domingo, 7 de março de 2010

As raias da realidade

"- Você disse que todo bom romance é uma transposição poética da realidade. Poderia explicar esse conceito?
- sim, acho que um romance é uma representação cifrada da realidade, uma espécie de adivinhação do mundo. A realidade que se maneja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apoie nela. Como acontece com os sonhos.
- O tratamento da realidade nos seus livros, principalmente em Cem Anos de Solidão e em O outono do patriarca, recebeu um nome, o de realismo mágico. Tenho a impressão de que os seus leitores europeus costumam perceber a magia das coisas que você conta, mas não veem a realidade que as inspira...
- Certamente porque o seu racionalismo os impede de ver que a realidade não termina no preço dos tomates ou dos ovos. A vida cotidiana na América Latina nos demonstra que a realidade está cheia de coisas extraordinárias. A esse respeito costumo citar o explorador norte-americano F.W.Up de Graff, que no final do século passado [XIX] fez uma viagem íncrivel pelo mundo amazônico, onde viu, entre outras coisas, um arroio de água fervente e um lugar onde a voz humana provocava chuvas torrenciais. Em Comodoro Rivadavia, no extremo sul da Argentina, os ventos do polo levaram pelos ares um circo inteiro. No dia seguinte, os pescadores tiraram em sua redes cadáveres de leões e girafas. Em Os funerais da mamãe grande, conto uma impensável, impossível viagem do papa a uma aldeia colombiana. Lembro-me de ter descrito o presidente que o recebia como calvo e rechonchudo, a fim de que não se parecesse com o que então governava o país, que era alto e ossudo. Onze anos depois de escrito esse conto, o papa foi à Colômbia e o presidente que o recebeu era, como no conto, calvo e rechonchudo. Depois de escrito Cem anos de solidão, apareceu em Barranquilla um rapaz confessando que tem um rabo de porco. Basta abrir os jornais para saber que entre nós acontecem coisas extraordinárias todos os dias. Conheço gente inculta que leu Cem anos de solidão com muito prazer e com muito cuidado, mas sem surpresa alguma, pois afinal não lhes conto nada que não pareça com a vida que eles vivem.
- Então, tudo que você põe nos seus livros tem uma base real?
- Não há nos meus romances uma linha que não esteja baseada na realidade.
- Tem certeza? Em Cem anos de solidão acontecem coisas bastante extraordinárias. Remédio, a Bela, sobe ao céu. Borboletas amarelas voejam em torno de Maurício Babilonia...
- Tudo isso tem uma base real.
- Por exemplo...
- Por exemplo, Maurício Babilonia. Quando eu tinha uns cinco anos de idade em minha casa de Aracataca, um dia veio um eletricista para mudar o contador. Lembro-me como se fosse ontem porque me fascinou a correia com que se amarrava nos postes para não cair. Voltou várias vezes. Numa delas, encontrei minha avó tentando espantar uma borboleta com um pano e dizendo: "Sempre que esse homem vem aqui em casa entra essa borboleta amarela". Esse foi o embrião de Maurício Babilonia.
- E Remédio, a Bela? Como ocorreu a você enviá-la ao céu?
- Inicialmente tinha previsto que ela desapareceria quanto estivesse bordando na varanda da casa com Rebeca e Amaranta. Mas esse recurso, quase cinematográfico, não me parecia aceitável. Remédios ia ficar por ali de qualquer forma. Então me ocorreu fazê-la subir ao céu em corpo e alma. O fato real? Uma senhora cuja neta tinha fugido de madrugada e que para esconder essa fuga decidiu fazer correr o boato de que sua neta tinha ido para o céu."


Diálogo entre o jornalista colombiano Plinio Apuleyo Mendonza e o escritor colombiano Gabriel García Márquez em Cheiro de goiaba, livro que explora com amplitude o conceito de realidade no romance, conforme visto pelo Prêmio Nobel de Literatura 1982.

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