terça-feira, 6 de abril de 2010

Bela e Margarida

A Canoa sobre o Epte, Monet

De vez em quando, ela tocava levemente a água do rio, sentia como se aquele líquido, em movimentos regulares e certos, fosse penetrando todo seu corpo, curando-a de males, regenerando sua alma, anestesiando suas dores, acalmando sua grandiosa ansiedade. A água era volumosa, densa e, ao mesmo tempo, diáfana, parecia-se com uma poesia ainda não terminada, mas já esboçada por versos, rimas e ilusões de uma alma jovem e naturalmente apaixonada.
Seu olhar esquecia-se por horas na água em movimento, queria captar suas ondas, nuances, temperamento, aflições e desejos. Em intervalos regulares de tempo, estes olhos moviam-se em direção à amiga que com ela dividia a canoa e a paisagem naquele remoto fim de tarde. As duas estavam ansiosas, naquele dia haveria um baile na província vizinha, baile importante, com os homens mais distintos da sociedade, as mulheres mais elegantes, as damas mais comportadas e também as mais mexeriqueiras, homens de cultura e homens de muita palavra e pouca ideia.
Enfim, uma daquelas festas na qual todos estariam, sem exceção, todos entenda-se a alta sociedade caro leitor, jamais uma camponesa ou um empregado seriam convidados para tais festividades.
As duas moças que dividiam amigavelmente a canoa sobre o rio Epte localizado na calma e tranquila Giverny, no norte da França, e ali pareciam tão próximas, unidas e harmonizadas pela paisagem, eram, para a verdade presente na sociedade, bem distantes.
A primeira que aqui nesta história citamos, a que tocava gentilmente a água e pousava seus olhos em um movimento longo e solitário nestas, era uma simples camponesa que trabalhava como empregada na casa da outra moça pousada sobre a canoa que passara o passeio todo imóvel. Essa outra jovem sequer movimentava muito os olhos em direção à paisagem que a emoldurava, tampouco chegara a molhar seus dedos finos e delicados na água do rio, permanecia como uma estátua, remexida apenas pelo vento quando este fazia dançar seus cabelos ou um pouco do tecido brando de seu vestido. Fora isso, esboçava sorrisos tímidos, não falava muito, mas nos recônditos de sua alma parecia feliz, pintada por uma ansiosidade prazerosa diante da expectativa para o baile de mais tarde.
O fato é que a moça imóvel, de nome Margarida, gostava muito da companhia da moça que remexia espontaneamente a água, com os remos ou com os dedos, de nome Bela. Já fazia muito tempo que Bela trabalhava na casa de Margarida, seus pais e avós ali trabalharam e ela perpetuava a linhagem. Ambas tinham a mesma idade e Margarida sempre gostara muito de brincar com Bela, elas se entendiam e foram atravessando algumas das primeiras fases da vida sempre juntas. Na infância dividiam as bonecas, na adolescência as confidências e agora, nos anos dourados da juventude, dividiam desejos, expectativas, outras confidências e silêncios.
Neste fim de tarde, dividiam o silêncio. Bela estava triste pois não iria ao baile, Margarida estava radiante, apesar de não demonstrar tal felicidade em movimentos, ela iria ao baile e lá teria a chance de dançar com um belo rapaz que, mesmo sem conhecer, habitava seus sonhos e fantasias há algum tempo. O vestido que ela usaria era especialmente belo, com bordados de um tom rosa bem clarinho recortado por detalhes em azul e amarelo. Bela costurara grande parte do vestido, imaginando como seria o seu caso ela também pudesse ir ao baile. Colocara no vestido de Margarida algumas rosas verdes bordadas especialmente por ela para dar um toque original àqueles pedaços de panos reunidos.
A história que aqui vai contada começou um pouco antes quando Margarida foi até o quarto de costura e chamou Bela para um passeio de canoa pelo rio Epte. A última prontamente aceitou. Como sempre fazia, mostrou-se contente, amistosa, disposta e deixou transbordar toda a graça natural que lhe era inerente.
