes e, talvez, outros seres das águas que nunca me preocupei de fato em ver se ali deitavam morada. Gostava de nadar no lago de vez em quando, banhar-me em suas águas escuras, um pouco barrentas até, mas que faziam de mim tão leve e suave feito pluma a dançar pelo céu em dias de ventos doces e refrescantes.
Pousada nas sombras invisíveis de um dia chuvoso sob as folhas verdes e escuras do pé de laranja afundei-me em lembranças deste e de outros tempos já idos e vividos. Lá embaixo a chuva não descia tão forte, era sabiamente desviada pelos galhos da laranjeira e me chegava ainda mais fina, quase como um beijo doce e disfarçado, desses que se dá quando não se quer revelá-lo ou quando não quer uma pessoa revelar-se, tampouco o seu amor, o beijo apenas salta como coisa incontrolável e ausente de limites e margens tão ásperas quanto opressoras.
Aquele dia fora de fato terrível, durante a viagem de trem até o sítio você apenas me cutucava e perguntava “O quê tanto olha por esta janela, qual é a graça em ver este mundo passar, com esse verde sempre o mesmo a turvar as percepções e pôr qualquer um louco, e essas casas sozinhas, abandonadas, pobres no meio do nada? Fecha esta cortina que eu quero dormir”. Meio aturdida, confusa, mordendo os lábios e sentindo o cheiro de meu ressentimento eu respondia quase muda, sussurrando “Gosto de olhar”. “Olhar o quê”? , ele dizia visivelmente irritado e sem paciência. “A vida, simplesmente gosto de olhar a vida”. “É uma menina tonta, infantil e sonhadora, agora feche a cortina e deixe-me dormir um pouco, logo chegaremos ao sítio e ainda tenho que ter com os seus pais para enfim formalizarmos este namoro, preciso casar-me o quanto antes, os negócios exigem e você, apesar de nova ainda, dará uma esposa no mínimo apresentável, é só não continuar a olhar pela janela tão longamente como faz. Este seu mistério perturba-me”.
Ai como feriram-me tais palavras, perguntava comigo mesma onde ele esquecera a gentileza do trato, a delicadeza das palavras, a sutileza das formas, a generosidade gratuita da sensibilidade rara, do cuidado doce, da maneira suave. Como este que podia vir a ser meu noivo e depois marido, que outrora já me amara tão lindamente, escondido dos olhares de todos como se no mundo só houvesse nós dois, poderia colocar de lado dessa forma a lembrança pura de tantas noites cheias de lua que já havíamos passado juntos, simplesmente esmagando as lágrimas que dos meus olhos nasciam e que eu prontamente escondia, do amor negando a flor e só fazendo viver espinhos a furarem palavras que despencavam em forma de dor. Quando fechei a cortina por mim já estava tudo acabado, nada mais restava, meu sentimento era grande, mas estava cansado, terrivelmente cansado e eu repetia quase que alucinada, muda e pálida, voltada para dentro de mim mesma “quero ficar sozinha”. Ao descer do trem impedi que ele comigo saltasse, andar ao seu lado eu já não mais queria, sua presença me era insuportável como o calor que naquele dia fazia. Não, definitivamente, não o queria mais, algo acontecera ou ainda acontecia com meus sentimentos, estava cansada, confusa, queria poder olhar pela janela, pousar meus olhos sorrateiramente e deliciosamente sobre a vida, sem ter que fechar a cortina apenas porque outro assim pedia. Depois de muita insistência, mais por orgulho e menos por amor, ele por fim desistiu, pude ouvi-lo gritando, a caminho do trem, quando este já se afastava em direção à próxima estação “ Em breve conseguirei outra, bem melhor que você, mais calma eu diria, menos sonhadora e pensativa, não gosto de mulheres pensativas, de todo não a amo, nem nunca amei, amor é algo fútil que não está nos meus planos”. Estas foram as últimas palavras que ouvi dele naquele dia quente do começo do verão, há exatos dois anos atrás, e que agora voltavam um tanto quanto confusas e esfumaçadas à minha mente, com um leve sabor amargo, difícil de engolir. Depois de dizê-las, ele ainda deixou cair um lenço quando fazia o movimento para subir novamente no trem, não sei explicar por que naquele dia o peguei rápida e nervosamente do chão, com medo de que ele desse pela falta daquele pedaço de pano branco com desenhos bordados em verde escuro ou de que outra pessoa o pegasse ou até pisasse nele, manchando e corrompendo a sua brancura ingênua e delicada. Deste homem, além das lembranças sempre a me abraçar, às vezes com mais força, em outras com mais suavidade, ficou-me apenas o lenço. O trem afastou-se levando dentro dele nos primeiros vagões o meu primeiro amor, só pude segui-lo com os olhos, febril e contínua, até um pouco antes da primeira curva, quando, em um movimento rápido e regado por um leve tom de irritabilidade e sofrimento, as cortinas azuis se fecharam e o trem por fim sumiu ao fazer a curva, deixando um rastro de poeira na terra e uma mancha de saudade no meu coração.
