quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Da paixão e da literatura


A breve história de como um amor preenche páginas em branco com tintas de dor, loucura, felicidade, desespero, contentamento descontente...

Malu era uma menina ainda, não pela idade, posto que juventude ou velhice não se medem pela idade, mas pelas atitudes. Tinha já seus trinta anos e demonstrava, ainda que inconscientemente, uma falta de apego ao mundo adulto, uma lacuna de entendimento, ajuste e aceitação neste espaço dos ditos amadurecidos. Sempre sonhadora, olhar longe, inexprimível, inspiração atenta, mãos rápidas e inquietantes. Atraída pelo que aos olhos alheios poderia parecer banal, pela pedra no meio da rua, pelo pássaro bicando a janela, pela neblina esfumaçando a manhã, pela flor desabrochando da terra, pela terra bebendo a água, pela chuva insistente a molhar a terra. Delirava pelo silêncio, pelo olhar, pelo toque, pelas texturas e cheiros de frutas, doces ou produtos de limpeza. Gostava da multiplicidade da vida, da sua variedade de tons, da eterna polissemia das palavras por ela conotadas.

Malu não tinha emprego fixo, nunca dera certo em nenhum. Gostava mesmo era das letras, do papel, das incursões para dentro de um eu que ela nem mesmo sabia o que era. Tudo nela era como um mistério que conduzia a outro mistério. Sentia prazer nas palavras, em vê-las de repente ocupando uma folha, em vê-las enfeitando uma página, uma pele, um rosto, o fundo de um olhar poetizado.
Mas antes de qualquer outra coisa, antes do emprego que não tinha, da letra que incorporava, do ritmo que dançava, Malu era terrivelmente apaixonada.
Conhecera C. ainda na universidade quando cursava Letras. Nos primeiros encontros, sutis e por vezes desencontrados, por ele se derramava tal como a roupa que não cabe na mala já lotada e insiste em cair pelos lados. Sentia uma felicidade quase que indomável, um desejo alucinado, uma loucura atraente e desesperada, com ele era puro delírio, era algo mais e também não era nada. Ela sentia-se como se tivesse acabado de ter sido criada, parecia nova e antiga, resto de outro tempo e de outra vida. Com ele, Malu era como a ressaca do mar.
Não cabem muitas considerações a respeito de seu amado, exceto que era este muito inteligente, sedutor, sensível e amante das letras escritas, torcidas, enxugadas, esburacadas e devoradas.

C. era um homem fantástico que em Malu resvalava em restos, lembranças, pedaços e um conjunto de contos, poesias, romances escritos por ela para ele e em nome do seu amor, apenas para que ele, por toda vida, lesse aquelas letras borbulhantes, queimadas, tingidas de dor e paixão.
Viveram juntos durante um tempo, ele escrevendo e ela também. Ela mais do que ele. Ele, que sempre escrevia de forma menos intensa que ela. Malu era de todo intensa demais, pensava em coisas absurdas, fazia coisas intraduzíveis, adormecia em maravilhas, em perfeições, queria viver a beleza, exaltá-la e nada mais. Na beleza, ela se perdia em meio à solidão de tantos dias, solidão que a ajudava a escrever, dando forma à sua obra desprovida de tal forma.
Malu escrevia, bebia e dançava de vez em quando. Todos os dias, ela e C. se amavam, viviam um momento de loucura, êxtase, sedução, atração e desejo tão grande que aquilo lhe era indescritível e demasiado completo a tal ponto que lhe dava medo. Achava estranho um momento tão eterno, tão conhecido, tão vindo de outros tempos, carregado pelos anos, repleto do poder de lhe fazer feliz e de alimentar por horas e horas da madrugada as suas poesias, os seus textos, a sua alegria por vezes inexpressiva e misteriosa. E para ela não havia coisa melhor, amava, escrevia, dançava, escrevia e calava. De vez em quando brigavam, mas sempre voltavam.

Deixava o absurdo de seus pensamentos para ficar apenas como o absurdo da realidade e tinha certeza que preferia o poeta ao homem. Quando C. deixava de ser poeta e se tornava homem ele a fatigava tremendamente. Mas quando a amava, sempre era poeta, não nas letras sobre o papel, mas nas letras que existiam no suor do seu corpo, nas letras que eram o som sussurrado em seu ouvido, nas letras que eram beijos que a enlouqueciam bem mais quando tocavam seu corpo todo do que quando se limitavam à sua boca tão seduzida que ficava até seca. No momento em que o amava, Malu arrepiava-se com o cheiro dos cabelos de C.. O que de fato a interessava nele era o cheiro dos seus cabelos que descia um pouco para a testa, apenas para o começo da testa.
Quando se amavam, o cheiro transbordava. C. era, inevitavelmente, seu poeta. Poeta a escrever uma poesia toda de sons, cheiros, beijos e toques que se convertia em letras vermelhas sobre um fundo branco, já que Malu sempre escrevia com tinta vermelha, levando o arrebatamento da palavra e do sentimento aos seus limites mais insuportáveis.

