sexta-feira, 23 de outubro de 2009

"Nós que aqui estamos por vós esperamos"






Se você tivesse que contar a história do século XX como faria? De quais elementos se utilizaria? Como combinaria esses elementos de modo a ampliar a produção de significados e despertar os mais diferentes sentidos e sensações?
Como falar de um século no qual aconteceram duas grandes guerras mundiais - conflitos bélicos que produziram todo o seu saldo de dor, morte e sofrimento ao lado de cenas únicas, encontradas acima de qualquer descrição que se pretenda objetiva.

Como falar de um século no qual as mulheres passaram a ter outro papel na sociedade, no qual as grandes metrópoles se constituíram, o mundo foi apresentado às novas mídias e tecnologias, o modelo industrial conheceu o seu auge, o conhecimento ultrapassou barreiras, sonhos já eram interpretados e o nosso inconsciente era posto a prova com Freud, as artes conheciam Picasso e as possibilidades de novas tendências na forma de representar o mundo e traduzir em cores e formas na tela a angústia do homem moderno. Como falar de um século que conheceu outro sistema de governo, uma alternativa ao capitalismo que prometia mais igualdade e justiça social: o socialismo.



Como dizer de um século no qual o mundo se dividiu em dois no contexto de uma guerra ideológica, um conflito que se dava de maneira indireta e se estendia a todas as áreas do conhecimento humano: a Guerra Fria. Como falar da construção de muros e da destruição destes, como falar de guerras regionais que só serviram para aumentar o poder e a influência de poucos, aumentando por efeito a pobreza e miséria de muitos. Como falar de um século de sonhos, ideias, poesia, arte, música. De um século que transpôs seus limiares mais imperceptíveis e se fez decisivo para o mundo como o conhecemos hoje.

O grande desafio de Nós que aqui estamos por vós esperamos, filme dirigido por Marcelo Masagão em 1998, é justamente falar do mundo e do homem do século XX. A questão é o caminho que o documentário percorre para falar dele, um caminho no qual o que se percebe claramente é a presença de um uso híbrido da linguagem e dos signos e, neste caso, está implícito todo desafio que se processa para que a hibridrização se materialize no gênero documentarista à medida que este trabalha, acima de tudo, com a tênue e fina fronteira entre ficção e realidade.



A opção que se faz em Nós que aqui estamos por vós esperamos é por uma espécie de vídeo arte. Ele é uma espécie de documentário que foge aos padrões convencionais e é por isso que chama a atenção. Primeiramente, se estrutura com imagens de arquivos, extratos de documentários e de algumas obras clássicas do cinema, até aí nada de novo. A questão é que o uso das imagens não se dá de forma isolada, ela se combina com os acordes de uma música melancólica e emocionante, que marca seus compassos com bastante precisão na alma de quem a ouve.

Além da música, as imagens são associadas ao texto, um dos elementos em semiótica que faz com que a imagem adquira novos significados e, portanto, conote. Mas não se trata de qualquer tipo de texto, os textos utilizados são demasiado poéticos e resgatam valores próximos de cada um de nós. O silêncio também é usado de forma perspicaz ao longo do filme, há momentos em que a música cessa por completo como que a pedir no silêncio um pouco de reflexão sobre o que se está vendo. Ou seja, até aqui percebemos que vários sistemas modelizantes são utilizados para compor essa linguagem híbrida de Nós que aqui estamos por vós esperamos.

Mas, talvez, o elemento mais essencial neste filme seja o tipo de história utilizada para contar alguns episódios que marcam o século XX. Fica clara a preocupação com a humanização do relato que se faz por isso mais próximo, toca em cada um que vê, faz com que os olhos de repente se surpreendam marejados de lágrimas. Isso acontece porque o filme trabalha aquilo que é humano, as dores, os pequenos sonhos, hábitos e as singelas felicidades de cada um deles, que também são as singelas dores e felicidades de cada um de nós, daí essa ligação, “nós que aqui estamos por vós esperamos”, o ‘nós’ de hoje se liga ao ‘eles’ de ontem pelos sonhos, dores e tons,além da ideia de morte que também está implícita, afinal, nossos signos ainda são os mesmos e nos compõem em sutilezas, pequenas frases, como se elas se combinassem e se interpenetrassem com tamanha beleza estética e humana que chega a emudecer.


Nós que aqui estamos por vós esperamos é uma aula de história do século XX, mas, acima de tudo, é uma aula sobre a vida, uma homenagem a cada homem que com seus sonhos e medos fez o século XX. Ao contrário de livros acadêmicos que privilegiam os fatos ao falar da história, este documentário privilegia o homem, aquele que de fato escreve a história, são dele as honras, conquistas, glórias, perdas ou derrotas. E, afinal, nada como o homem para contar a história do próprio homem em certa época.
Nós que aqui estamos por vós esperamos são signos, signos e mais signos, que constroem, desconstroem, compõem, aproximam e investem em todas as suas possibilidades de significação, na composição de uma semiosfera. Realmente, o mundo todo é signo, o signo, assim como o homem, é meio, processo, devir...

E como ele produz o belo, o diferenciado!
Como dizia Nietzsche sobre o ato de escrever, “escrever é traduzir a partir daquilo que se conhece o que não se conhece”. No caso de Nós que aqui estamos por vós esperamos, se escreve por meio de signos de modo a produzir um filme que existe nos abismos, nas zonas essenciais humanas e que bebe das entranhas da sua alma enquanto documentário híbrido, da alma deles do século XX, e da alma de cada um de nós.

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