domingo, 27 de dezembro de 2009

Abraço


Um dia para remexer nos guardados, tirar daqui, colocar ali, desfazer nós, encontrar saudades, resgatar lembranças, esvaziar os espaços, ir, aos poucos, preenchendo a alma.
Assim o fiz hoje e acumulei mais sacolas do que esperava. Separei tudo com carinho e cuidado pensando nas meninas que usariam algumas roupas que foram minhas outrora e comigo passaram alguns momentos a olhar certas cenas com uma sofreguidão às vezes nem sempre aparente ou com uma desconfiança nem sempre prudente, uma advertência, um aviso, uma bela surpresa ou uma íntima emoção. Agora, ganhariam elas as formas de outro corpo, os destinos de outra alma, os mistérios de outro olhar, o cheiro de outro suor. Mesmo sem saber que forma elas teriam e quem exatamente as usaria, uma certeza ao menos eu tinha: a de que elas estariam muito “bem servidas”.
Andei, olhei de relance todo quarto e me detive nas gavetas que se achavam mais vazias, como quando decidimos enfrentar nossos medos e angústias mais escondidas, lavar o fundo de nossa alma, tirar a poeira do canto de nossos dramas e inseguranças, um movimento que dói, mas o único capaz de realmente fazer brilhar os cantos, respirar aliviada a alma, encontrar espaço a alegria, mesmo que em ponta, resto ou diagonal da emoção. Em poucas palavras, tudo se arrastou um tanto dolorosamente para fora do tapete nostálgico que disfarça os buracos e manchas espalhadas pelo chão da minha vida selvagem e primitiva, como coisa que desvenda por dentro.
Ao olhar, deparei-me com um urso grande, daqueles bem gostosos e macios, um urso que ganhara ainda quando a infância a habitar totalmente em mim pedia braços deliciosos que a envolvessem e a protegessem de um mundo novo a abrir-se, mundo do qual eu jamais sentia medo nos braços de um lindo e macio urso a abraçar-me. E quanto nele eu me deitara, tão leve, tão pequena, tão cheia de sonhos e graças amadas...!
Decidi que meu tempo com o urso já passara, olhando para mim percebo que os seus braços já não me abraçam por serem curtos demais para o meu corpo que ainda continua frágil, mas já demasiado grande para ser completamente abraçado. É um abraço que já não me abraça, como aqueles abraços dados quando o amor acaba, abraços vazios, menos apertados, mais apressados, tão evasivos, tão pouco intensos e emocionados, mas, neste caso, o corpo não se torna grande como acontece comigo em relação ao urso, o amor é que se torna tão pequeno a ponto de não poder sequer ser alcançado por um abraço. Pensei um tanto excessivamente reflexiva e com uma leve ponta de angústia que o amor, em alguns casos, de fato tem o tamanho e a dinâmica do abraço.
Tomei o urso em meus braços e não tentei um último abraço, já caíra no mundo, ele me trouxera outros abraços, tirou-me alguns, deu-me outros, o mundo me abraçou, soltou-me e agora me ensina como abraçar a mim mesma com coragem e firmeza em um eterno desencontro de braços e múltiplas estranhezas.
Com sacolas e aquele urso grande e gostoso, atravessei a rua. Entrei em uma casa que há tempos não via, um lugar que estava ficando mais bonito, as paredes estavam sendo pintadas novamente, uma única camada de tinta se via nelas de modo que a outra logo viria dar o acabamento final da reforma. Nos muros exteriores já repintados algumas palavras marcavam o concreto e atraíam os olhos de quem por elas passasse. As frases escritas eram curtas e soavam como uma poesia doce e suave, diáfana e tão leve que parecia voar e passar para o outro lado do muro, insinuando-se provocante pela rua. Um pequeno jardim enfeitava a entrada do prédio e a pequenez de seu tamanho era necessária à simplicidade e beleza natural de suas formas, canteiros e flores. Era como se a simplicidade do jardim o fizesse enorme, acolhedor, aconchegante, nem um pouco suntuoso, domesticado, artificial ou algo que possa parecer frio e arrogante. Em uma vertigem, de repente vi ali no jardim, brincando entre as flores, todas as 130 crianças que eu sabia que ali naquela casa viviam. Elas brincavam felizes, os olinhos brilhavam, os cabelos das meninas refletiam a luz do sol e dançavam no ritmo do vento, sua conexão com a natureza era tanta que pareciam sair de cada flor e transformar-se novamente na mesma flor e aí se faziam plenas, donas de um mundo no qual a realidade era apenas um pouco diferente, como na maioria das vezes acontece.
A realidade era que aquelas lindas meninas não voltavam para as flores de onde tinham saído, como acontecia com o meu devaneio, essas flores as deixavam sem sequer um toque suave de suas pétalas ou o aroma delicado de seu perfume e se perdiam pela vastidão dos anos e do mundo, aparentemente, alheio a tudo.
Perdidas de suas flores, as crianças esperavam que outra flor as aceitasse, jamais as outras seriam como a flor primeira, mas das crianças essas outras flores cuidariam, mesmo não podendo substituir por completo o brilho nos olhos e a sensação de sentidos capazes de serem trazidos apenas pela flor primeira.
Uma voz atendeu-me interrompendo meu devaneio e trazendo-me de volta à minha realidade naquele instante. A voz era de uma mulher que me pareceu extremamente bondosa e doce, portadora de uma atenção e de um cuidado que eu julgava serem, com certeza, maiores que os meus. Sem jeito lhe falei que trouxera algumas roupas que pra mim já estavam pequenas, mas que se achavam novas e poderiam ser usadas, apesar de precisarem de uma boa lavada. A mulher ia agradecendo-me com um sorriso lindo, um contentamento sincero, um olhar que quase me ofuscou tamanho era seu brilho e bondade gerados a partir de um gesto de outra pessoa quando duas meninas e um menino que ali moravam quase a atropelaram a correrem alegres e profundamente ansiosos diante de uma possível novidade que trazia cheiros de alegria e brincadeira no ar. Uma menina ainda pequena, de uns seis anos, adiantou-se na frente dos demais. De pele clara, cabelos loiros que desenhavam leves cachos nas pontas, olhos verdes, um tanto perdidos e solitários, ela agarrou o urso que eu trouxera, o abraçou forte e mostrou um sorriso aberto, realmente completo, um sorriso da infância, carregado de toda felicidade e inocência essencialmente gratuitas nessa fase da vida. Ai como é lindo, que gostoso, como é fofinho! Ai ele já é meu, esse é meu! , ela dizia com uma voz fina, delicada e ansiosamente extasiada. Quanto ao sorriso, mais que um sorriso de infância, aquele era um sorriso de uma menina que talvez nunca tenha tido um urso tão gostoso como aquele, que ela pudesse abraçar e se proteger. Era o sorriso de uma menina que na fragilidade e beleza de seus seis anos já conhecera uma das piores ausências que alguém pode um dia sentir: a ausência constante, arrastada, inexplicável e incompreendida em si mesma de um pai ou de uma mãe. Talvez, ao abraçar aquele meu urso, que se achava até um pouco sujo e empoeirado, a menina tenha sentido um pouco do perfume da flor que pelo caminho da vida ela perdera e tenha sido acolhida por braços de pelúcia que foram sentidos por ela quase que como pétalas e assim ela pode adorar aquele urso, esboçar um sorriso, deixar ver uma expressão de felicidade e proteção no seu olhar, ela pode se aproximar da flor.
Fui colocando as sacolas no corredor de pedra da entrada que conduzia ao interior do lugar, a outra menina e o outro menino já pegavam algumas delas e ajudavam a levá-las para dentro. Notei um olhar de tristeza e um leve desapontamento no menino quando disse que as roupas eram de meninas, mas, no fundo, vi que ele ficou contente pelas muitas moçinhas que ficariam felizes com as roupas novas e com o grande urso branco de pelúcia. Ele parecia já cultivar em seu jovem coração a chama da esperança que faria incendiar os seus olhos a cada nova vez que a campainha tocasse e que sombras de sacolas pudessem ser vistas a se desenhar pelo vidro da porta principal.
Quando a bondosa moça que abriu a porta se despediu gentilmente e a fechou atrás de mim, ainda pude ver através do vidro a menininha linda correndo saltitante e alegre pelo longo corredor de pedra agarrada ao urso, o abraçava de uma maneira tão forte que parecia que não iria soltá-lo jamais e que, provavelmente, hesitaria um pouco em dividi-lo com as outras meninas que, de certo também o adorariam, deitariam sobre ele, se confortariam e se protegeriam em seu abraço, como a menina de cabelos loiros cacheados nas pontas agora fazia. No entanto, tenho certeza que ela o dividira, o urso ainda tinha abraços para todas e, em meu pensamento, por muito tempo, o seu colo seria o lugar onde elas mais gostariam de estar, por ter o conforto e a maciez tão próxima das pétalas de cada uma das flores já perdidas de cada uma daquelas meninas.
Virando o corredor, a linda menina provavelmente o urso ainda segurava. Mesmo não podendo vê-la a imaginava e a imagino agora a envolver e abraçar aquele urso tão grande e tão macio. A lembrança do momento em que ela chegava e abraçava o urso, jogando-se sobre ele, tão contente, tão pura, tão completa, não me deixa, assim como não me deixam as lágrimas que insistem em rolar pelos meus olhos, incontidas, profundamente tristes e melancólicas, lágrimas a expulsar de minha alma a dor e a indignação profunda que sinto diante de um abandono tão cruel e miserável e que se choca com a beleza de uma cena tão linda, de um abraçar tão cheio de carinho e felicidade, tão repleto de inocência e gratuidade!
Como recordação, me salvará ou me acordará eternamente, o instante em que fechei o portão de ferro do orfanato e lágrimas nasceram da boca da minha alma indo deitar-se no contorno dos meus olhos. Estes, prontamente tentaram escondê-las, sufocá-las, porque aquelas lágrimas estavam doendo demais e queimariam feito brasa quando sobre minha pele fossem elas derramadas. E, em um sutil movimento de mãos, assim como a menina abraçou o urso, abracei eu as minhas lágrimas...

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