terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Evangelho segundo Saramago

Adaptação teatral de O Evangelho segundo Jesus Cristo, em São Paulo, 2001

Jesus caminha pelo deserto na companhia de alguns pensamentos, outros ou os mesmos sonhos, lembranças e frustrações. Caminha entre o silêncio estático do universo, entre a força potencial da natureza, diante da infalibilidade de um destino a se cumprir.
Aos poucos vai protagonizando as cenas da história de um homem que foi dito “filho de deus” e messias, portador da boa nova, dos novos tempos, da era de paz e prosperidade, um reino que estaria aberto para os que de seus pecados se arrependessem e de deus esperassem o perdão purificador e renovador. Eis a história contada a mais de dois milênios, perfeitamente construída em seus detalhes, discursos, mensagens, pressupostos e subentendidos. A história de um homem capaz de curar os males, fazer sarar as feridas de dentro e de fora, fazer andar aquele que já não se movimenta, fazer ver aquele que já não enxerga, fazer brotarem peixes do fundo do mar e parar tempestades vindas do céu. Eis o homem que nasce e morre crucificado, para a redenção dos demais, para a glória de seu pai e para o “bem de toda humanidade”.

Os traços expostos nestas linhas tecem os fios de uma história já contada muitas vezes, por milhares de vozes, em milhares de anos, a história sobre a qual se funda o poder da igreja católica e do deus, protetor e acolhedor dos homens tão cheios de pecados. A história do “filho de deus” já é demasiado conhecida, no entanto, o que se sabe é a versão oficial, o que se conta, o que se continua e o que encontra eco em cada lugarejo deste mundo onde exista um homem em pé, falando ao demais, estes sentados ou ajoelhados, quase sempre de cabeça baixa e atenção tão estática quanto fugidia. O que se conhece e se repete é a versão dos vitoriosos, como acontece com grande parte da história da humanidade. Até que, um homem metido a brincar e embelezar as palavras, decide por meio de uma prosa tão bela quanto inteligente e poética, recontar a história que a milhares de anos nos é repetida de forma frenética e, ao mesmo tempo, ensurdecedora. Decide recontar essa história deixando pra trás a grandiosidade do simbólico, a abstração do miraculoso, a lógica do imagético, recorrendo apenas à simplicidade e essência das histórias que são essencialmente humanas, por acontecerem na terra e envolverem homens comuns, iguais a qualquer outro, com as mesmas aflições, os mesmos medos, os mesmos desejos, os mesmos sonhos, as mesmas incoerências.


José Saramago

José Saramago, escritor português, único escritor de Língua Portuguesa a conquistar um Prêmio Nobel em Literatura, autor de tantas belíssimas obras como Ensaio sobre a Cegueira, Memorial do Convento, A Caverna, A Viagem do Elefante, dentre outras, é o homem que se propõe a recontar a história do filho de deus, e o faz com tal maestria, apuro e trabalho de linguagem que torna possível que uma história tantas vezes já contada se torne tão surpreendente como se fosse a primeira vez que a escutássemos.
Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago conta aos homens a vida de outro homem e fala de história, vida, perdas, lembranças, destino e morte. Localiza a história no tempo e no espaço, descreve lindamente e de forma emocionada e sonora os lugares, a imensidão do deserto, a pequenez de uma casa, constrói as personagens de forma real e humanizada, ou seja, bem diferente da imagem revestida de santidade e simbologia que sempre se conheceu.

O Evangelho segundo Jesus Cristo se faz original desde as primeiras linhas. Maria é uma mulher comum, trabalhadora, corajosa, que ama e sucumbe a paixões como qualquer outra mulher. Dessa forma, ela não é mais aquela mulher virgem que engravida do espírito santo. Jesus e seus outros filhos são todos frutos de relações sexuais, tão ou mais lindas e puras do que a presença do espírito santo. Saramago vai desconstruindo em sua obra, um a um, todos os dogmas, preconceitos, moralismos e contradições sobre os quais se assenta a religião católica e a própria história de Jesus. Ele mostra um Jesus atormentado por pesadelos, inebriado por sonhos, cheio de dúvidas, desejos latentes da carne e do espírito. Um homem inteligente e perspicaz que, nunca se cega totalmente em relação ao poder que por deus lhe foi atribuído.




E assim, Saramago constrói o enredo de uma história que se escreve por meio de uma linguagem poética, esteticamente rica e bela, carregada de analogias, figuras de linguagem, metáforas, ironias e personificações, em meio a uma prosa densa, porém sonora, um estilo difícil porém completo, que se faz inteligente e audacioso em cada linha, que se surpreende e se interroga, ao mesmo tempo em que surpreende e interroga os olhos de quem pelas suas linhas passeia, por horas marejados e anestesiados.
Ao mesmo tempo, Saramago explora períodos de descrição que se fazem mais do que belos. Sua capacidade descritiva, imaginativa e associativa é tão grande, clara e exata que é como se nos sentíssemos caminhando pelo deserto ao lado de Jesus, como se sentíssemos a euforia de um milagre realizado, como se compartilhássemos nós também do pão e do vinho multiplicado, como se nossos punhos e pés também fossem perfurados e nosso ar fosse aos poucos faltando enquanto nosso espírito junto ao dele vai aos poucos se asfixiando, mas no nosso caso, asfixiando-se pela linguagem realmente literária e pela história tão bem dita quanto reinterpretada.

