quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Amarelo


Quando ontem tudo apagava, a chama amarelecida da vela ocupou por algum tempo o lugar do barulho das máquinas. O girar frenético do ventilador cedeu espaço para o movimento sedutor e atrativo da chama que, por alguns instantes e ângulos, parecia ser eterna. O zunido do computador e suas luzes que cansam e entontecem saíram de alguns ouvidos para que estes escutassem e atingidos fossem apenas pelo som primitivo e selvagem da chama intermitente da vela. A televisão emudeceu-se. Por um instante de tempo, foi interrompida a produção de sentidos, a canalização de desejos, o conforto e o engano da solidão. De repente, não havia mais sequer uma simples imagem, tampouco as vozes perdidas, alheias e distantes que de dentro da tela saltam alucinadas. No seu lugar, aos olhos foi trazido o consolo de uma imagem pura, simples, tão cheirosamente delicada.

No instante em que tudo por fim escureceu, algumas vozes gritaram, outras se calaram, outras derramaram curiosidade, poucas as que sentiram o apagar de tons e o acender de luzes tão mais belas, naturais e, desde sempre, familiares, que vieram ao socorro do homem quando os seus tantos e, aparentemente, infalíveis aparatos técnicos de fato falharam. Eis que assim como a fé caberia onde a razão não mais é suficiente, a simplicidade de uma luz de vela é que nos conforta quando a sofisticada técnica parece querer nos aprisionar na escuridão. De todo, já digo de antemão que me agradou demasiado a chama que saltava da vela, saía de dentro dela para rasgar-me e vir refugiar-se dentro de mim. A chama tornou meu quarto mais belo, mais essencialmente clássico, como se tivesse sido desenhado, pensado e esculpido em cada sutil detalhe. Presenteou-o com o silêncio das máquinas, com o canto afinado das luzes de outros e tantos tempos.

Ao longo deste vasto país nosso, para muitos as máquinas não pararam, continuaram alimentando vícios, preenchendo ausências tantas de nós, seres já tecnificados. A vela continuou guardada no fundo da gaveta, coberta de poeira, ou sequer precisou ser comprada por muitos que já não a têm mais em sua casa. Para outros, cercados pelos limites de seu lugar, alguns trabalhos no computador podem ter sido perdidos, os últimos segundos do banho podem ter sido protagonizados por uma água gelada, o que significa um fim de banho apressado e originalmente natural, ou uma saída rápida, automática, com o corpo ainda coberto de espumas, ainda molhado.
E outros ainda se viram presos nos elevadoras de nossa sociedade excessivamente amontoada ou verticalizada, sufocados pelos limites extremamente limitados, sinais de nossa claustrofobia contemporânea.

Ouvi dizer de uma senhora que utilizava um aparelho respiratório elétrico e ao apagar das luzes teve que sair de casa em uma ambulância às pressas rumo ao hospital mais próximo de sua casa. Enquanto isso, a mídia e suas vozes pedem alucinadamente calma em uma eterna contradição de discursos. Talvez, muitos precisassem desse conselho de calma, desse conforto partindo de uma voz distante, tão distante. São tantos os casos, tantas as casas, tantas as criações que permeiam uma grande cidade, tantos os dramas, tantas as histórias, tantos os momentos, tantas as faces de um mesmo apagar de luzes e de almas. As coisas enfim são tão incertas.

Em meus tantos e infindáveis limites, confortei-me de todo com a chama de minha vela. O apagar geral me era distante, suas causas, consequências, culpas e omissões mais ainda. Apenas que fascinava a chama de minha vela, pois sigo conservando algumas em uma gaveta não para casos em que a luz elétrica me falta, mas para momentos em que dela me canso. A chama da vela me inspirava, tornou-te tão mais belo aos meus olhos, pude sentir por um instante a respiração, o cheiro, o silêncio do mundo e, em meio a gritos de um, sufocamentos e desespero de outros, acariciei a tua pele linda e amarela.

...instantes cortantes de existir e estar. Entendam a luz, incorporem a chama.


Nenhum comentário: