sábado, 5 de dezembro de 2009

A música

A sombra do seu corpo se desenha sutilmente na parede, sozinha e bem maior que ela própria. Lá fora uma bela música ecoa, alta, diáfana, quase que desesperada. A música vai atingindo a alma da moça dentro do seu quarto solitária. As letras e palavras ditas são belas, confundem-se com as lidas, perdem-se com as que até outrora jaziam adormecidas, ansiosas por serem descobertas.
A beleza do som se faz aparente e enigmática, tal como todo beleza insinuante que provoca tantos medos e resvala no coração selvagem e primitivo de cada um que de coragem se nutre ao dispor-se em um rompante a olhá-la. Olhar sem traduzir, olhar buscando embriagar-se da beleza que assusta o homem e insiste em desabrochar mesmo nas terras mais secas, nos horizontes mais improváveis. Eis a beleza que insiste em se desenhar sob tantas formas, olhares brilhantes, testas pensativas, bocas vermelhas e desenhadas por um leve e preciso sorriso, face marcante, doce, portadora de sofrimento ou nostalgia, sonhadora ou de todo impregnada de pura melancolia.
De dentro do quarto era como se a música de unisse às paredes, as pusesse em movimento, as entregasse a um completo êxtase. A essa altura o coração dela já era puro delírio e compartilhava do silêncio da noite pra gritar mudo todo seu alucinado desespero. A noite era escura e envolvente, sombria, portadora de sonhos e dramas, tal como a música que a seus ouvidos chegava mesmo que ela não a quisesse escutar, mesmo que ela lhe trouxesse lembranças cruéis e inevitáveis, mesmo que ela lhe fizesse percorrer uma caminho semeado pelo terror e pelo medo mais permanentes e mais imobilizadores, diante dos quais todas as certezas fogem, todo equilíbrio se esvai, toda razão torna-se terrivelmente vã e insuficiente. A música ali, naquela noite, naquele quarto, era só aflição. Era como se ela repartisse os últimos minutos de uma vida que se esgotava, se esvaía, se espremia, se desintegrava. Por fim, ela adormeceu, envolta por uma atmosfera embaçada e sonhou. No limiar do sonho era como se caminhasse rumo a uma condenação exata e irremediável. No devaneio, ela deslizava por um caminho de árvores, mas sabia que ao chegar à última seu corpo se expiraria em mil pedaços, cada um voando para outros ares.
Esse caminho por entre as árvores duraria exatos cinco minutos. Os dois primeiros seriam destinados a pensar nas outras pessoas que pela sua vida haviam passado e com elas dialogar, os dois próximos seriam reservados para reflexões subjetivas e o último para olhar por uma última vez o mundo que se avistava ao seu redor - ressabiado e lindamente costurado. E no trocar de pés, pensava em como não há tortura maior que dividir os últimos minutos que restam de uma vida, em como não há morte mais dura que a morte certeira e rápida, já que na lenta ao menos há esperança em cada golpe que passa.
Nos delírios do inconsciente quando ela por fim sumia, seu corpo de despedaçava ao som dos pássaros que cantavam a mesma melodia que ela estática e pensativa ouvira minutos antes, encerrada nas paredes verdes de seu mundo tão grande quanto a extensão de seus mais improváveis sonhos. E a sombra permanecia fiel ao seu corpo, encravada na parede, parecendo tecer um movimento de aumento, ficava maior bem delicadamente, até que de súbito também explodira. Em um só movimento a sombra se desintegrara no ápice da música, no abismo do silêncio que por trás dela habita as madrugadas.
A alma se fora para outras paragens. Deitado ali na cama jazia um corpo, mais nada!

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