sábado, 10 de outubro de 2009

Cela vermelha - 1º parte


Há dias tenho estado sozinha. Fechada pelas lembranças e pelas paredes desta prisão cinza que tomou posse do meu corpo e dos meus sentidos. Os dias aqui são longos, demoram a passar, consigo ler vários livros, dormir quanto tenho sono e até quando não o tenho, posso parar e ficar olhando um ponto que também para mim se volta e me interroga.

Por vezes escuto sons, mas hoje eles estão particularmente quietos, o silêncio está mais silencioso, profundo, denso, quase que diáfano. As paredes já grossas hoje parecem ainda mais grossas, de vez em quando sinto que elas conversam entre si, comunicando por entre as pedras o seu frio e gelado desespero, mas até as pedras da parede estão tão quietas e estáticas que sequer delas se ouve um disfarçado rangido.
Na cela vizinha uma moça jovem chamada Carmem gosta de escutar um tipo de música que se parece com samba, acredito estar entre o samba e o pagode, não o conheço muito bem, escuto apenas porque antes ela o escuta e acabo eu por aqui a ouvi-lo um tanto desgostosa.

Sei pouco da vida de Carmem, aliás, aqui todos sabem pouco de todos, vivemos separados por uma simples parede e é como se vivêssemos separados por um longo oceano de friezas e superficialidades. O que sei é apenas o seu crime, o motivo pelo qual a condenaram e que tampouco julgo justo ou injusto. Antes pensava sobre o mundo e suas coisas, agora minha mente está fatigada, pessimista e desanimada. Mas, enfim, Carmem assassinou o próprio pai quando este tentou violentá-la em uma noite de sábado quando chegava bêbado em casa. Vi seus olhos apenas uma vez e já me pareceram tão profundos e tristes que nunca mais deles me esqueci. Seus olhos são negros como seus cabelos e seu corpo é magro, parece carregar as lembranças do cansaço e da angústia dessa vida. Olhos cinza, como as paredes que o abraçam.

Do outro lado de minha cela vivia Sócrates, um velho com nome de filósofo, contou certo dia para ele mesmo que sua mãe ouvira esse nome uma única vez e dele se fizera quase que apaixonada, prometendo colocá-lo no primeiro filho. O primeiro pelo que sei de escuta nasceu morto, mas o segundo herdou a paixão da mãe e o conhecimento do primeiro que assim se chamou. O Sócrates meu vizinho de cela era um velho interessante.

Adorava falar sozinho, falava consigo mesmo, com a parede, com as pedras que formavam sua parede, pedras que ele sabia não só quantas eram, pois já as havia contado mais de um milhão de vezes como também que tinham um nome, todas ganharam nomes de flores. Além de serem formadas por pedras que tinham nomes de flores, as paredes de Sócrates eram vermelhas, não cinzas como as minhas e a de todos os outros. Ele as pintara em um dia no qual cantara e recitara versos formados em sua cabeça aleatoriamente, alucinadamente. De sua cela, Sócrates dizia perfumada e, por isso, sua presença ali era menos sofrida e mais provida de beleza e cheiros originais da natureza, além do tom vermelho.

Hoje, Sócrates não falara nenhuma vez, não o ouvira dar conselhos às pedras, tampouco para si mesmo, não o ouvira recitar verdades por ele postuladas ou mentiras por ele enganadas. Tampouco o ouvira falar da beleza. Todos os dias ao meio dia, Sócrates falava da beleza. Este era um momento único de nossa longa eternidade diária. Todos, de repente, paravam seus monólogos e gestos solitários para ouvi-lo recitar as belezas do homem, as belezas do céu, do inferno, deste mundo e do outro, era como se ganhássemos a liberdade por meio do contato com uma sombra do belo e era esse o desejo de Sócrates.

Para ele, apenas a beleza cantada e contada poderia libertar o coração dos homens. O que mais me chamava a atenção em Sócrates era justamente o fato de ele estar fisicamente preso, mas se dizer livre. Nunca vi seu rosto, posto que quando cheguei por aqui ele já estava e de sua cela nunca saía, nem para comer, tampouco para tomar um banho de sol. Nunca vi ninguém lhe levando comida, de fato não sabia como ele sobrevivera já por este modo por tanto tempo. Todos diziam que ele era louco, a prisão e o limite das paredes o teriam enlouquecido, mas eu, sinceramente, acreditava ser ele o mais lúcido de todos que ali condenados à solidão se encontravam.

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