Bela era uma jovem incrivelmente bela. Seus pais colocaram-na esse nome, mas não pensaram que o nome condiziria tão bem com a pessoa. Não só pela aparência, mas principalmente pelas maneiras, pela graça, pelo olhar longo e solitário, profundo, jazigo de mistérios eternos. Era alguém que fora pintada com tintas caras e raras, um molde único, destes que só aparecem de vez em quando e encantam de imediato. Os cabelos eram castanhos, quase sempre ornados por um chapéu branco que a ajudava nos trabalhos sob o sol, os olhos além da aparência aqui já dita eram também castanhos, mas de um castanho menos exuberante que o do cabelo, era um castanho mais negro, mais contido, mais inebriante, rimado com um toque de alucinação. As formas do corpo eram perfeitas e atraentes, harmônicas, nada sobrava, nada faltava. A voz era sublime, tinha algo do timbre dos pássaros, do cochichar do infinito. A voz era especialmente bela em Bela.
Já Margaria era uma mulher comum. Pode-se dizer até apagada. Bonita, mas sem nada demais. Bem cuidada, vestia sempre os melhores vestidos da cidade, cheirava sempre aos melhores perfumes, mas não tinha graça, tampouco originalidade. Margarida sempre usava um chapéu de cor marrom, a última moda em Paris, que, no entanto, não chamava tanto a atenção como o chapéu branco de Bela, este era diferente, não havia outro igual, era antigo, fora de sua avó e carregava todo um ar de simplicidade e elegância que não advém da sofisticação luxuosa, mas da simplicidade delicada. Sua voz era parecida com um som bem desafinado, estridente, chegava por vezes a ser até engraçado.
A voz, elemento aparentemente banal, ela faria toda a diferença naquele dia do baile.
As duas dirigiram-se ao Epte para o passeio, as coisas iam por aquele rumo, Bela conduzindo o barco, de quando em quando deixando um pouco o remo e tocando a água. Pensativa e imaginando como ela seria feliz se pudesse também ir ao baile. Margarida seguia estática, tão distante, tão separada da natureza, tão incompreendida por suas formas, ela combinava apenas de forma aparente com todo aquele lugar, mas no fundo, era um contraste abismal. Em certos instantes, Margarida pedia para que Bela cantasse, entoasse alguns versos, disparasse alguma canção.
Dizia ela nos raros momentos em que esboçava algum movimento:
- Bela, cante um pouco para mim, quero imaginar o baile, já me vejo adentrando o salão com meu belo vestido e indo em direção ao meu amado que por mim creio que está completamente apaixonado. E terminou a frase com um leve suspiro bobo e entrecortado.
Bela respondeu doce e calmamente, deixando-se invadir pela calma e mansidão do lugar:
- Claro Senhorita Margarida, vou cantar aquela canção de que tanto gosta, mas digo apenas à Senhorita que não se anime tanto com o seu amado, ele sequer a conhece bem, apenas sua mãe falou da senhorita para ele e ele mostrou-se, ao que ela disse, interessado. Mas em amor é preciso se conhecer melhor. Não acha? Ver como o outro vê o mundo, as coisas, como ele sente a natureza, como ele passeia por um belo rio em um reticente fim de tarde como agora fazemos. São os detalhes que geram a paixão mais do que qualquer outra coisa.
Margarida disse um pouco irritada:
-Sei disso tudo Bela, mas tenho certeza de que ele gostará de mim. Nossas famílias são amigas, tudo vai arranjado. Agora cante.
Bela cantou. E cantou lindamente. O som de sua voz parecia enfeitiçar os pássaros, domar as árvores, ditar o movimento do rio, recortar suas ondas pequeninas, alimentar os peixes escondidos, antecipar as emoções do baile, recuperar momentos do passado, intensificar a hora do presente, fazer com que aqueles corpos isolados, sozinhos em sua companhia, distantes e, ao mesmo tempo próximos, brancos e infinitos, adquirem-se de repente uma leveza tão grande a ponto de que esta se tornasse quase insustentável.
