terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A Noite Vermelha e Branca


O recorte da janela se desenha sutilmente enquanto a chuva se espamarra fina e delicada. Meu pensamento mudo, como uma névoa espessa e esfumaçada a misturar-se com a água que escorre estilhaçada pelo tempo e desaparece no fundo do ralo de um mundo difícil, povoado por uma tristeza quase contente. Quando fecho os olhos, já não escuto a chuva. Meu corpo parece alçado pelo vento em ruas de outrora.
Nos rios me afogo, apenas belisco a sombra do meu corpo projetada na branca sombra pálida da parede do meu quarto úmido e quente. Para onde olho, fico a imaginar meus dramas, a natureza obscura de meus fantasmas. Enquanto aqui estou deitada, a vida simplesmente passa e confesso que o que quero é que o tempo passe. Os fatos de ontem e hoje são ocos, assim como creio que serão os de amanhã. Todos são apenas fatos. Sem forma. Sem o preencher dos sentimentos. E tudo ainda me diz mentirosa. Pergunto apenas quais seriam as mentiras menos mentirosas.
Agora penso no amor, absurdo e maravilhoso, a atingir tantas e diferentes pessoas. Poucas delas também absurdas e maravilhosas. Aos poucos, deixamos de ser maravilhosos e absurdos quando aceitamos as coisas estúpidas e banais. Aos poucos nos tornamos mesquinhos, tristes, melancólicos, vazios. Cheios de praticidades fúteis e vulgares, manias eternas, sonhos poucos, aflições menos sinceras. Quando percebemos, o amor já é morto antigo e nós, apenas errantes perdidos. Eles, apenas bondade sem coragem, a mornidão do espírito que nem chega a dar pena e sim raiva. Pessoas valendo mais que sentimentos. Um tédio sem volta. Versos secos e palpáveis.
Acendo, quando cai a noite, meu derradeiro feixe de memórias, sobre ele é como se camadas de poeira fossem se acumulando, uma sobre a outra, e me embriago com loucuras. Não me atrai a lucidez. À noite sou cega. Vejo apenas a essência sutil de mim mesma, aquilo que chamam de alma. Sinto apenas a pior das dores. Aquela que não ouso descrever. Aquela para a qual as palavras ou sons são ausentes, a derradeira e inútil desintegração de uma saudade. Quando já não moro mais em mim mesma.
E em um impulso terrível, mordo a noite. Caio da cama, congelo meu corpo na água fria da chuva, vejo você entrando nu com o corpo suado e terrivelmente belo. Então, apenas fica em silêncio, arranha minha pele. Faz com que o amor maravilhoso e absurdo exista em nós. Esse amor que vive fora de nós, fora das armadilhas do tédio, porque aqui o sentimento é maior que as pessoas, que a idade, que o próprio tempo. O sentimento não se entendia, é alheio a todo resto.
E acontece mais uma vez.
Quando já sabemos que vai voltar a acontecer, porque em outros tempos esse encontro sempre aconteceu. Neste instante não mordo mais a noite, apenas a tua boca vermelha.
Quando abro os olhos, diante de mim, apenas a parede, vertiginosamente pálida. Sobre meu corpo suado rosas se espalham. Vermelhas e brancas. Buscam meu coração verde, desassossegado. Estarrecida, um tanto quanto taciturna, volto a fechar os olhos. Busco habitar as minhas profundas cavidades, expulso de mim mesma as aflições e vaidades.
Solto um suspiro que se esvai como um fio tênue, o silêncio se expande, escavo-me em busca de palavras. Elas não vêm. Sou mais do que vazia, até os pesadelos agora fogem de mim. Enfim, adormeço pensativa e absurda, sem esperar que seu corpo nu entre novamente pela porta de minha alma. Sem esperar que o barulho intermitente da fina chuva cesse de repente.
Esse barulho da chuva embala meu sono. Sono sem sonho, no qual eu apenas aliso as costas do tempo.

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