quinta-feira, 20 de agosto de 2009

CONTO - Grito

O Grito, quadro expressionista do norueguês Edvard Munch



Ele acordou sozinho no meio da noite. Uma noite clara, de uma atmosfera ensopada, de um aspecto frio e seco. Não sabia onde estava, quem era, qual era o seu nome, sua forma física, não disciplinava seus pensamentos. Tentou se levantar, ir até o espelho, mas suas pernas se recusavam a andar. Era como se durante a noite ele tivesse desaprendido a ser humano. No entanto, apesar de tudo, as lembranças ainda lhe restavam.
O corpo se entregou à imobilidade que o condenava à inconsciência de si mesmo, mas a mente permaneceu lúcida e, longe de ser um alívio, parecia ser justamente isso que o angustiava. Antes não tivesse lembranças e fosse só movimento e racionalidade. Naquela madrugada, no entanto, ele era só devaneio e inconsciência, sem percepção alguma de matéria. Entregou-se às lembranças por inteiro, belo e majestoso como um rio quando se perde e confunde suas águas com as águas do mar.
Encontrou seu passado, pois parecia destinado a ele, como cada vida está destinada à morte. Lembrou-se de um passeio de trem pelo centro da pequena cidade onde nasceu. Era como se o barulho da buzina, das rodas, das pessoas e do vento batendo em seu rosto estivesse novamente ao seu lado, revisitando-o em delírios de uma nostalgia solitária.
Lembrou-se de como as pessoas olhavam para o trem, de como elas paravam o que estivessem fazendo para voltarem também ao seu passado, como ele agora o fazia. Lembrou-se de como o trem dera uma volta imensa pela cidade, de como ela de repente se tornara grande, de como tudo por um instante se tornara claro, alegre, inocente. Naquele dia, no banco macio de um trem, ele fora feliz ou algo próximo disso.
Lembrou-se de sua mãe e de seu pai, agora longes de onde ele estava. Veio-lhe o cheiro do jantar, o som das vozes, o abrigo de um colo onde antes ele se deitava pra chorar, pensar e sonhar. Lembrou-se dos dias de Natal com a casa cheia e da tristeza enorme por ele sentida nestes dias de festa. Quando todos estavam felizes e juntos, ele se sentia triste e sozinho. Lembrou-se de algumas quedas em um jogo de futebol, de como ele tinha medo de mostrar algum talento, preferia saber somente para si mesmo do que ele era capaz.
Lembrou-se de um professor que lhe ensinou um pouco da poesia da vida, da filosofia dos homens, da força transformadora do conhecimento. Um professor que despertou nele o prazer de ouvir, apenas ouvir e sonhar.
Lembrou-se de um amor antigo. Ela havia passado pela sua vida como uma ressaca do mar, arrastando tudo que era dele. Deu a ele seus sonhos, seu corpo, imaginou a sua história na dele. Ele a perdera por egoísmo ou covardia, por medo ou vergonha, não conseguia esquecê-la, não iria fazê-lo nunca.
Naquele momento de lembranças esta última era a que lhe chegava com mais força. Era a que doía mais. Ele sentia a sua falta mais do que qualquer outra falta, mas sabia que ela não iria voltar, já estava com outro, já juntara os pedaços do seu coração enquanto os dele unidos não estariam nunca mais. Estavam separados pela culpa que vem da consciência, pela dor do arrependimento, pela amargura de um coração que descartou a oferta gratuita de felicidade.
O devaneio era absurdo quando lágrimas irromperam incessantes, barrando o fluxo de lembranças que escorria e jorrava sem parar. Ele chorava e gritava, se debatia na cama, contra muros invisíveis ao seu redor, dava socos contra o vento, era violentado pelo tempo, se coçava sem parar. Era como se ele quisesse arrancar de seu corpo formigas que o incomodavam, bichos que o picavam.
Quando o dia já nascia as lágrimas secaram, estava cansado de chorar. A coceira havia passado e deixado na pele marcas de dedos agressivos que outrora tentaram, inutilmente, arrancar uma praga mortal. De súbito se levantou e conseguiu andar. Seu corpo, seus limites físicos e sua racionalidade superficiais estavam de volta.
Olhou-se no espelho e viu o reflexo da loucura, a imagem do abandono, da mais profunda solidão. Voltou a chorar e permaneceu observando o cair das lágrimas, o contrair das faces, o desenho que a dor esculpia em seu rosto. Afundou-se em um narcisismo primitivo e depois dessa madrugada nunca mais se lembrou de nada, não sabia sequer quem ele era. Restou-lhe apenas um corpo obtuso e uma sensação de indiferença total em relação à vida. A tudo que lhe era perguntado ele apenas respondia: “Tanto faz, já não me importo”.

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