Malu e C. passaram por todas as fases que um amor por essência há de passar. A euforia do primeiro momento, o ciúme e a desilusão que vem depois e, por fim, adentraram em uma região que era puro delírio.
O fato é que toda aquela louca e embriagada paixão entre Malu e C. alimentava a literatura de ambos, novamente a dela mais do que a dele. Só quando ela sofria por amor escrevia, a inspiração era diretamente proporcional à desilusão, à solidão e à melancolia e amargura de seres que, como ela, não sabem amar pela metade sem alcançar o extremo da escrita e da insanidade. O seu amor não a levava a calar, pelo contrário, transbordava e esparramava sobre seus papéis e sobre os cabelos dele. Maior que a paixão que a unia a C. havia vínculos invisíveis que a ligavam à literatura, sua insaciável paixão secreta. A relação entre Malu e C. quando já era puro delírio se fazia tensa, ambígua e resvalava pelo terreno da loucura, ambos alimentavam mutuamente a sua neurose. Até que C. passou a assistir à caminhada lenta e agonizante de Malu em direção à loucura e insanidade completa. Ela ainda escrevia belíssimas histórias, mas já cruzara a fronteira tênue que separa a lucidez da completude do inconsciente, estágio em que o ser humano já é só instinto, sem sublimações, limites e superficialidades, ele já é só lírios e imensidão. Malu já não pensava racionalmente, ela de fato nunca à razão fora afeita, como nesta história já dissemos, mas agora já abandonara a razão por completo ou a razão é que a havia abandonado. Na sua loucura era só essência, e ainda guardava restos de frustrações, preconceitos, traumas e solidão.
No entanto, C. nunca deixou de amá-la, sua escrita o fascinava, a sua beleza e composição estética, a sua precisão e sensibilidade sempre o atraíram, despertando nele seus próprios sonhos de escritor e poeta.

Mesmo com a certeza de um grande amor e com a oferta de sua literatura, a paixão provou não ser capaz de sustentar uma vida. Em um eterno desregramento dos sentidos, Malu terminou seus dias internada na sala sete do Hospital Psiquiátrico mais antigo da cidade de Sol onde moravam. Sua cama tinha lençóis verdes com números bordados que identificava cada paciente, os números ajudavam a aumentar a frieza do lugar, e grades brancas, ficava no canto de uma sala onde muitas outras camas se amontoavam. Todos os dias, C. ia vê-la, sentava ao seu lado, tentava tecer ao menos um fio curto de conversa que fosse. No começo, o fio ainda podia ser tecido, mas com o tempo, Malu não lembrava sequer quem era aquele homem que, desde os primeiros dias de visita, sempre saía delas com um papel branco onde algumas letras se viam esboçadas em vermelho.
Mesmo quando seus olhos já não mais reconheciam C., a literatura e a palavra de Malu, maior que ela própria, nunca o esquecera. Em cada visita, as mãos perdidas e loucas contrariavam a mente e escreviam sozinhas palavras soltas, lindas, apaixonadas, raras e simples, extremamente simples. Os corações de ambos não se desencontraram cansados um só instante, neste caso, apesar dos inúmeros momentos asfixiantes, a escrita sustentava ao menos o amor que nas letras de Malu e no seu inconsciente ainda era vivo, mesmo já sepultado na sua mente e consciência.

Para C. ver Malu naquele estado era como sentir uma presença esmagadora, mas o fato é que tanto ele como ela não passariam um sem o outro jamais.
No último pedaço de papel que Malu entregara para C., poucos minutos antes de sua morte e sem ter a menor idéia de quem ele era, assim estava escrito:
Teu amor me salva entre os paradoxos da paixão, entre seus momentos tensos, porém sempre intensos e inspirados em que nos amamos ao longo desta vida e da outra, misteriosamente. Nesta vida que teima em seguir escorrendo lenta, viscosa. Continue vivendo e escrevendo, sem buscar heroísmos em tua escrita, apenas a vida e os seus acúmulos de pequenas dores e alegrias. Minha dor neste momento é por demais apenas a minha dor, a tal ponto angustiante que só o sepulcro do mar pode enterrá-la juntamente com meu amor por ti, tal como diria Heinrich Heine, poeta meu e teu. De todo, estive pensando em como realmente gosto de árvores, peço que as abrace quando dos meus braços sentires falta e cresça como elas crescem, sem ferir ninguém. De ti guardo muito, mas levo principalmente o cheiro de tua testa, aquele que sempre descera dos teus cabelos, ele me resta nítido e forte já que todos esses dias em que vieste me visitar ficaste encostando tua testa e cabelos bem próximo ao meu rosto. O cheiro aqui restou ao lado da minha literatura, eternamente alimentada pela nossa paixão e por essa minha derradeira loucura. Siga escrevendo... Tua letra.

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