Acordei assustada, como se tivesse dormido durante aquela lembrança, como se ela tivesse me arrastado de volta àquele dia de sol, àquele trem, a escutar aquelas vozes, ver aquelas cores que tingiam meu coração com a graça do primeiro amor. Hoje tudo era diferente, a chuva, o céu cinza, a atmosfera densa e escura, contrastava com aquele dia de sol que pintou a minha primeira separação amorosa na estação do trem. Agora, estou eu sozinha aqui neste sítio distante, embaixo do pé de laranja onde, em uma noite distante e quente de verão, lá se vão mais de dois anos, foi esta noite um pouco antes do dia na estação, eu amara G., assim o chamavam. Era ainda uma menina, tinha meus dezesseis anos. Naquele fim de semana, meus pais estavam na cidade, se quer o conheciam, nunca chegaram a fazê-lo posto que o mandei embora antes disso, mas namoramos um tempo escondidos e como era divertido, como a cor do perigo, o aspecto do proibido, o sabor da fruta mordida era irresistivelmente doce e livre. Rolei com ele grudado sobre meu corpo ainda tão inocente, o desejo bailando sobre nossos lábios, as folhas verde escuras descendo leves e, de vez em quando, pousando sobre a nossa pele e se encharcando com o nosso suor, o dia era quente, as almas também.
Agora estava eu só, embaixo do pé de laranja, nenhuma folha caía, estava frio, não havia vento, tudo era seco.
Tudo aqui é seco me dizia um homem que trabalhava na mesma estação ferroviária onde eu havia me separado de G. Já se fora um ano desde a separação, e eu vinha passar férias de verão novamente no sítio de meus pais. Naquele dia chovia, quase como hoje, eu descia sozinha e de lá pegaria um carro que me traria até o sítio. Mas o carro atrasara por causa da chuva, segundo me disse o guarda da estação, em quem até então eu nunca havia reparado, estava atolado em lama e não havia previsão de quando sairia de tal estado. Foi assim que fiquei um tempo conversando com o guarda de aparência cansada e solitária, que olhava com um tom melancólico, dia e noite, a estação de trem.
Perguntei se ele vivia sozinho ali, se tinha família, como era o trabalho de um guarda de estação. Ele me respondeu calma e longamente. “Há anos trabalho aqui menina, tenho apenas uma esposa que já não amo, estou com ela apenas porque ficar sozinho aqui no meio do nada, onde as pessoas nunca param apenas passam, seria de todo insuportável demais. Vou me aguentando, quase me arrastando, por aqui nunca acontece nada. Entre a passagem de um trem e outro o silêncio é maior que o de um enterro, o demorar do tempo tão longo quanto um deserto a perder de vista. Nunca vejo rostos diferentes do meu, de minha esposa e do de dois rapazes que aqui trabalham, exceto quando passa um trem e eu espicho a cabeça na direção das janelas abertas na esperança de topar com um belo rosto de rapariga, mas logo o rosto se vai e nunca acontece nada. Por aqui, escuta-se até o barulho do brilho da lua a molhar a terra e, depois de um tempo na solidão, começa-se a conversar com a lua, com as árvores, com a própria mão. É difícil estar no lugar onde as coisas são tão efêmeras como um piscar de olhos, a efemeridade enlouquece e, ao mesmo tempo, o arrastar lacrimoso e preguiçoso das horas desintegra. Não creio que nada de pior possa me acontecer, sempre temi menos a morte e mais a solidão, conheci primeiro a segunda, portanto, já não temo mais nada, espero apenas o próximo trem. “És um homem completamente amargurado e melancólico então”? “Não menina, digamos que, no fundo, gosto de sentar aqui e ficar olhando”. “Olhando o quê?”, perguntei surpresa e ligeiramente ansiosa. “A vida”!
Acordei de mais aquela lembrança, a chuva engrossara, o pé de laranja era remexido violentamente, as folhas e galhos se debatiam contra mim e começaram a arranhar todo meu rosto, e era como se arranhassem e perfurassem as minhas próprias lembranças, fazendo com que delas vertesse um sangue vermelho e ainda vivo, fresco, pastoso. Inconscientemente, levei minhas mãos aos bolsos de minha calça, como a procurar algo que pudesse me proteger um pouco da chuva no caminho de volta pra casa. Tirei de um deles, admirada e surpresa, fisgada pelas cordas do destino, o lenço de G. Aquele que ele me dera quase como prêmio de consolação, sem o saber, há dois anos, em um verão na mesma estação na qual há um ano eu vira a mim mesma em um original e solitário guarda de estação ferroviária.
Não quis cobrir-me com ele, talvez pelo desejo de que nenhuma lembrança de G. se colocasse entre mim e os pingos agora grossos da chuva, assim como nunca quis que uma cortina se pusesse entre meus olhos e a cena do mundo. Saí correndo pela chuva, a viver, completa e menos angustiada no meu estado de existir enquanto coisa ou ser humano, menina ou quase mulher, sabendo que eu não havia conseguido ficar sozinha. Aquele já não era mais um dia terrível.
O lenço branco ficou sob o pé de laranja, já sobre ele várias folhas haviam caído, elas eram da mesma cor que os bordados verde escuros desenhados sobre o lenço branco, mas já não eram as mesmas que outrora se banharam no suor diáfano de nossa juventude e do meu necessário primeiro amor.

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