quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"O segredo dos teus olhos"


Eça de Queirós


E que falem as sutis e emocionadas descrições, o olhar lançado sobre a alma, a alma lançada sob os olhares atentos de quem deita o pensamento sob algumas páginas minuciosamente escritas. E que falem as discussões políticas, as ambições civilizatórias, os sonhos sublimes, a filosofia purificadora, a busca por menos oratória e mais ideia, a vontade de ser livre voando nas asas do conhecimento. E que falem os versos da natureza, a boca do sagrado, os lírios dos passos, a imagem da perfeição gratuita e delicadamente graciosa. E que fale o amor intenso, inexplicável, a dor urgente, o horror irreparável, o êxtase dos corações verdadeiramente apaixonados. E que fale o destino, sua maliciosa rede a beijar os corpos que nela irremediavelmente se enroscam. E que por fim a prosa se faça muda, a poesia absurda, o olhar esplêndido...

Eça de Queirós, escritor português, autor de romances como O crime do Padre Amaro, A Relíquia, O Primo Basílio, dentre outros, em um de seus mais conhecidos romances, Os Maias (1888), constrói uma obra diante da qual todas as outras palavras ficam estupidamente pequenas, tal a grandiosidade e lapidação esmerada de cada frase que ele tatua sobre o papel. Mestre e símbolo do realismo português, o escritor leva tal literatura realista às últimas e extraordinárias consequências quando faz o leitor divagar e desmaiar docemente diante de cenas inspiradas na realidade, tradutoras esmeradas da realidade, mas que a transcendem à medida que se fazem emprestadas do divino, do ideal, do destino. Se o realismo pretende descrever a realidade tal como ela é, fazendo-o de maneira sistemática e absorvente, Eça de Queirós não só descreve essa realidade, mas também vai além dela, inspirando-a com a sua forma de olhar e com a sua forma de contar. As descrições, como não poderiam deixar de sê-lo quando se fala em um escritor realista, são constantes no romance, perpassando-o da primeira à última página e desenhadas, quase esculpidas com um mármore muito fino, bastante delicado e majestosamente límpido. A linguagem por ele utilizada se faz absolutamente diáfana, lírica, intensa, marcando um estilo meticuloso e denso, em que a prosa bebe da poesia e a poesia ilumina a prosa. É literariamente lindo!

Complemento o estilo denso, descritivo e a linguagem eternamente a desabrochar, o enredo e os fatos que compõem a narrativa de Os Maias são por si só um atrativo incrível. A história gira em torno de uma tradicional e rica família portuguesa, cujos personagens principais são o avô, Afonso da Maia, rígido quanto aos princípios, de uma ternura quase pueril e, como é no livro às vezes descrito, semelhante a um mármore branco e fino. O filho de Afonso, Pedro da Maia, homem ardente e apaixonado, cheio de impulsos generosos que se mata depois de ser abandonado pela esposa, Maria. Do casamento de Pedro com Maria nascem dois filhos, Carlos e Maria Eduarda, separados ainda nos primeiros anos da infância quando Maria, ao fugir, leva consigo a filha ainda pequena. Dada como morta, Maria Eduarda é, com o passar dos anos, esquecida, até que o destino a coloca, doce e suavemente, cravada no olhar e no seio do coração apaixonado e sonhador de Carlos. Os dois se apaixonam e se entregam a uma paixão incontrolável, indomável, maior que a própria alma, destas que não acontecem duas vezes na vida de uma mesma pessoa. Como diz Eça de Queirós, Afonso da Maia se vê assim diante de “um implacável destino que, depois de o ter ferido na idade da força com a desgraça do filho, o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto”. Como já dizia Tolstói em Anna Karienina , “As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Esta, que é uma das aberturas literárias mais famosas da literatura russa, se aplica perfeitamente à história da família Maia. Estes são felizes e nisto se parecem com tantas outras famílias ricas e tradicionais, mas são surpreendidos pela malícia reta e grave do destino, por seu incontornável sortilégio, por aquilo diante do que os homens tornam-se de repente pálidos e mudos. Horrorizados, violentados, roubados de si mesmos, suspensos em relação à própria alma. Nos sofrimentos, a família Maia tem também a sua beleza, a sua essência, a sua arte, assim como tantas outras famílias que sofrem cada uma à sua maneira, respondendo ao seu destino. De todo, as desgraças não descem em todos os lugares, quem saberá as regras e normas do destino? Talvez elas escolham os mais fortes, os mais essencialmente originais ou talvez sejam apenas capricho aleatório, ou castigo planejado, talvez...