Depois de algumas horas, o passeio acabou, já estava tarde, Margarida tinha que voltar para casa e se aprontar para o baile. Bela tinha que ajudá-la.
Em movimentos rápidos e apressados umas dez mulheres, contando com Bela, aglomeraram-se no quarto para ajudar Margarida e sua mãe a se trocarem. Ambas ficaram prontas em poucas horas. Não podemos completar dizendo prontas e lindas, estavam apenas prontas. Lindas seria algo mais, algo que vai além de um vestido, de alguma maquiagem, de um penteado estático, tal como Margarida estava no passeio sobre o rio Epte horas atrás. Falando em Margarida, esta parecia não estar muito contente quando ansiosa voltou seus olhos cinzentos para o espelho. Parecia que lhe faltava alguma coisa, não sabia se no vestido, no cabelo, no rosto, mas algo lhe faltava.
Bela, percebendo a insatisfação da amiga, em instantes, ofereceu o seu chapéu branco, naquele momento, pensou apenas no chapéu como algo que para ela tinha uma beleza totalmente original e única, algo de singular que se colocado por Margarida seria capaz de preencher a falta que ela sentia em si mesma. Mas Margarida detestou a ideia, enfureceu-se, gritou descontrolada. “Aonde já se viu, eu, ir ao baile com o chapéu de uma camponesa, chapéu velho, sujo, encardido, que horror! Creio que já estou bem, minha roupa está ótima, não quero mais nada, apenas ir e deixar de ouvir estes despautérios. Espero que ao menos tenha pregado as flores verdes direito Bela, para que não me escapem durante o baile, seria um vexame. Fica melhor quando canta Bela, do que quando mete-se a dar palpites sem sentido”.
Mãe e filha partiram para o baile, Bela ficou chorando, ofendida, sentindo-se triste e contemplando o chapéu jogado violentamente em um dos degraus da escada por aquela que um dia ela considerara sua amiga, por aquela para quem ela cantara nesta tarde lindamente, navegando sobre as águas profundas do rio Epte.
Chegando ao baile, Margarida avistou de imediato o tal pretendente que ela sequer conhecia. Este, introduzido por sua mãe veio ter com ela, assim disse:
Oh! Doce Margarida. Já sou de ti um completo apaixonado, mesmo antes de conhecê-la. Hoje à tarde, em uma jogada do destino, fui ter contigo em tua casa, queria fazer-te uma visita antes do baile para que pudéssemos nos conhecer melhor. Mas, quando cheguei, tua mãe me disse que havias ido passear de canoa sobre o Epte, de imediato já achei lindo o passeio, pensar que gostas daquele rio, daquelas margens tão livres. Muito já andei por sobre aquelas águas, tocando-as, sentindo-as curar minhas mágoas, dores e faltas, fundindo-me ao vento, à brisa, deixando com que meu corpo se movimentasse longa e pensativamente. Fui correndo ver se te via nem que fosse da margem, por trás das folhagens esparsas que por lá se esparramam. O fato é que não pude ver-te por completo, no entanto, pude ouvir-te e como foi bela e linda tua voz. Tenho certeza que era tua, pois voz tão elevada, doce e graciosa, só podia vir de uma jovem tão bela e educada como vós. Apaixonei-me pela tua voz, se é que isso é possível, antes mesmo de ver de ti o rosto, os gestos, as formas, os olhos, antes tua voz aos olhos ou a qualquer outra coisa. Diga alguma palavra para que eu possa enfim confirmar como és bela a voz que de tua alma emerge, porque canto tão magnífico só pode brotar das camadas de tua alma. Ou melhor, esperas! Antes que digas qualquer coisa onde está teu chapéu branco. Achei-o tão diferente, com ares antigos, dotado de uma simplicidade que há tempos não vejo. Tua outra