quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Cela vermelha - 3º parte

Cela Vermelha Parte 1
Cela Vermelha Parte 2


As dores na prisão sempre foram assim. O outro sofria sozinho, calado, o sofrimento era problema de cada um.
A mulher que cuidava do nosso pavilhão, particularmente horrorosa, de traços frios e grossos, corpo redondo e movimentos firmes, dizia que o nosso sofrimento era pouco e servia para redimir os tantos sofrimentos que lá fora aos outros havíamos causado. Ela não gostava de Sócrates apenas porque este lhe dizia do prazer e da inveja que se nutre do sofrimento dos outros, ser o sentimento de seres essencialmente cruéis, seres que se preenchem de uma inveja que pisa no território da demência por ser uma inveja não da felicidade, mas da dor alheia.

O silêncio já voltara a reinar nestes cantos cinzentos de cá, Carmen parou de gritar, como todos faziam depois de crises e espasmos pelos outros ignorados. Ao certo, deveria estar encostada na parede sendo segurada por esta, com os cabelos atrapalhados e a face molhada de suor e saliva.

Imaginava-a assim, pois era exatamente assim que eu me encontrava.
Estava desistindo da vida, pela primeira vez me reconheci como uma mulher absolutamente só e percebi meu mundo como um mundo sem sentido, onde nada mais me interessava a não ser os ruídos esporádicos do tempo destes sujeitos quase cinzas, para quem o tempo demorava a passar e insistia em não anistiar.
Neste instante veio a minha mente quase que inconscientemente a voz do Sócrates dizendo que a vida é bela não na liberdade, mas no conhecimento, dizendo que o sentido não está no mundo, mas dentro de cada um, dizendo que a solidão não é dos males o pior, posto que a solidão desperta as loucuras mais sadias e eternas.

E quase que no mesmo instante, como uma espécie de eco ou premonição, sonho ou delírio escutava fora de mim as vozes de Sócrates que estavam outrora dentro de mim. Ele gritava como nunca antes gritara, sua voz deixava transbordar uma dor, uma dor de morte, de potencialidade, de desejo. A mulher do nosso pavilhão apareceu a passos rápidos, sem demonstrar preocupação, e ao parar em frente à cela de Sócrates gritou:
- O homem louco da cela que é toda pintada de vermelho está sendo devorado pelas abelhas, elas invadiram a prisão, estão devorando seu corpo todo, começando pela sua boca, parece que saem da sua boca.

Foi quando me tornei gélida, branca, arrepiada e desejosa da morte como nunca antes a desejara. Antes de entregar-me ao devaneio eterno lembrei-me apenas destas palavras, últimas e intensas. “Vivamos com amor companheiros, amor e beleza, só estes podem salvar o homem de si mesmo”. Lembrei-me destas palavras proferidas por um homem que vivia em uma cela vermelha, enquanto todas as outras eram cinza, e era conhecido por Sócrates, do qual herdara a retórica talentosa, gratuita e eterna, retórica que atraíra as abelhas que antes naquela cela entravam para embriagar-se do pólen das flores, a formar em traços de pedra as paredes de sua cela, e agora queriam beber do mel de sua palavra, mel que brotava de sua boca - doce e malicioso. Agora deliro só, penso, recordo e despejo palavras de um outro que aqui não mais está para escutá-las, para escutar-me.


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