Na literatura são muitos os “talvez”, mas na boa literatura são muitas as certezas que produzem glórias. Em Os Maias , o que seria uma simples e novelística historieta de amor entre um homem e uma mulher que, mordidos pelo destino, se descobrem irmãos e em razão da evidência incestuosa se separam feridos e desintegrados de corpo e de alma, vai muito além disso, já que a belíssima e trágica história de amor entre Carlos e Maria Eduarda é entremeada por elevadíssimas discussões políticas, filosóficas, econômicas, sociais e artísticas. Eça de Queirós faz uma análise em seu romance da decadente burguesia portuguesa, a expõe no que esta tem de mais mesquinho e medíocre e, ao mesmo tempo, levanta discussões sobre a arte, valoriza a poesia, a beleza, as ideias, as lutas maiores e justificadas por uma sociedade menos superficial e vazia e mais poetizada, bela, inteligente e, se ainda não for muito, regada por uma fina réstia de ternura e generoso amor. Eça de Queirós moldura um belo quadro no qual se vislumbra perfeitamente um amor sincero, indomável, enlouquecedor e, essencialmente, fraternal, com a secura que habita o seio da sociedade e com o clamor urgente e inadiável por “civilização”, resvalando naquele que seria o sentido da existência humana.


Carlos e Maria Eduarda, interpretados por Ana Paula Arózio e Fábio Assunção na minissérie Os Maias, da Rede Globo


Pérola do realismo, uma das chaves-interpretativas para esse romance pode ser a social e também a psicológica, mas as possibilidades de entendê-lo são infinitas, embora os elementos principais de Os Maias sejam a personalidade humana - seus amores, dores, frustrações, angústias e sua incrível limitação diante do destino – e o complexo tecido social no qual ela encontra-se encravada.
Unindo linguagem impecável, narrativa inteligente e original, estilo denso, personagens sólidos e bem construídos, Eça de Queiróz ata em Os Maias as duas pontas do ser humano e do meio no qual ele vive, aquilo que há de mais belo e sublime e aquilo que há de mais indisfarçavelmente horrendo e rastejante. Uma obra rara, um presente gratuito entregue aos olhos, instantes de loucura, de devaneio, de saudade...

De uma coisa não resta dúvida, se Eça de Queirós diz ter decidido não fazer um romance, mas fazer um romance em que pusesse tudo o que tem, a nós, anestesiados por suas letras, não resta outra escolha senão colocarmos tudo o que temos na leitura deste livro, o que de fato fazemos, mesmo sem o perceber, inconscientemente. Quando nos damos conta já estamos todos dentro do livro, habitando as janelas tristes e tímidas do Ramalhete, chorando melancolicamente lágrimas soltas e nostálgicas ao lado de Carlos e Maria Eduarda, ouvindo as poesias declamadas nos saraus literários nas quais se sonha e se constrói em versos uma democracia branca, regada por paz e arte. Em outras palavras, não há como entender um realismo tão abismático se não nos rendermos ao interior do livro, colocando tudo que temos em suas entrelinhas disfarçadas, tudo aquilo que temos de mais enfadonho e covarde e também tudo aquilo que ainda temos de mais apaixonadamente sincero e belo!


À porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele, pela derradeira vez na vida, viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à portinhola daquele vagão que para sempre a levava.

Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e descompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.

- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida: a paixão.

(trechos extraídos do romance Os Maias, de Eça de Queirós)

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