domingo, 17 de agosto de 2008

Kafka de ontem, de hoje, de sempre

Certas curiosidades me foram reveladas pelo suplemento Mais!, do jornal Folha de S. Paulo do dia 10 de agosto de 2008. Nele, li uma reportagem revelando um outro lado da personalidade de um dos principais escritores do século XX, Franz Kafka. A matéria discorria sobre a existência de uma coleção de revistas eróticas pertencentes ao escritor tcheco de língua alemã, que só venho à tona publicamente com a publicação, no Reino Unido, de um livro do pesquisador James Hawes de nome “Excavating Kafka” (Escavando Kafka). O objetivo do pesquisador seria desmistificar a imagem de Kafka, que sempre foi visto como uma figura solitária, oprimido pelo pai e incompreendido pela maioria, aquele que anteviu o holocausto e foi capaz de escrever com uma magia e sutileza únicas para o seu tempo e época. Kafka, de acordo com essa nova biografia, seria na verdade um filho de milionário e viciado em prostitutas, um escritor apoiado e admirado por muitos de seus colegas escritores. Esta nova visão do escritor só teria sido possível a partir da descoberta do baú misterioso no qual ele guardava sua coleção de revistas, com certeza, porque a partir delas Kafka e sua vida passaram a ser vistos de outra maneira, com menos idealização e mais realismo. A descoberta se faz importante, pois com ela talvez, finalmente, nós consigamos entender de fato a literatura de Kafka pelo que ele realmente é, e não por essa imagem obscura e problemática que se associou a ele. Se Kafka fosse mesmo alguém ligado aos prazeres sexuais, isso explica em parte o fato de muitos de seus textos apresentarem, até certa fase de sua vida, uma dimensão lúdica e um gosto por situações fantásticas, o que fica evidente em A Metamorfose, na qual uma situação absurda e até assustadora é explorada ao máximo. Para entender a obra de Kafka é preciso, antes de mais nada, entender a própria vida do autor. Até a I Guerra Mundial Kafka tinha uma visão mais lúdica da literatura que deixou de existir quando a guerra terminou e a doença que o matou foi descoberta (tuberculose). A partir daí, os textos de Kafka tornam-se mais concisos, ainda mais abstratos, parecem transmitir a sensação de alguém que só tem o que lhe sobrou para viver. O romance símbolo desta nova fase é o inacabado O Castelo, nele Kafka fala de perdas sem desespero, fala das próprias perdas sem desespero.

Em minha opinião, já que é de Kafka que falamos aqui, acredito que em um de seus livros – O Processo – a personalidade de Kafka fica marcante e evidente. O personagem central do livro, Josef K. , faz coisas que nem ele mesmo entende, diz algo, mas a sua ação não corresponde ao que ele pensa e fala. É um personagem que pensa muito, imagina situações. Assim é Kafka, o escritor ficou conhecido por ter uma imaginação cinematográfica, ou seja, ele pensava com imagens, encontrava imagens para expor o que sentia, lutava contra o fluxo incessante e constante destas. Na narrativa de O Processo fica clara a existência de instâncias superiores, às quais não se tem acesso direto, sendo estas, portanto, fontes de pesadelo e medo para o personagem central. No livro, esta instância corresponde aos anais da justiça, ao funcionamento complexo e à atmosfera sufocante de um lugar para o qual o personagem central não tem acesso em nenhum momento do livro. Esta instância superior corresponderia ao inconsciente humano, à experiência fundamental e superior. O Processo é uma obra fantástica, vai além do que parece, revela - nos uma atmosfera abstrata que marca o conjunto da sociedade capitalista atual e, deixa claro porque Kafka exerce uma fascinação tão grande entre seus leitores geração após geração. O livro delineia o traço mais moderno e realista de sua obra: a administração das massas. Controle este que só é possível devido à fascinação por Kafka. Ela decorre do fato de que ele formulou a experiência humana em seu nível mais fundamental e instintivo, deixando claro o lugar-comum da condição absurda moderna, do estar entregue a mecanismos de controle invisíveis. Por isso tudo, O Processo é uma das obras que melhor resume Kafka, um Kafka que, definitivamente, não deixa de ser o Kafka só porque possuiu uma coleção de revistas eróticas e não foi a alma oprimida, incompreendida e solitária que se criou, aliás, o Kafka de agora é bem mais interessante, posto que parece mais humano, embora o verdadeiro Kafka, nem o de ontem, nem o de hoje, mas, o eterno, seja um completo mistério, cheio de fantasias, delírios e suposições, como sempre se apresentaram as suas obras!

Kafka à direita

2 comentários:

M... disse...

Kafka era especial. Por ser um cara triste e angustiado, conseguia passar em seus textos todo tormento que o rodeava.
É uma pena que ele tenha destruído muitos de seus textos por causa da depressão.

João Solimeo disse...

Estou devendo a mim mesmo ler (ou reler) mais Kafka.

Hmmm... não sei se a suposta descoberta de que Kafka se interessava por sexo muda tanto assim a imagem que se tem dele.

(gostei do blog, lerei aos poucos)