domingo, 5 de abril de 2009

"O acabado é o prazer dos imbecis"

Madame Cézanne com saia de listras, 1877
[retrato de Hortense Fiquet-Cézanne, esposa do pintor]
Paul Cézanne (França 1839-1906)
óleo sobre tela, 73 x 56 cm
Museu de Belas Artes de Boston, EUA


Hortense Fiquet-Cézanne era a esposa de Paul Cézanne, artista impressionista francês que revolucionou a pintura moderna. Cézanne pintou alguns retratos de sua esposa que não gostava nem um pouco de posar para o marido. Ela dizia que Cézanne não sabia terminar seus quadros e considerava sua arte limitada e menor que a de muitos artistas da época, como Matisse por exemplo. Para ela, esse caráter inacabado das telas de Cézanne era, antes de tudo, um defeito e não uma qualidade. No entanto, essa atitude de Hortense demonstra que ela passava longe da sensibilidade e da percepção aguçada de um artista como Cézanne para o qual “o acabado é o prazer dos imbecis.”
Ele, como um legítimo impressionista, propunha uma nova maneira de ver e fazer arte. Não importava mais o retrato fiel da realidade, sua cópia quase que fotografada, e sim a reconstrução desta realidade por meio das infinitas possibilidades do real. Cézanne não queria mais aquela arte acadêmica, clássica, que disfarçava as pinceladas. Pelo contrário, ele deixava a nítida marca do pincel em seus quadros, como se fosse uma prova irrefutável da sua passagem por ali, da sua intermediação entre o que ele via e o que ele representava. Ao mesmo tempo, suas pinceladas marcantes visavam ser honestas com o espectador. Para que enganá-lo com uma cena quase idêntica ao real se na verdade qualquer pintura passa pelo filtro do artista, pelos seus sentimentos, traumas e emoções, condicionada e fruto, acima de tudo, de sua capacidade criadora, do rearranjo sutil de elementos que dá aos mesmos significantes significados diferentes, ou de sua criatividade?
Mas o mais interessante, quando pensamos na afirmação de Cézanne de que o acabado é o prazer dos imbecis, é reconhecermos que por trás dela existe o claro objetivo de manter o frescor e a surpresa da criação artística, as suas infinitas possibilidades de conclusão, possíveis somente se o pintor não sabe pintar. No fundo, esse não saber pintar implica outro tipo de saber, o saber que ultrapassa a própria técnica, que a reinventa e a desafia, sem descartá-la, aprimorando-a num eterno saber e não saber. O fato é que o acabado é como uma definição, que limita acima de tudo.
Ao entregar uma obra de arte inacabada amplia-se, de uma forma que ultrapassa qualquer entendimento objetivo, as possibilidades de descoberta, invenção e superação no próprio processo de pintar. Cézanne não queria limitar uma obra, ele queria fazer dela infinita, meio para as mais profundas e incompreendidas emoções. Ele queria que cada um a desse por acabada de acordo com o seu próprio entendimento de fim. É como se ele não usurpasse a função do espectador, preferindo não acabar a obra por ele, deixando que ele a encerrasse na lógica de seu mundo, nos caminhos de sua percepção.
A mim, particularmente, não me atraem os conceitos prontos e acabados. Pra que definir tudo, pra que acabar com perfeição se a maior perfeição é a da liberdade de cada um? A ilusão de dar um fim, que não existe, de materializar uma impressão que muda conforme o passar do dia e o movimento das luzes, é a mais vazia de todas. O acabado pressupõe rótulos, certezas vazias, ausência de criação e limites carregados de racionalidade e secos de emoção. Gosto de dizer que o acabado é uma condenação a uma realidade que se impõe, mas que nem sempre queremos.
Quem vive do acabado e se limita a ele não pode ser feliz de fato, a felicidade por si só não é um conceito acabado, posto que nada é tão difícil de definir quanto ela, afinal, ela carrega em essência o infinito do inacabado, dos sonhos que podemos terminar da maneira que nos parecer melhor. O acabado realmente é o prazer dos imbecis, porque é limitado demais, efêmero demais. O inacabado é o prazer dos que sabem valorizar a gratuidade da liberdade, de fazer-se diferente, é o prazer dos que esperam sempre mais, sem, no entanto, esperar nada.

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