quarta-feira, 14 de abril de 2010

A temática da morte em "Sonhos", do cineasta japonês Akira Kurosawa

Akira Kurosawa (1919-1998) é um cineasta japonês que possui uma obra cinematográfica imensa e de excepcional qualidade, ele é brilhante do ponto de vista estético e extremamente criativo em filmes que vão do gênero épico e lírico, histórico e contemporâneo até o realista e fantástico. Possui uma característica rara em muitos cineastas: a de saber refletir, na medida certa, sem sentimentalismos superficiais ou exageros que acabam resvalando no terreno do ridículo, os dramas mais comuns e sutis da existência humana. Kurosawa cede gentilmente um espaço quase divino em sua obra para que questões relativas à vida, ao sofrimento, à solidão e à morte sejam discutidas por meio de uma estética inteligente, algumas vezes, belíssima, outras, sombria, mas sempre enriquecedora do ponto de vista humano e existencial.
Em um de seus filmes mais recentes, Sonhos, “Yume” em japonês (1990), Kurosawa rompe com diversos modelos e paradigmas do fazer cinematográfico e mergulha de forma fantástica e ousada no espectro da morte. Uma das inovações e originalidades mais marcantes do filme está na construção da narrativa. Esta se dá de forma enviesada, não linear, há uma diluição do próprio tempo, o que existe são instantes recolhidos e reunidos que compõem uma metalinguagem fascinante com a própria linguagem e natureza dos sonhos. São oito episódios reproduzidos apenas na lógica sensitiva do sonho. Este também não conhece tempo, apenas existe na nossa mente como uma voz que salta e uma imagem que aflora do inconsciente, produto direto de nossos medos, culpas, desejos e projetos de felicidade. Nada melhor do que construir uma narrativa diluída, sem preocupação com passado, presente e futuro para falar de sonhos, nada mais apropriado e sugestivo e aí estão os detalhes que fazem com que um filme não seja apenas um mero relato da realidade, mas uma ampliação e reflexão sobre ela, de modo que se rompa todos os limiares e subverta-se todos os princípios da arte cinematográfica em busca de algo humano e denso.
Dentre os oito episódios que compõem o filme Sonhos, em três deles há elementos estéticos e vozes que formam um discurso entremeado e recortado por elementos que fazem referência à morte. São frestas da narrativa, dos ângulos, dos diálogos, do próprio roteiro pelas quais a morte se faz perceber, ainda que não tão claramente.
No episódio “Corvos”, Kurosawa nos convida a inverter a lógica da contemplação de uma obra de arte, se o movimento mais comum que fazemos ao olhar uma pintura é trazê-la para dentro de nós, de nossas referências e conhecimentos anteriores, o cineasta propõe que se faça o caminho inverso da contemplação, ao invés de trazermos a obra de arte para dentro de nossos referenciais somos nós que entramos dentro da obra de arte por meio da figura do personagem principal do filme e apreendemos novos ideais, novas formas de ver o mundo por meio da sensação de atravessar a textura da tela, caminhar pela espessura da tinta, inebriar-se com as cores e com o visual deslumbrante registrados a partir das cenas da natureza, nada mais onírico, lúdico e, ao mesmo tempo, fantástico.
São vários os elementos que dão forma à viagem do protagonista do filme pelas obras do pintor impressionista neerlandês Vincent Van Gogh. Alguns desses elementos fazem referência direta à ideia de morte. Na ocasião do encontro entre o protagonista e Van Gogh, a estética da luz faz referência ao passar do tempo, à proximidade da morte a cada instante, o sol se pondo no mesmo movimento em que Van Gogh sai do plano da cena transmite a ideia de fim, de diluição e brevidade das coisas. A própria fala de Van Gogh: “Preciso pintar enquanto há luz, não tenho tempo para ficar aqui conversando com o senhor”, tem relação direta com a efemeridade e com o sentido de todas as coisas no contexto de um caminhar certo em direção à morte. Por fim, a cena é tomada pelos corvos e forma-se a imagem do quadro de Van Gogh. O quadro não foi escolhido por acaso, por que este quadro e não outro? Talvez, a resposta esteja justamente nas referências que poderiam ser traçadas entre o contexto reproduzido neste quadro e a ideia de morte. Além dos corvos, a imagem do campo de trigo provoca, às vezes, uma espécie de vertigem, de repente, ela se parece com a imagem do infinito ou com o caminho percorrido em direção à morte e ao que nos aguarda depois dela. Em um olhar ainda mais ousado, seria como se Van Gogh ao transpor o enquadramento, transpusesse a linha que separa este mundo do outro, tudo isso complementado pela sensação de alucinação provocada pelo trigal e pelas sombras trazidas nas asas dos corvos fazendo com que a morte paire acima da paisagem, como ela de fato paira acima dos homens. Por fim, liquefazem-se os sentidos, a morte é apenas mais uma obra de arte.




No sentido primitivo da verdadeira obra de arte, Sonhos, de Kurosawa provoca uma espécie de êxtase, saída de si mesmo, uma catarse que se relaciona diretamente com a ideia de sublime marcada pelo extravasamento, pela força, inspiração, criatividade e elevação. Entre um silêncio e outro, ouve-se o eco da grandeza da alma.

Um comentário:

Unknown disse...

Durante todo o filme ele critica a relação ser-humano x natureza. Desde a destruição nuclear até suas consequências e aberrações como nos sonhos: "O demônio chorão" e "Monte Fuji em vermelho".
Fala de persistência em "A tempestade de gelo" e de morte em "Corvos" mostrando a urgência da representação artística e o surreal, quando o personagem caminha pelas obras de Van Gogh.
Ele trata sim do tema da morte, mas conclui o filme com a morte sendo vista como algo positivo e natural, quando idealiza combinação perfeita entre ser humano e natureza. "A aldeia do moinho de água".
Kurosawa fala de morte. Arte. Surreal.E Critica a sociedade.