amiga também levava um chapéu, mas pareceu-me prosaico demais em comparação com o teu. Uma peça irresistível, estás lindo teu vestido, mas creio que lhe falta apenas aquele chapéu. Lembro-me que uma das cenas que consegui vislumbrar, umas das únicas que me apareceram aos olhos por entre as folhagens e ramos esparsos, foi de uma amiga ou conhecida tua e de ti, cantando, pude ver o movimento de seus lábios, ornada de um magnífico chapéu que, no entanto, quase fugia de meu campo de visão, você estava bem no canto de meu olhar, quase escapando dele e, ao mesmo tempo, mergulhando dentro dele. Escapava e voltava pra mim, me dava vontade de entrar naquela canoa, passear com você e com sua outra amiga, ouvir de perto sua voz, tocar seus lábios, flutuar sobre aquelas águas e impedir que me fugisses.
Sem que pudesse dizer muito e tomada por um susto no coração, Margarida saiu correndo, corria e deixava com que os bordados de rosas verdes sobre o vestido fossem caindo pelo chão, pelas escadas, deixando um rastro de soberba, cólera e ilusão.
O jovem a seguiu apressado sem entender muito o que se passava. Por fim, quando a carruagem que transportava Margarida parou em frente a uma casa, ele também parou logo atrás. Ela entrou e continuava correndo, meio desesperada, meio tomada pelo ódio, pela cólera, pela raiva, nos olhos transparecia uma fúria quase incontrolável, um desejo de morte ou qualquer coisa do tipo.
Ele nada via ou entendia apenas corria e queria de todo jeito alcançá-la.
Quando atravessou a porta que Margarida deixara aberta, perdida no seu arrebatamento incontrolado, a primeira coisa que viu jogado nos degraus da escada branca e polida foi um chapéu. O mesmo que ficara no canto, quase escapando dos limites do seu olhar naquele tarde. Em um movimento inconsciente, elevando seus olhos acima dele, viu uma jovem estupidamente bela, cujo rosto estava encharcado de lágrimas que, em um momento de susto e incompreensão, perguntou:
-O que está acontecendo? Quem é o senhor? Por que Margarida entrou assim tão assustada e nervosa, tomada da mais profunda cólera, lançando a mim ofensas incontáveis que ferem meu coração?
-O jovem com um olhar tomado por tal sensação de completude que não se explica ou descreve com palavras disse apenas:
Tomes teu chapéu bela jovem, ele é tao belo como tu e a tua encantada voz e não merece ficar jogado nestes degraus frios e gelados, assim como teu rosto não merece ser regado por tantas lágrimas.
O belo jovem inclinou-se com tamanha firmeza e nobreza em direção ao chapéu branco caído no chão, tomando-o com a certeza e ansiedade de quem não quer deixar que ele quase escape de sua vista novamente, e posou-o nas mãos delicadas da mulher que ele agora sabia quem era. Ela estava ali, inteira na sua vista, tão linda como a voz que dançou sobre o Epte naquela tarde.

* Texto inspirado no quadro de Monet, A Canoa sobre o Epte, visto na Exposição Romantismo - A Arte do Entusiamo no MASP, exposição que já foi tema de um post no Impressões. Uma homenagem ao Romantismo, a todo o sublime contido no trivial que sua estética busca e apreende de forma maravilhosa.


O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é senão uma potenciação qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida, na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo.

Novalis


Deveríamos fazer do comum algo de extraordinário e então nos surpreenderíamos descobrindo que está muito perto de nós a fonte de prazer que buscamos em algum lugar distante e difícil. Estamos muitas vezes a ponto de pisar na maravilhosa utopia mas acabamos olhando por cima dela com nosso telescópio.

Ludwig Tieck



Um comentário:

Adrielle B. Dante disse...

Nossa Maura, virei fã do teu Blog!
Muito SHOW!
sucesso menina... =)