sábado, 29 de agosto de 2009

A fita lilás


De longe, vindo, ele já parecia lotado, apesar de eu não distinguir muito bem o que era ferro do que poderia ser uma pessoa, parecia tudo meio embaralhado, minha visão produzia cenas turvas, levemente embaçadas, esfumaçadas, eu já parecia antever a atmosfera na qual entraria logo em seguida.
Subi os degraus rapidamente, como quem se nutre de um impulso. Dei alguns passos firmes enquanto ele ainda não entrava em movimento, depois era certo que meus passos seriam desequilibrados e incoerentes, quase como meu estado de alma, ansioso e inconstante. Girei a catraca depois de dar o dinheiro. Girei a catraca depois de dar o dinheiro, pulei um muro depois de dar um adeus, sequei uma lágrima depois de ter deixado escorrer meu coração, venci o medo depois de ter conversado comigo mesma, girei o mundo depois de comprar passagem sem, no entanto, nunca voar pra lá.
Passeei os olhos pelo lugar e encontrei um banco no canto do meu espanto, ele ficava bem separado do restante, isolado, parecia um bom lugar para sentar e olhar a vida passar, a vida sempre a passar. Assim o fiz ou o fizeram de mim, mas sentei, encostei a cabeça e saí de dentro de meus limites físicos para entrar na imensidão e na loucura dos meus sonhos insanos. Olhei pela janela as pessoas e a sua pressa, as pessoas e seus medos, as pessoas e suas faces inexpressivas, confusas, avulsas. Olhei as casas, as cores do mundo, do chão, do portão. Contemplei o chegar da noite e a despedida do dia, este saía manso, como quem tem medo ou prudência para não ofuscar a beleza da noite que se faz majestosa e misteriosa, primitiva e selvagem, inspiradora e desafiadora.
Distraída da janela meus olhos encontraram o interior do lugar que estava lotado, enchera de pessoas quase tão rapidamente quanto um copo quando o enchemos com água. A janela e o mundo visto por ela até então me arrastavam tanto para suas entranhas que não notara o barulho de vozes já tão alto e desencontrado. Muitas pessoas falavam dos mais variados assuntos, ao mesmo tempo, muitas se olhavam com desconfiança ou curiosidade, quase todas se espremiam umas contra as outras em busca de espaço, de lugar. O ar já era denso, ensopado, aflito. Minha alma começava a fervilhar e multiplicava a multidão. Eu já via milhares de pessoas famintas, cegas, desprotegidas. Via ladrões, fantasmas e maldades brotando feito erva daninha. Os rostos eram curiosos, mas eles não passavam de rostos. Os contornos destes é que se faziam a meus olhos interessantes e enigmáticos. Contornos que denunciavam cansaço, sofreguidão, frustração ou felicidade. Traços que desenhavam um dia, uma vida, uma luta.
No conjunto de pessoas existia, antes de tudo, um conjunto de histórias, que eu tentava decifrar sem ouvi-las, apenas sentindo e percebendo como elas poderiam ser ou eram de fato. Foi quando pararam estes meus olhos em uma fita lilás que se enrolava delicadamente nos cabelos de uma moça. Como a fita lhe caía bem, e como ela de repente iluminara aquela atmosfera andante e errante, seca e sufocante. Ela era como água para quem tem sede, incendiou meus olhos, alojou-se na minha lembrança. Já era hora de descer. Os poucos que estavam sentados se levantavam. Os muitos que já estavam em pé espremeram-se contra a saída como quem tem pressa para alguma coisa que eu não sei bem o que é, coisa que se faz diferente para cada um, que talvez nem cada um saiba o que é. Na minha vez de descer parei e fiquei olhando a multidão a caminhar a passos que se preocupavam em parecer seguros e certos.
Como o mundo fabrica cenas que espantam! Cenas que se fazem selvagens, loucas e primitivas, de repente divinas. De longe via a todos, mas reparava apenas naquela fita lilás que enfeitava o cabelo de alguém de quem eu nem sabia o nome, uma fita que se destacava na multidão, como uma flor que desabrocha na diversidade e se faz a mais corajosa e bela de todas, como uma multidão que se re-cria em busca de um eterno e cíclico re-encontro, mesclado de paixão e drama.

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