Difícil definir uma chave interpretativa para o livro de Saramago, acima de tudo, ele pode ser entendido por meio de uma chave interpretativa sociológica, histórica ou até religiosa e moral. No entanto, é fácil perceber como o autor desconstrói uma história que se consolidou ao longo do tempo não simplesmente pelo prazer de desconstruir e sim pelo desafio de construir uma verdadeira história, mais coerente, mais impregnada de humanidade, realidade e, por tudo isso, mais bela.
A narrativa começa descrevendo a cena da morte de Jesus, o final derradeiro para o qual já sabemos que ele caminha desde as primeiras páginas. O fato é que mesmo sabendo do fim, o meio deste evangelho se faz atraente porque recontado diante de uma nova perspectiva, um meio que além de novo, se sustenta e prende o leitor até as últimas linhas em razão da qualidade, refinamento estético, apuro e cuidado no relato.


Majoritariamente, a narrativa vai se tecendo linear, os diálogos (como já é típico de Saramago) seguem soltos em meio às entrelinhas do relato, dizem algumas palavras que das entrelinhas se sobresaem e escondem tantas outras dentro delas.
Como qualquer romance que se faça realmente bom, o percurso narrativo de O Evangelho segundo Jesus Cristo, tem seus ápices e seus momentos de devaneio e reflexão. Um dos ápices da narrativa, diz respeito ao sensacional diálogo que se estabelece entre deus, o diabo e Jesus. Tal diálogo é extremamente original a começar pelo lugar em que acontece. As paredes que o protegem são formadas por uma neblina que envolve os protagonistas em uma áurea mística e assombrada. O chão, na verdade, está a metros de distância dos seus pés, eles conversam sobre o mar, tão distantes da terra quanto do céu. Para não ficar apenas no lugar, o tempo do diálogo é bastante ilustrativo e pertinente. Deus, o diabo e Jesus conversam durante quarenta dias envolvidos pela neblina da qual já falamos, tão espessa que apenas em poucos pontos se faz transparente, que só se desfaz da superfície do mar quando o diálogo por fim termina e os seus protagonistas de dissolvem no mistério que envolve todos nós.

O fato é que neste diálogo, Saramago emprega toda sua maestria e habilidade literária para revelar um deus ambicioso, sedento por poder, glória e dominação, um deus que não mede esforços em provocar sofrimento, em derramar sangue e lágrimas, em despedaçar almas, tudo em nome de um poder que ele precisa ter para sua própria glória e redenção da humanidade. Além disso, esse deus se revela em toda sua frieza e ambição quando é tentado pelo próprio diabo, quando este, em uma tentativa de poupar a humanidade de todas as mortes e desgraças que virão, propõe negar sua própria existência, extinguir-se enquanto mal para que a humanidade viva em paz. O fato é que deus, neste momento, legitima o mal, afirma ser este necessário e vital para a sua existência e para a expansão de seu poder. Sem o diabo, deus não teria sentido, sem o mal o bem não existiria e, portanto, deus, aquele que prega pela paz, pelo bem, pela harmonia entre os homens, é o primeiro a legitimar a existência do mal, da fome, da guerra em um misto de soberba e contradição.

Esse é o deus que Saramago nos faz conhecer por meio de um novo evangelho, que não sabemos se certo ou errado, mas que, no mínimo, é mais coerente, humano e próximo das coisas da terra, dos seus desejos e das suas securas morais.
A principal lição que fica deste evangelho, além de um exemplo de como se construir literatura e de como trabalhar a linguagem da forma mais bela e emocionada possível, é a percepção e consciência de que algumas histórias se fabricam em seus pequenos detalhes e pormenores, de que alguns homens são construídos para serem heróis, mas não passam de homens como qualquer outro, de que um ser supremo que diz proteger e zelar por todos os demais, sempre acaba sendo seduzido pelo poder de seduzir a humanidade, sempre acaba abusando desse poder, sempre acaba sendo autoritário e, por vezes, mesquinho demais. Se existir um deus, com certeza, ele não é esse deus que a nós nos é apresentado sem que de sua imagem nunca sequer tenhamos nos aproximado e sim um deus muito particular, que é diferente e único para cada um de nós, para cada sofrimento, para cada sonho. Um deus que pode existir na beleza de um deserto, de um céu tingido pelas cores do escurecer, que poder falar pelo choro de uma criança, pelo riso de qualquer pessoa, ou pela lágrima sincera e emocionada que da banalidade destoa. Um deus que pode existir nas belas palavras contadas por Saramago, um deus que não controla ou dita regras, que longe de saber de tudo e ter a capacidade de perdoar, busca, acima de qualquer outra coisa, perdoar a si mesmo e reconhecer-se como essa espiritualidade, essa coisa que existe, paira no ar e não conseguimos explicar, essa coisa que às vezes é destino e às vezes é apenas vontade.

Por fim, o grande e último lance de Saramago neste livro é substituir a frase, talvez a mais dita e repetida no mundo, Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem, pela frase, Homens, perdoai-lhe, pois ele não sabe o que fez.
Diante da exatidão e do impacto dessa nova construção de Saramago, absurdamente inteligente e fantástica, fica claro de quem seria a culpa (se é que existem as culpas), demos agora a César o que é de César, peçamos aos homens que perdoem a deus e não mais a deus que perdoem aos homens, (leia-se romanos).


Nos momentos finais de o Evangelho segundo Jesus Cristo, Jesus vai morrendo e sonhando com os momentos em que conversava com seu pai – José, carpinteiro, homem, morto na cruz por engano – no vilarejo de Nazaré, e não com aquele que a humanidade diz ser seu verdadeiro pai – deus, divino, portador de todas as verdades e toda sabedoria, eternizado por um homem que também morreu na cruz por engano.
E eis que, nas palavras derradeiras, surge o diabo para recolher o sangue do filho de deus.

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