terça-feira, 15 de setembro de 2009

Feiticeira - Parte 2



Nunca tinha visto esse olhar em ninguém e ele nunca me saiu da lembrança. A feiticeira estava congelada diante da infância como se esta última, dela tivesse sido roubada cruelmente. Não conteve as lágrimas que corriam pela sua face, que a mim eram doloridas, como se minhas fossem. Não conteve um arrepio que imagino ter percorrido todo seu corpo já que ela foi acometida visivelmente de uma grave inquietude, chegou a deitar no banco, colocar a cabeça entre as pernas, levantar e ameaçar ir embora, para depois voltar novamente ao banco de todos os seus misteriosos dias. Em um curto espaço de tempo, parei de olhá-la, desviei-me para as crianças a fim de acalmar meu coração.
Quando a fitei novamente, seguia olhando a dinâmica das brincadeiras, absorta, até que em um movimento rápido e brusco levantou-se do banco e saiu correndo. Enquanto corria, as crianças saíram a segui-la. Pareciam ter gostado da visitante tão efêmera e, ao mesmo tempo, tão permanente. Mas ela corrida demais, os meninos e meninas da praça não a alcançaram, assim como meus olhos também já a tinham perdido de vista e jaziam agora desolados e desintegrados. Foi quando de um salto levantei-me, saí de minha condição de abandono e prostração. Fui ter com o banco onde a feiticeira há pouco sentara quando as vozes das crianças já não se ouviam, a noite já era alta. Busquei algum vestígio que fosse, um cheiro, uma respiração, um suspiro de sofrimento do meu reduto labiríntico de sedução. Olhava sem saber ao certo o que olhava e não encontrei nada.
Nada me era demais, queria algo dela, precisava entender ao menos uma ponta daquele mistério insinuante que eu imaginava perfumado e intenso. Sentei no banco dela, naquele banco que era só dela, que existia nela, o banco era ela, e neste estado de combinação fantástica e personificação absurda entre mulher e banco, abstrato e concreto, a noite alta começou a verter água do céu.
A chuva molhava-me por inteiro e assim deixei-me por ela embriagar. Foi quando senti por entre meus dedos deitados sobre o banco, a textura de um pedaço de papel. Voltei-me a ele, assustado, ansioso, sem saber, no entanto, do que aquele pedaço de papel se tratava. Poderia ser um folheto de propaganda, mas meu coração dizia que o papel era dela. Ele estava dobrado, delicadamente dobrado na forma de uma flor. Tinha formas perfeitas, harmônicas, sedutoras e um perfume que nunca antes havia estado diante de meu olfato frágil. Com movimentos hipnotizados, fui desmanchando a flor e à medida que ela desabrochava apareciam diante de meus olhos molhados letras borradas, úmidas e delicadas.
...“fugistes de mim como agora corro de ti, infância cheia de dignidade.” Enquanto lia, revia mentalmente aquela que outrora correndo fugira. Já estava encharcado de chuva, doente não poderia ficar, decidi, portanto, voltar depressa já que no outro dia no meu banco gostaria de estar para contemplar novamente este banco aqui de cá.
Banco de mulher que eu nem sabia o nome, banco de mulher que correu deixando uma flor, uma flor que guardava entre suas pétalas de papel aquilo que não se vende nem se compra, aquilo que do ser humano é o grau último e supremo - a dignidade que brota na infância e queima feito fogo no coração de poucos. Para não me molhar ainda mais, tomei a flor e saí correndo pela fileira de oito bancos rumo à minha casa. Nos seus olhos um brilho, no coração, as fantasias e insanidades de um feitiço.


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